Resultado de pós-doutoramento do historiador Márcio Couto Henrique, realizado entre 2014 e 2015, Sem Vieira nem Pombal permite revelar aspectos da trajetória do próprio autor que irá se refletir na própria obra. No momento em que o autor agradece a Capes “[…] de antes do golpe” (HENRIQUE, 2018, p. 09), Henrique busca se situar como sujeito do seu próprio tempo (BLOCH, 2008, p. 55), como busca realizar o mesmo procedimento em relação à história de vida dos próprios sujeitos que analisa em seus trabalhos. Situando a sua história de vida pessoal, escrevendo que proveio de uma família muito pobre do interior da cidade de Americano, no estado do Pará, o autor dialoga com as questões de seu tempo, ao se referir à transformação da universidade por meio do ingresso de alunos a partir das políticas de afirmação social, em meio a um contexto de gradativa asfixia da ciência brasileira.
Transitando entre a História e a Antropologia, área em que realizou seu doutoramento, a sua formação permite revelar aspectos significativos relacionados à maneira de como o autor percebe os sujeitos que busca analisar. No livro, é possível notar alguns aspectos biográficos do autor e como a sua formação se coaduna com as propostas presentes em cada capítulo. Coordenador do Grupo de Pesquisa de História Indígena e do Indigenismo na Amazônia, o autor realiza um escrutínio das produções acadêmicas historiográficas e antropológicas sobre o tema, tanto bibliografias mais recentes e com discussões mais ampliadas quanto as mais clássicas, derivadas de um movimento historiográfico e antropológico na década de 1990, que buscou alargar a compreensão sobre a questão do passado colonial a partir de uma perspectiva indígena.
Esse movimento se caracterizou como uma das inflexões na maneira como o indígena era concebido ao longo da história do Brasil, entendendo-o nas suas múltiplas formas de protagonismo e agência. O livro As muralhas dos sertões, de Nádia Farage (1991) e o volume de artigos História dos Índios no Brasil, organizado por Manuela Carneiro da Cunha (1998), configuram-se como dois exemplos que lançaram as bases para uma Nova História Indígena, que viria a se formular, constituindo-se no pilar fundamental para entender não apenas a maneira pela qual analisa e interpreta as fontes, bem como a forma como busca representar esse passado indígena.
A construção da obra traz em seu âmago questões pertinentes e urgentes em relação ao modo como a história indígena deve ser tratada e narrada. Ao longo das 260 páginas, Henrique (2018) consubstancia posições historiográficas, tanto dos estudiosos das experiências no Norte como de outras regiões, que buscaram dar conta de um outro tipo de documentação que permitisse revelar as potencialidades de agência dos sujeitos indígenas em um período que, habitualmente, costuma ser visualizado como um “vazio” no tocante a essas populações. Nesse sentido, o autor busca mostrar que a legislação indigenista não se constituía em objeto de preocupação tão somente durante a época de Vieira ou de Pombal. Em que pese a revogação do Diretório dos Índios com a Carta Régia de 1798, os indígenas continuaram a ser alvo das preocupações das grandes autoridades, o que reforça a importância do estudo desses sujeitos para o entendimento desse contexto.
Buscando interlocuções entre a História e a Antropologia no limite da documentação que se propõe a analisar, Henrique (2018) ressalta a importância desse desafio no esforço de perceber as narrativas indígenas acerca dos acontecimentos a partir da leitura de documentos produzidos por não-índios no século XIX. Este, por sua vez, constitui-se no eixo central, que perpassa a construção dos quatro capítulos que compõem a obra, e que se torna bastante explícito no momento em como o autor sugere uma leitura da documentação selecionada por meio do entendimento de que as fontes são polissêmicas, ou seja, evocam várias vozes e sujeitos, cabendo ao historiador desenterrá-los do caixão da história (2018, p. 25-26).
O diálogo entre a bibliografia selecionada e a documentação que o autor coletou denota o estado da arte da produção em relação à História Indígena. Henrique (2018), no limite da documentação selecionada, esforça-se em operacionalizar a historiografia em diversos níveis, a exemplo de se utilizar da análise de experiências em outros espaços para justificar seu argumento e a escolha do recorte espaço-temporal, tarefa fundamental no trabalho do historiador. Um exemplo disso se evidencia na opção teórico-metodológica que o autor faz ao citar, por exemplo, Marta Amoroso (1998) e Maria Regina Celestino de Almeida (2013)2 , na medida em que emprega largamente tais autoras para escrutinar a experiência dos aldeamentos na Amazônia em meados do século XIX.
