1A publicação deste livro é, sem dúvida, um acontecimento editorial que merece ser assinalado. Trata-se de uma seleção criteriosa de textos fundadores do pensamento político em Portugal na era moderna (c. 1500-1800), precedida de uma cuidada e esclarecedora introdução de enquadramento interpretativo que também serve para justificar a razão e a oportunidade da sua tradução e publicação em língua inglesa. A introdução e organização editorial do livro são de autoria de Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro que, deste modo, acrescentam às suas importantes contribuições de análise histórica do período em apreço um relevante serviço de divulgação de fontes primárias que apenas têm estado acessíveis, na sua quase generalidade, a leitores de língua portuguesa. A tradução e edição crítica de tais textos fundadores possibilita, a um público internacional alargado, o conhecimento de alguns dos principais protagonistas do debate político em Portugal nos séculos XVI a XVIII, da sua articulação ou diálogo (implícito ou explícito) com autores de referência no quadro europeu e da especificidade dos problemas de ordem institucional, social e política que emergem no contexto da monarquia portuguesa e do seu espaço imperial.
2Esta iniciativa editorial contribui para reforçar o lugar da historiografia portuguesa no mapa internacional, rompendo o cerco e o silêncio, tantas vezes autoestabelecidos, de que muito se queixam ou se penitenciam os historiadores portugueses, quer relativos ao desconhecimento de que as suas obras são vítimas devido a constrangimentos linguísticos, quer decorrentes da dificuldade de acesso, por historiadores estrangeiros, a fontes históricas pouco conhecidas e mal divulgadas. Os organizadores desta antologia não são movidos por nenhuma intenção provinciana de reclamar a originalidade ou superioridade analítica de textos escritos em português e, por tal razão e só por ela, ignorados pela historiografia internacional. Há muito que esse nacionalismo primário se arredou dos trabalhos sérios de difusão internacional da pesquisa histórica sobre temas e autores portugueses. Reclamam, contudo, a relevância de uma chamada de atenção para a singularidade de discursos políticos concebidos com a intenção de captação cognitiva de uma realidade histórica distinta das suas congéneres europeias. Assim se compreendem as linhas orientadoras do texto de introdução em que Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro justificam a estrutura temática da antologia e a escolha feita de autores representativos ou ilustrativos.
3Em primeiro lugar, importa destacar uma orientação global ou fio condutor em que se perfilam os traços distintivos da monarquia portuguesa, ibérica e imperial, ao longo do período considerado, no que se refere a duas temáticas principais: (1) a origem do poder político e os fundamentos da ordem social; e (2) a natureza do poder régio e seu exercício. Entre as características mais salientes discutidas pelos autores, julgo serem merecedores de destaque os seguintes tópicos, aqui resumidamente enunciados: o sistema de retribuição ou recompensa de serviços como atributo fundamental da realeza, garantindo desse modo a subordinação e obediência dos vassalos e, por essa via, o equilíbrio da ordem social no seu conjunto; o sistema de vínculos inerente ao regime senhorial e as relações de proximidade entre grupos sociais caracterizados por uma relativa homogeneidade; a presença impositiva do catolicismo como elemento-chave da formação de uma identidade política, o que certamente foi causa-consequência do impacto reduzido da Reforma protestante em Portugal; e a natureza não-compósita da monarquia portuguesa (em clara dissonância com o caso espanhol) e o seu estatuto de monarquia imperial (multicontinental e multiétnica).
