Transfeminismo | Letícia Carolina Pereira do Nascimento
Letícia Carolina Pereira do Nascimento | Foto: Raissa Morais
“Eu travesti, assumi que sou divina. E criei a mim mesma. Somos criadoras, crias de dores. A vida se faz frente à morte voraz” (Letícia NASCIMENTO, 2021). É por meio dessas articulações que Letícia Nascimento dá pistas, na epígrafe da obra, do que podemos esperar de Transfeminismo. O livro, publicado pela editora Jandaíra em 2021, compõe a coleção “Feminismos Plurais”, a qual é organizada pela feminista negra e filósofa Djamila Ribeiro. A autora, ademais, é a responsável pela apresentação da publicação, na qual destaca a importância da coletânea enquanto produção intelectual didática empreendida por mulheres negras, mulheres indígenas e homens negros, além de poderosa ferramenta para revelar outras narrativas. No caso de Transfeminismo, isso se dá mediante os escritos de uma mulher travesti, negra, gorda, pedagoga, doutoranda e que atua como professora na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Com a pergunta “E não posso ser eu uma mulher?” (NASCIMENTO, 2021, p. 20), Letícia Nascimento abre seu caminho à empreitada de debater o transfeminismo a partir do seu olhar e do olhar de outras mulheres transexuais e travestis. A famosa frase de Sojourner Truth – “E eu não sou uma mulher?” (NASCIMENTO, 2021, p. 17) -, pronunciada durante uma conferência em Ohio, Estados Unidos, em 1851, é renovada pela perspectiva da autora por duas vias: a primeira alinhada ao pensamento de Truth, na qualidade de mulher negra, na desconstrução da visão de uma mulher universal, mas dando um passo além ao pensar nas travestis e transexuais e em suas vivências das feminilidades; e a segunda ao trazer o verbo poder como oposição às pessoas, e muitas vezes às feministas, que insistem em delimitar “quem pode e quem não pode ser uma mulher” (NASCIMENTO, 2021, p. 20).
Nessa introdução, da mesma forma, Nascimento (2021) rememora sua infância e juventude pelos atravessamentos do que ela podia ser ou não ser, em um processo de produção de si mesma. Segundo a escritora, ela vivia em um mundo apenas seu; para exemplificar isso, lança mão de uma metáfora sobre um rio: de um lado, a margem do gênero masculino, na outra margem, o gênero feminino, e, no meio, fluindo e percorrendo diferentes sentidos, estava ela como o próprio rio. O que a pesquisadora quer salientar é que, assim como ela, há uma pluralidade de pessoas rios – ou seja, pessoas que rompem e navegam por diversas águas. É nessa linha que ela enfatiza a necessidade de que o feminismo saiba reconhecer e escutar outras mulheres, como é o caso do transfeminismo. A ideia das mulheres trans e travestis não é dividir o movimento, muito menos rejeitar toda a construção teórica e social deste, mas evidenciar que existem pautas sociais e políticas específicas sobre elas, assim como os outros feminismos, que necessitam da atenção da sociedade. Almejam também evidenciar que todas as mulheres estão, de certo modo, interligadas por relações de opressão. Apoiada nessas discussões e demandas, Nascimento (2021) irá se aprofundar nas seis partes que compõem o livro.
Na primeira parte, “Do conceito de gênero à pluralização das sujeitas do feminismo”, Nascimento (2021) se debruça no conceito de gênero com base em teóricas nacionais e estrangeiras, bem como em alguns autores que contribuem com o debate. Em linhas gerais, ela faz uma síntese dos desdobramentos e disputas da categoria “gênero” a partir dos feminismos; parte da concepção de uma sujeita única do feminismo para um segundo momento em que se perde essa essência universal e entende-se a construção social desse ser mulher, mas ainda sem superar a concepção natureza/cultura, chegando, por fim, na busca pela desessencialização dessa categoria. Conforme argumenta Nascimento (2021, p. 41), é preciso romper “com as ideias essencialistas, carnavalizar as fronteiras entre o biológico e o cultural, entendendo o gênero como performance, como processo de produção dos nossos corpos, do sexo”. Diferentemente do que muitas feministas defendem, em especial as radicais – e aqui cabe ressaltar que são várias as críticas dirigidas a elas ao longo do capítulo -, é fundamental reconhecer as sujeitas na diversidade de suas corporalidades e de suas vivências de feminilidades e/ou mulheridades.