A obra está dividida em quatro capítulos, constituindo-se em versões ampliadas de publicações anteriores do autor (HENRIQUE, 2018, p. 21). No capítulo inaugural da obra, o pesquisador busca tratar da importância de se abordar a história indígena no Oitocentos, que consiste em desconstruir a ideia de que, sem Vieira nem Pombal, os indígenas passaram a ser vistos como sujeitos resignados, conformados, passivos, desprovidos de quaisquer estratégias de sobrevivência e afirmação de sua história frente a um sistema que buscava incutir valores europeus e, consequentemente, a perda da identidade desses sujeitos e a supressão de seu passado.
Ainda neste mesmo capítulo, Henrique (2018) também aponta mais uma linhamestra, que irá perpassar a análise acerca das perspectivas indígenas nas fontes oitocentistas: as mobilidades indígenas. Sendo assim, o autor, a partir da análise da documentação, aponta a relevância de se refletir acerca das ações dos índios Munduruku como decisivas em relação aos processos históricos na Amazônia, trazendo como exemplo a presença dessa etnia em praticamente todos os aldeamentos fundados entre o final do século XIX e o início do século XIX e a maneira pela qual esses povos obrigaram as autoridades a (re)pensarem o processo de civilização dos indígenas (HENRIQUE, 2018, p. 48).
Importante ressaltar que, embora traga para o centro da narrativa os sujeitos indígenas, Henrique se preocupa muito mais em evidenciar a polissemia das fontes, aspecto caro a toda a obra, como foi apontado anteriormente. No tópico “O saudosismo jesuítico”, o historiador realiza um tratamento cuidadoso no momento em que analisa escritos que destacam a voz das autoridades da época, a exemplo dos liberais, que detratavam o jesuitismo, por entenderem que tal pensamento se constituía em um “[…] inimigo da modernidade” (HENRIQUE, 2018, p. 69). De fato, a escrita e a análise que Henrique realiza seguem à risca o que propõe no próprio título da introdução de sua obra, que reside em realçar o protagonismo indígena, sem forçar a mão.
O capítulo subsequente busca tratar da articulação entre aldeamentos, presídios militares e missões no processo de “descimento” dos indígenas. Inicialmente, o autor delineia a espacialidade na qual a sua análise se debruça, conduzida a partir da indicação da própria documentação, trazendo um mapa elaborado pelo próprio, buscando situar as proximidades das missões, o que facilitaria a conexão entre elas. As mobilidades indígenas, que, para o autor, se dariam muito mais em função do contexto interno das povoações das etnias, constituíram-se em um mecanismo de agenda por parte dos indígenas, na medida em que esses sujeitos, com base em seus próprios conhecimentos acerca da Amazônia, ditavam em que local uma determinada missão se estabeleceria.
Nesse sentido, Henrique (2018) convida o pesquisador/leitor a conhecer a dimensão simbólica dos aldeamentos, evidenciando a interseção entre a História e a Antropologia, no momento em que, ao se utilizar dos rastros que a documentação apresenta, parafraseia o dizer “inteiramente tapuia”. Em que pese as normatizações impostas pelo Regulamento das Missões de 1845, na prática, evidenciava-se significativas permanências no que diz respeito aos materiais e métodos empregados na construção das habitações dos povos originários, de acordo com a análise que Henrique realiza, por meio de cronistas e viajantes da época. Uma vez mais, torna-se evidente de que maneira o historiador expressa sua preocupação em ser fidedigno ao movimento que se propõe a realizar na obra, ou seja, de vislumbrar os múltiplos sujeitos que a documentação pode abrigar, não buscando centrar-se tão somente em uma visão unívoca deste processo.
Os aldeamentos, muito mais do que simples espaços de consecução dos ideais de civilização, por meio do convencimento e da persuasão, também podem significar, para Henrique, lugares de sociabilidade e também de trocas de mercadorias e presentes, debates comuns aos dois últimos capítulos que fecham a obra. Desse modo, o autor finalmente traz a perspectiva antropológica de análise, que reside na dimensão simbólica das trocas no espaço dos aldeamentos, que se concretiza na maneira pela qual os indígenas possuem uma leitura de produtos exteriores à sua cultura, os chamados “brindes” ou “quinquilharias”, que transgridem o âmbito do valor comercial. A partir dessa atribuição simbólica, é possível escrutinar na documentação indícios, ainda que pequenos, mas significativos, do poder de escolha dos indígenas como inflexão na maneira pela qual as autoridades buscavam tratar esses sujeitos, ou como o mesmo próprio Henrique, a “pacificação do branco”.
Protagonismo, mobilidade e agência se constituem nas três palavras-chave para se compreender a proposta que o autor consubstancia ao longo da obra. Mesmo na conclusão, quando o autor escreve que, grande parte da narrativa em que predomina a invisibilidade do indígena na história da Amazônia deve-se a seu processo de caboclização. Porém, em que pese o indígena ter incorporado parcela significativa da cultura europeia, de forma alguma isso implica perda cultural, ou mesmo aculturação, podendo ser um contraponto à sugestão de Ângela Domingues (2000, p. 251).