4Esta orientação global de análise é cruzada por dois eixos interpretativos ou preocupações dominantes de leitura. O primeiro desses eixos refere-se à identificação das originalidades ou especificidades do pensamento político produzido em Portugal no período em estudo, conferindo-lhe características próprias que contrastam com as conhecidas experiências de outros países. Neste sentido, importa salientar os seguintes aspetos fundamentais: o peso da cultura dos juristas e sua influência no pensamento clerical católico, criando uma atmosfera própria de relacionamento entre as esferas da política e da justiça; a ausência de traços ou vestígios do pensamento civil republicano e a escassa influência da Ilustração anti-religiosa e radical; a originalidade do sistema de representação em Cortes e dos limites e escrutínio impostos ao poder absoluto; a modernidade da abordagem da transição do estatuto de súbdito a cidadão, com antecipação de conceitos que só viriam a ganhar expressão na era das revoluções liberais; o impacto da expansão territorial e a defesa da legitimidade da guerra justa; os debates sobre inclusão e exclusão políticas no quadro da afirmação do catolicismo contra o judaísmo, especialmente no uso das categorias de cristãos-velhos e novos; e os sinais recorrentes de crítica, contestação e resistência ao pensamento político dominante.
5O segundo eixo interpretativo que atravessa a estrutura do livro (porventura menos explícito, mas certamente digno de atenção) refere-se à consideração da importância dos processos de circulação, apropriação e adaptação de ideias formadas noutros contextos internacionais. Contra a ideia de um pensamento genuinamente nacional, e recusando uma visão simplista sobre o papel desempenhado por “estrangeirados”, Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro discutem os textos de autores portugueses à luz da variedade de perspetivas e sensibilidades que os influenciaram, assim como das descontinuidades temáticas resultantes de vivências distintas e de diálogos cruzados com múltiplos interlocutores. Assim, os autores que integram esta antologia são também merecedores de atenção pelo modo como refletem os impactos, entre outros, do humanismo europeu (Erasmo), do pensamento político sobre a razão do estado (Maquiavel e Botero), da renovação da teologia neoescolástica (Escola de Salamanca), da filosofia jusnaturalista (Grotius) ou dos avanços do pensamento iluminista (Montesquieu, Smith, Raynal).
6A introdução à recolha antológica sugere ao leitor uma inevitável e dupla interrogação: a leitura interpretativa resultou da escolha prévia dos textos? Ou terá sido a escolha dos textos determinada pela interpretação aprioristicamente construída? Qualquer que seja a pergunta ou a resposta, não há dúvida que os textos selecionados dão corpo às hipóteses interpretativas sugeridas na introdução e conferem comprovação documental à perspetiva global de entendimento que Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro fazem sobre o pensamento político em Portugal na era moderna. Não se questiona, por isso, a escolha dos 36 textos que os autores apresentam, distribuídos em três núcleos fundamentais que respeitam uma sequência cronológica: (I) Pensamento político, império e domínio global (“Political thought, empire and global rule”) – 8 textos, incluindo autores como Diogo Lopes Rebelo, João de Barros, Damião de Góis e Luís de Camões; (II) Enquadramento católico da ação política (“Politics within a Catholic framework”) – 11 textos, entre os quais figuram Jerónimo Osório, Francisco Velasco de Gouveia, Manuel Severim de Faria, Serafim de Freitas e António Vieira; (III) Pensamento político na era da Ilustração (“Political thought in the age of Enlightenment”) – 17 textos, em que surgem excertos de, entre outros, D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Luís António Verney, António Ribeiro Sanches, Marquês de Pombal, António Ribeiro dos Santos, Pascoal de Melo Freire, Luís Pinto de Sousa Coutinho e D. Rodrigo de Sousa Coutinho. O terceiro núcleo é, compreensivelmente, o mais extenso e também o que inclui uma maior variedade tipológica, com destaque para textos de produção legislativa reveladores de propósitos reformistas, de que é bom exemplo o Diretório pombalino sobre os índios do Brasil.
