A prática do design tem sido convencionalmente entendida como uma atividade de caráter projetual voltada à configuração técnica, estética e simbólica de artefatos, espaços e serviços. Neste registro, o design por vezes é apresentado como método para solução de problemas, como estratégia voltada à inovação, como recurso para aumentar o lucro de empresas, ou como artifício para definir estilos e tornar objetos mais “belos”. Conforme nos mostra a pesquisa de Isabel Campi (2003), os enquadramentos que definem temas, sujeitos, práticas e artefatos a serem considerados nas abordagens historiográficas dependem das definições de design em jogo. Sendo assim, podemos pensar a história do design como um campo político de disputas por reconhecimento e visibilidade, envolvendo concepções de design que variam e concorrem historicamente, de acordo com a perspectiva adotada e também com os interesses de quem as formula.
A proposta deste dossiê está alinhada às vertentes que defendem o design como uma prática social amplamente comprometida com a configuração material e simbólica da vida cotidiana. Trata-se de entender o design como um fenômeno cultural que opera na produção de comportamentos e sentidos mediante a objetificação de valores cujos efeitos são atravessados por relações de poder, tendo implicações na constituição de identidades individuais e coletivas. Argumentamos, então, que o design não diz respeito apenas a uma atividade profissional e institucionalizada, mas abarca inúmeras práticas engajadas na transformação do mundo social.
Isso permite tensionar relatos históricos centrados na suposta genialidade de designers e suas criações, redirecionando a atenção para os contextos culturais, econômicos e políticos que dão sustentação aos processos de projeto e produção da cultura material, articulados aos circuitos de sua circulação e consumo (FORTY, 2007; SANTOS, 2015; SPARKE, 2004). Coloca em xeque, ainda, as narrativas pautadas por valores modernistas que, ao associar a ideia de “bom design” ao funcionalismo e à produção industrial seriada, marginalizam sujeitos, práticas e artefatos que não se ajustam a esses princípios (ATTFIELD, 2000).
A transformação do paradigma convencional, ou canônico, depende de pesquisas empenhadas na problematização de perspectivas historiográficas eurocêntricas, androcentradas e heteronormativas. Entre outras possibilidades, isso envolve reflexões sobre a subalternização ou o apagamento das produções materiais de segmentos populares, da população negra e indígena, de mulheres brancas e não brancas e de grupos dissidentes do sistema sexo-gênero. Também abarca questões relativas ao envolvimento do design nas formas de usos, mediante a discussão de apropriações, negociações, reinvenções, resistências e negações que emergem da relação desses diversos grupos com o entorno material. Para tanto, urge a aproximação com perspectivas feministas, queer, antirracistas, indígenas, populares e/ou anticoloniais, cujo olhar considere os efeitos do design na construção, manutenção ou questionamento de hierarquias de raça/etnia, gênero, sexualidade e classe social, entre outros marcadores empregados na estruturação de relações de desigualdade na sociedade brasileira.
Considerando essas premissas, este dossiê temático reúne pesquisas que, embora não contemplem todas as questões apresentadas acima, oportunizam a discussão de uma miríade de aspectos decorrentes da inserção da cultura material nas dinâmicas sociais. Os textos abrangem discussões referentes ao design feito no Brasil nos últimos 60 anos, incluindo produções de designers profissionais, mas também de sujeitos anônimos e organizações coletivas, localizados em diferentes regiões do país. Em seu conjunto, propiciam o entendimento do design como prática política, como estratégia para lidar com a precariedade, como maneira de materializar experiências, como forma de resistência e mobilização, e como caminho para a transformação social.
No artigo intitulado “Cartografando o design espontâneo periférico no Rio de Janeiro e Recife: a experiência da escravidão como fio condutor para um contranarrativa no design”, Pamela Cordeiro Marques Corrêa e Marisa Cobbe Maass defendem esse alargamento do conceito de design e, consequentemente, de sua historiografia, de maneira a abarcar soluções intuitivas realizadas em contextos de escassez de recursos – as chamadas gambiarras.