A proposta historiográfica de Henrique (2018) pode ser assemelhada à de Natalie Zemon Davis (1997) em Nas Margens, em que a historiadora, analisando três mulheres no século XVIII, inseridas em contextos diferentes – uma judia, chamada Glikl, uma católica, com o nome de Maria Sybilla e uma protestante, que leva o nome de Maria da Encarnação, traduzindo para o português – , busca um elemento comum entre elas: o fato de ser mulher e o desafio de se afirmar frente a um sistema que, às claras, pretendia manter a sua invisibilidade. No contato com as fontes, Davis percebe os sentidos e significados que essas mulheres atribuem ao meio social no qual estão inseridas.
O caso de Glikl, que tece escritos sobre a visão que possuía não apenas dos cristãos, mas também dos judeus e não-judeus se constitui em uma interlocução interessante para se refletir o movimento que Henrique realiza ao trazer para o centro da narrativa a perspectiva indígena da história no século XIX, ainda que o autor em nenhum momento tenha sinalizado a presença de Davis (1997) na bibliografia utilizada para o trabalho. Embora Sem Vieira nem Pombal utilize-se de fontes escritas por não-índios, isso não significa que não se possa refletir sobre a maneira pela qual os indígenas são representados. Os aldeamentos e as trocas de mercadorias a partir dos regatões evidenciam, de forma muito clara, a leitura que os sujeitos realizavam a partir de suas próprias realidades.
Sendo assim, o desafio de entender sujeitos que o sistema insiste em marginalizar, tanto para Davis (1997) quanto para Henrique (2018), seria de entendê-los enquanto protagonistas de sua própria história. E, nesse ponto, volto a ressaltar, os quatro capítulos de Sem Vieira nem Pombal consubstanciam uma possível afinidade que o autor possui com a antropologia norte-americana, atentando-se para o tempo de produção de determinada documentação, a fim de não atribuir juízos de valor, tarefa fundamental e cara a qualquer trabalho historiográfico.
O trabalho de Márcio Couto Henrique carece de ser apreciado, no entanto, com bastante moderação, apesar de sua linguagem fluida e concisa, pela razão de trazer debates e eixos de discussão significativamente importantes não apenas para o mundo acadêmico como também para o mundo social. Ao mundo intelectual, pela razão de ser uma obra que visa superar a ideia de que, sem Vieira nem Pombal, no século XIX, os indígenas simplesmente desapareceriam da história, para isso, lançando mão de fontes oficiais que permitem lançar luz à concepção, largamente defendida pelo autor, de como os povos indígenas participavam ativamente das decisões em relação às suas realidades. E, por fim, ao mundo social, pelo simples motivo de estarmos atravessando um contexto em que os direitos desses sujeitos estão sendo amplamente negados e dirimidos, a exemplo do marco temporal, em meio a uma luta de autoafirmação por parte destes grupos.
Trazendo também uma bibliografia muito pertinente ao seu objeto de estudo, a leitura de Sem Vieira nem Pombal permite refletir a qualidade das produções em relação ao trato indígena, constituindo-se em um objeto de auxílio para o pesquisador da área. Henrique (2018) sugere uma série de chaves interpretativas que transitam entre o método antropológico, mediado pelos conceitos de interlocução e o método historiográfico, que, por sua vez, é conduzido não apenas a partir da própria documentação que examina, mas também do que dela é possível de se depreender e interpretar. A obra em si se constitui em um possível norteamento de novas pesquisas na área, bem como abre caminhos para se pensar a história do Brasil oitocentista a partir da perspectiva dos próprios indígenas.
Nota
2 Coloco aqui ambas as autoras, porque entendo que, durante a leitura do livro e a construção dos capítulos, aparecem com muito mais evidência, em especial, nos capítulos “mais antropológicos” que tratam da dimensão simbólica do cotidiano indígena nos aldeamentos, por meio das trocas e dos regatões.
Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
AMOROSO, Marta. Catequese e evasão: etnografia do aldeamento indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). 1998. Tese (Doutoramento em Antropologia)- Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. São Paulo: Paz e Terra: ANPOCS, 1991.
Resenhista
Felipe William dos Santos Silva – Mestrando em História pela Universidade Federal do Pará. E-mail: fwsilva97@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7022-446X
Referências desta Resenha
HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018. Resenha de: SILVA, Felipe William dos Santos. Os indígenas no oitocentos: das margens da História ao centro das narrativas historiográficas. Outros Tempos. São Luís, v. 19, n. 34, p. 432-437, 2022. Acessar publicação original [DR]
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