Na sequência, em “Mulheres transexuais e travestis: the outsiders non sisters”, a autora retoma a questão das percepções acerca das mulheres trans e travestis, e a negação de suas existências. De fato, elas são colocadas pelas sujeitas e sujeitos, regularmente, na posição de não humanidade e de marginalização. Recorrendo ao termo outsider – pessoa que é de fora, que é forasteira – e à categoria Outro, em analogia às perspectivas de Simone de Beauvoir (1970) e de Grada Kilomba (2019), Nascimento (2021, p. 52, grifos da autora) argumenta que as transexuais e as travestis são o “Outro do Outro do Outro, uma imagem distante daquilo que é determinado normativamente na sociedade como homem e mulher”. Contudo, para ela, é por meio dessa posição que elas conseguem compreender o quanto o CIStema sexo-gênero-desejo é escasso, promovendo distintas leituras e interpretações. As outreridades, ou “o modo de ser Outro” (NASCIMENTO, 2021, p. 51, grifos da autora), trazem à tona, portanto, outros discursos marcados por feminilidades e/ou mulheridades que têm potencial para fortalecer o feminismo em uma ação de união, de sisters, e não de afastamento.
Os dois primeiros tópicos do livro são essenciais para que a leitora saiba quais são as tramas e as tensões que envolvem o transfeminismo – tema principal da terceira parte da obra. Como sublinha Nascimento (2021, p. 68), o transfeminismo é “uma corrente teórica e política vinculada ao feminismo”, este que é constituído por vários feminismos e sujeitas. Ainda que a pesquisadora tenha reforçado, anteriormente, a ideia de irmandade, destaca que são as divergências entre as feministas que podem colaborar na construção de conhecimento e pontes de diálogos entre elas. No que se refere às transexuais e travestis, ela aconselha que as demais mulheres, e a própria sociedade, leiam e divulguem seus trabalhos e as enxerguem enquanto “produtoras de epistemologias” (NASCIMENTO, 2021, p. 70) e sujeitas atuantes politicamente.
A luta transfeminista, mesmo que negada em diferentes esferas, tem como aliado o ambiente virtual; nele, as mulheres trans e travestis compartilham seus saberes e viveres, criando uma rede de debates, sororidade e subjetividades. Se há o princípio de falar de si, de ter espaço para romper discursos universais, há, do mesmo modo, lugar de escuta, de acolhimento e de imbricação de histórias. E é exatamente isso o que a escritora faz nesse capítulo – ao tecer frases que vão da primeira pessoa do singular a primeira pessoa do plural, ela demarca a sua potência como mulher travesti, preta e gorda, mas que, ao mesmo tempo, é atravessada por outras mulheres em seus recortes identitários, em um movimento de partilha. Nas palavras de Nascimento (2021, p. 80), “passei a compreender que minhas dores não são só minhas, que minhas lutas não são só minhas; perceber-me como singular, mas também como coletivo”. O pensar junto às outras é o gancho para as próximas partes da obra, que se dedicam a explorar algumas das demandas sociais do transfeminismo.
Em “Cisgeneridade, despatologização e autodeterminação: nós por nós mesmas!”, a autora discorre, a princípio, acerca da importância do conceito de cisgeneridade para as transfeministas. Ao retomar a relação entre sexo e gênero, ela enfatiza que o sexo, tal qual o gênero, é fabricado por práticas discursivas, culturais e históricas; ou seja, a questão biológica perpassa por uma construção de sentidos que a institui como natural e binária. Dessa maneira, gênero e sexo, ao estarem relacionados, determinam como genuínos apenas corpos cis, sem brechas para outras corporalidades; um cenário que favorece as pessoas cis em uma hierarquia de poder e privilégios e que as encobre de assimilar que seus gêneros também são produzidos. Por isso, para o transfeminismo, “o conceito de cisgeneridade é uma máquina de guerra discursiva que expõe o modo pelo qual corpos generificados se apropriam do direito de subalternizar outros corpos generificados” (NASCIMENTO, 2021, p. 99).
Para Nascimento (2021), uma das estratégias discursivas do transfeminismo é o entendimento do conceito de autodeterminação – em uma dinâmica de deslocar o falar sobre para o falar por das sujeitas trans e travestis. Em seus argumentos, a pesquisadora salienta que, como as demais correntes feministas, o transfeminismo é pautado por espaços de interação e trocas que promovem a circulação de narrativas entre essas mulheres. Além disso, ela recorre ao conceito de autodefinição, empregado no feminismo negro, notadamente por Patricia Hill Collins (2019), para pensar o fortalecimento coletivo e, igualmente, espaços seguros para que essas mulheres falem por si. “Quando os corpos trans* assumem processos de produções discursivas sobre suas subjetividades passam a rechaçar o pensamento colonizador e os processos de patologização”1 (NASCIMENTO, 2021, p. 107). Como último ponto do capítulo, a escritora faz uma síntese da patologização das subjetividades trans com base nas questões morais e de gênero validadas pelos profissionais da saúde; da transexualidade na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM); do ativismo trans na luta pela despatologização; e da Psicologia como aliada.