As autoras narram suas experiências de cartografar dois territórios caracterizados historicamente como importantes portos de entrada e locais de estabelecimento de pessoas escravizadas advindas de nações africanas – a região da Pequena África, no Rio de JaneiroRJ; e o bairro Brasília Teimosa, em Recife-PE. Em um processo de pesquisa marcado pela espontaneidade característica do design que procuram mapear, elas fotografaram diversos artefatos que revelam estratégias por meio das quais a população local resiste às adversidades, ocupa a cidade e constrói modos de viver.
Corrêa e Maass reconhecem a inventividade e o potencial solucionador de problemas do design espontâneo periférico sem perder o olhar crítico para o sistema excludente que enseja esse tipo de criação. Apoiadas em uma perspectiva decolonial, reforçam a relevância de estudar e historicizar essas práticas e materialidades como forma de denunciar desigualdades e buscar meios de emancipação de grupos sociais marginalizados.
O método cartográfico também é empregado por Kando Fukushima em “Ruas vazias, muros cheios: cartazes de protesto em Curitiba-PR durante a pandemia de Covid-19”. Nesse texto, o autor discute dois conjuntos de “lambe-lambes” idealizados com a intenção de criticar a negligência do poder público frente à catástrofe sanitária em curso, bem como o descaso quanto à precarização da vida que acometeu a parcela da população brasileira menos favorecida economicamente. Por meio de registros fotográficos realizados no ano de 2021 em seus deslocamentos pelo centro de Curitiba e apoiado no conceito de memória gráfica, Fukushima chama atenção para impressos efêmeros produzidos à margem dos circuitos profissionais reconhecidos, sistematicamente negligenciados nos registros historiográficos convencionais.
Com isso, o autor focaliza o potencial comunicativo, mas também eminentemente político, de intervenções gráficas promovidas de forma anônima e marginal que, ao ocupar de maneira irregular os muros da cidade, reivindicam visibilidade para perspectivas que divergem das versões oficiais sobre temas de interesse comum. Tais intervenções são provocativas em diferentes aspectos, pois além de operar no campo da denúncia e da mobilização, questionam a privatização da paisagem gráfica urbana, pautada na mercantilização da esfera pública.
No texto “Um olhar sobre o papel social do design gráfico durante a ditadura civilmilitar no Brasil (1964-1985)” André Matias Carneiro, Maria Regina Álvares Correia Dias e Marcelina das Graças procuram destacar o posicionamento político de designers mediante a produção de materiais gráficos oposicionistas no contexto de repressão imposto pelo regime autoritário. Aqui, como no artigo anterior, existe o alinhamento à abordagem da memória gráfica. Carneiro, Dias e das Graças partem da análise de aspectos estético-formais e simbólicos de três artefatos – uma capa de disco, um jornal alternativo e uma ilustração – para discutir como neles a linguagem visual foi articulada de forma a denunciar violências, tensionar perspectivas elitistas sobre cultura e dar vazão a demandas por democracia e liberdade.
O trio destaca ainda o caráter estratégico da aplicação de recursos gráficos, tais como as ilustrações, na busca por burlar ou dificultar o trabalho da censura vigente no período histórico enfocado. Dessa forma, o design gráfico é entendido como manifestação cultural de resistência e luta contra o regime ditatorial, caracterizando-se como uma prática política e socialmente engajada.
Já Germana Gonçalves de Araújo, no artigo “Designers à margem do centro e a ruptura do alfabeto regular”, problematiza a noção de “bom design” baseada nos preceitos do modernismo europeu a partir da obra de Gabi Etinger e Breno Loeser, profissionais que têm formação e atuação em design gráfico no estado do Sergipe. O estudo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a “Memória Gráfica de Sergipe”, desenvolvida a partir de revisão de literatura, entrevistas e pesquisa documental, visando contribuir para a construção de uma historiografia que abarque essa produção ainda pouco conhecida e discutida no país.
A autora contextualiza as obras enfocadas a partir de uma discussão acerca do estabelecimento de cursos superiores de desenho industrial na região nordeste e, mais especificamente, em Sergipe, entendendo que a formação de designers gráficos no estado tem abarcado referências não hegemônicas e dado ênfase à dimensão social da prática profissional. Assim, ela distancia a produção de Etinger e Loeser do “alfabeto regular” estabelecido pelo paradigma funcionalista, caracterizado pelo emprego de padrões convencionais de estrutura e configuração de elementos gráficos. Ao mesmo tempo, indica como esses designers refutam uma ideia de identidade sergipana monolítica e estanque, encontrando na produção autoral, centrada nas próprias experiências e posições políticas, uma forma de se contrapor a estereótipos relativos à cultura local.