7A opção dos organizadores da antologia foi a de oferecer uma ampla variedade e diversidade de textos, o que quase sempre obrigou a uma seleção de excertos retalhados que prejudica a leitura integrada e a compreensão contextualizada do seu conteúdo. Tal opção será porventura justificada pela inevitável restrição de páginas imposta aos organizadores da edição. Porém, não há dúvida que faz correr o risco de condicionar a leitura de quem pretenda descobrir e analisar fontes primárias independentemente das preferências focadas pelos organizadores. Ou seja, na organização editorial de antologias deste tipo, importa ter em atenção o propósito de disponibilização de fontes suscetíveis de motivar múltiplas interpretações e leituras, o que obviamente não é possível quando os textos selecionados se apresentam com uma extensão de três a quatro páginas. Não obstante a legitimidade e consistência das escolhas realizadas, é sempre possível questionar a pertinência de um excerto incluído em detrimento de outro que ficou por publicar. É um exercício ingrato que envolve alguma arbitrariedade – a qual, certamente, serão os próprios organizadores do livro os primeiros a reconhecer –, sobretudo quando se lida com textos de autores prolixos ou com obras de grande extensão que oferecem inúmeras opções de seleção.
8Mas há ainda outra inevitável interrogação suscitada pela leitura desta obra: por que razão outros autores relevantes do período não estão representados na antologia? Apesar de esta pergunta não servir de impugnação da coerência e consistência das escolhas apresentadas, e procurando cingir-me a autores e textos que se enquadram perfeitamente no roteiro interpretativo que Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro desenvolvem na sua introdução, causa perplexidade a ausência de alguns autores, nomeadamente: Luís Mendes de Vasconcelos, cuja obra publicada em 1608 ilustra os dilemas políticos em redor de Lisboa enquanto desejada e potencial capital da monarquia ibérica e do seu vasto império; Duarte Ribeiro de Macedo, autor de inúmeros textos que bem demonstram a importância da diplomacia como arte política; Fr. Manuel do Cenáculo, cujas pastorais são testemunho notável da articulação entre ação religiosa e missão política; Pina Manique (ou o Marquês de Pombal, ou D. Rodrigo de Souza Coutinho), na vertente específica dos contributos dados pelas ciências da administração do estado e das políticas públicas com vista ao bem comum; e, finalmente, Joaquim José Rodrigues de Brito, autor de uma obra que, apesar de ultrapassar ligeiramente os limites cronológicos estabelecidos (publicada em 1803-1805), serve na perfeição para exemplificar a legitimação política dos regimes de absolutismo esclarecido e suas ações reformistas.
9Do ponto de vista formal, a apresentação da antologia talvez beneficiasse de um dispositivo gráfico mais apelativo, que permitisse uma clara separação entre os breves comentários dos organizadores e o texto propriamente dito. Em contrapartida, merece menção positiva o útil e detalhado índice onomástico e temático, assim como as notas minuciosas aos textos, em grande parte justificadas pela necessidade de esclarecer leitores menos familiarizados com assuntos e personagens respeitantes à historiografia portuguesa. Refira-se ainda o carácter abrangente da bibliografia referenciada no estudo introdutório, na qual é nítida a preocupação em se identificarem livros e artigos publicados ou traduzidos em língua inglesa.
10Nenhum dos reparos críticos aqui apontados poderá atenuar a apreciação muito positiva sobre o mérito imenso deste livro. Com a publicação desta obra, Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro prestam um utilíssimo serviço à comunidade historiográfica internacional interessada em conhecer melhor a história política e do pensamento político em Portugal na era moderna. E também oferecem à historiografia portuguesa uma oportunidade única para vencer barreiras linguísticas e tornar internacionalmente relevante o conhecimento histórico que em Portugal tem vindo a ser construído nos domínios de investigação de que este livro dá testemunho.
Resenhista
José Luís Cardoso – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: jcardoso@ics.ulisboa.pt.
Referências desta resenha
CARDIM, Pedro; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (eds). Political Thought in Portugal and Its Empire, c. 1500-1800. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2021. 344p. Resenha de: CARDOSO, José Luís. Ler História [Online], 80 | 2022, posto online no dia 21 março 2022. Acessar publicação original.
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