Na quinta parte, Nascimento (2021) resgata alguns dos temas debatidos anteriormente – as corporalidades trans e a autodeterminação -, mas pela perspectiva da oposição ao CIStema, em alusão aos diferentes sistemas sociais que se norteiam pela cisgeneridade. Como pontua, as performances corporais trans representam uma quebra às ideias normativas na medida que abandonam a dualidade feminilidades/masculinidades e reelaboram novas formas de ser e de se produzir. Apoiada em Judith Butler (2017; 2019) e no conceito de performatividade de gênero, ela destaca que o ato de performatizar o gênero não se constitui uma única vez, mas é reiterado todo o tempo, o que demonstra o seu processo de produção. Ao trazer contribuições de Donna Haraway (2013) e Paul B. Preciado (2018), ela descortina como corpos cis passam por intervenções cirúrgicas e pelo uso de medicamentos sem a interferência do Estado, enquanto os corpos transgêneros são regulados e expostos, perdendo-se o âmbito privado e negando às pessoas trans a autonomia e o direito de se fabricarem conforme desejam. Ao se amparar, mais uma vez, na autodeterminação, Nascimento (2021, p. 154) acredita, como transfeminista, que “é preciso insistir no que temos em comum, que é a não adequação aos discursos cisgêneros, a ideia de que nossos genitais determinam qualquer verdade sobre nossos corpos”.
Na última parte, “Vidas trans* importam: transfeminicídio também é uma pauta feminista”, Nascimento (2021) encerra o debate a partir de ponderações acerca dos homicídios contra as mulheres transexuais e travestis, apelando para que o conceito de feminicídio seja ampliado e que se reconheça o transfeminicídio. Para isso, apresenta os índices de violência de gênero e orientação sexual no Brasil, com destaque às mulheres cis e às mulheres LGBTQIA+, evidenciando que, mesmo que cada grupo seja afetado de maneiras particulares, todos estão entrelaçados por distintas opressões, argumentando que “é a performatividade do gênero feminino” que vulnerabiliza socialmente todas elas (NASCIMENTO, 2021, p. 170). Assim, novamente, a pesquisadora recorre ao pensamento da união entre as mulheres, visto que, por meio do diálogo, elas podem construir medidas combativas e de denúncia contra o machismo. Outra questão presente no capítulo, e que é reforçada ao longo dele, é a necessidade de se pensar esse cenário a partir da interseccionalidade. Segundo Nascimento (2021, p. 161), “uma abordagem interseccional demanda aprendizagens coletivas, por isso é tão importante ampliar não apenas nossos lugares de fala, mas também, nossos lugares de escuta”.
Transfeminismo é uma composição de vozes, de encontros, de elos, de lutas. Letícia Nascimento (2021) narra suas vivências emaranhadas às de outras mulheres transexuais e travestis, em um movimento de busca por visibilidade e autodeterminação de todas elas. Ser quem você é em um dos países que mais mata pessoas trans é de um ato de (r)ex(s)istência, pois, como acentua Berenice Bento (2017, p. 234), “o transfeminicídio seria a expressão mais potente e trágica do caráter político das identidades de gênero”. Por fim, esperamos que o livro ecoe por todos os cantos e que se desdobre em outras composições produzidas por pessoas trans. Conhecer e/ou reconhecer o transfeminismo é pensar para além das narrativas normalizadoras, é pensar novos caminhos para uma sociedade constituída por diferenças, e não por falsas universalidades.
Nota
1 O termo trans com asterisco é empregado para “abarcar uma série de identidades não cisgêneras” (NASCIMENTO, 2021, p. 18).
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos Trad. de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos Salvador: Edufba, 2017.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade Trad. de Renato Aguiar. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
BUTLER, Judith. Corpos que importam Trad. de Veronica Dominelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo edições, 2019.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e política do empoderamento Trad. de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: vestígios do pós-humano 2 ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 33-118.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano Trad. de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo São Paulo: Jandaíra, 2021.
PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica Trad. de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Rio de Janeiro: N-1 Edições, 2018.
Resenhista
Ana Paula Veloso Silveira Teodoro Rodarte – Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Bauru, SP. E-mail: spg@faac.unesp.br orcid.org 0000-0002-8290-8666
Referências desta Resenha
NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021. Resenha de: RODARTE, Ana Paula Veloso Silveira Teodoro. Transfeminismo: vivências, (r)ex(s)istências e autodeterminação. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 2, e84067, 2022. Acessar publicação original [DR]