As disputas em torno da noção de design social e sua relação com as práticas de ensino, pesquisa e extensão balizam as discussões apresentadas por Gustavo Cossio, Rita Almendra e André Carvalho no artigo “Rumo às histórias do design social no Brasil’’. Por meio de revisão bibliográfica e considerando diferentes abordagens, potencialidades e lacunas, o trio discute procedimentos alinhados à história social e à micro-história como meios para a construção de uma história do design social no contexto brasileiro.
Neste país, segundo Cossio, Almendra e Carvalho, a vertente do design social vem se configurando desde meados dos anos 1970, articulada às inquietações de docentes por abordagens projetuais pautadas na aproximação com a realidade local e aspectos da vida cotidiana. Neste sentido, contribuiu para o deslocamento de orientações pedagógicas voltadas para demandas de mercado, desviando o interesse para anseios e características culturais de grupos sociais específicos. Decorrem disto reivindicações quanto à necessidade de uma maior aproximação com as ciências humanas, a busca por metodologias de trabalho colaborativas e a ampliação do debate acerca da função social do design.
Por fim, no texto “Renata Rubim: trajetória e práticas no design de superfície”, Bruna Carmona Bonifácio e Ronaldo de Oliveira Corrêa fazem uso da abordagem da história oral e da consulta a arquivos pessoais para problematizar hierarquias de gênero na historiografia do design. A partir da construção da trajetória biográfica da designer de superfícies Renata Rubim, questionam mecanismos naturalizados de dupla invisibilização, onde certas áreas de atuação são desvalorizadas no mesmo processo em que são classificadas como femininas.
Considerando a ampla produção da designer junto a empresas de renome, bem como a chancela de valor atribuída ao seu trabalho por diversas premiações e bienais de design, Bonifácio e Corrêa interrogam a pouca atenção dada à produção de Rubim nas narrativas históricas. Com isso, estendem a crítica aos mecanismos implicados no apagamento da presença de mulheres na constituição do que é classificado como design brasileiro, mediante a subalternização de práticas que muitas vezes favorecem o seu ingresso no campo profissional, tais como as associadas ao fazer artesanal ou à decoração.
Almejamos que as reflexões apresentadas neste conjunto de textos – tanto no que os aproxima pelo compromisso em potencializar o questionamento de perspectivas convencionais ou hegemônicas, como também pela heterogeneidade de estratégias teóricometodológicas – possam colaborar para o debate na direção de abordagens historiográficas mais inclusivas e democráticas.
Referências
ATTFIELD, Judy. Wild things: the material culture of everyday life. Oxford: Berg, 2000.
CAMPI, Isabel. La historia y las teorías historiográficas del diseño. México, D.F.: Editorial Designio, 2003.
FORTY, Adrian. Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Questionamentos sobre a oposição marcada pelo gênero entre produção e consumo no design moderno brasileiro: Georgia Hauner e a empresa de móveis Mobilinea (1962-1975). In: ALMEIDA, Marcelina das Graças; REZENDE, Edson José Carpintero; SAFAR, Giselle Hissa; MENDONÇA, Roxane Sidney Resende. (Orgs.). Caderno aTempo: histórias em arte e design; v. 2. Barbacena: EdUEMG, 2015, p. 25-43.
SPARKE, Penny. An Introduction to Design and Culture: 1900 to the present. UK, London: Routledge, 2004.
Organizadores
Marinês Ribeiro dos Santos – UTFPR https://orcid.org/0000-0002-9925-9949
Cláudia Regina Hasegawa Zacar – UFPR https://orcid.org/0000-0002-1756-2347
Referências desta apresentação
SANTOS, Marinês Ribeiro dos; ZACA, Cláudia Regina Hasegawa. Apresentação. Albuquerque: revista de história, v. 14, n. 27, p. 10-14, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]
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