Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.
Para tirar proveito desses saberes, o leitor vai ter que superar o incômodo de alguns escritos mal planejados, resultantes de parágrafos agrupados sem coesão, com temas que vão e voltam sem explicação plausível, sem introdução e sem conclusão, longas digressões dispensáveis ao entendimento do problema central, listagens que poderiam frequentar apêndices, combinações frouxas entre explicações fundamentadas em eventos de duração breves e permanências de longa duração, entre concepções de Estado de M. Weber e K. Marx, entre interpretações freudianas e foucaultianas sobre a crise política atual.
Certamente, o leitor também encontrará escritos de feição acadêmica (com a apresentação de hipóteses, métodos e fontes), seguidos por relatos de experiência, longas passagens autobiográficas, relatos etnográficos, ensaios e passagens memorialistas, textos francamente acusativos e propostas de políticas públicas para a educação dos militares e a mudança legal do papel das Forças Armadas no Estado Brasileiro. Enfim, se tiver interesse em conhecer um pouco mais (ou se quiser iniciar estudos sobre) a experiência militar brasileira, sobretudo a contemporânea, o leitor terá que relevar essas imperfeições da escritura e fazer questões, usando cada autor como um depoente ao seu serviço.
Essa foi a minha atitude. Dentre as várias questões que a coletânea suscita, me interessou saber como esses experimentados estudiosos caracterizam os militares brasileiros, o papel político das Forças Armadas e as ideologias que marcam o pensamento e a ação dos homens de farda. Considerando que este dossiê é destinado à formação continuada de professores sobre novas direitas no nosso tempo e aceitando a premissa de que a maioria dos grupos militares apoiadores do atual presidente da república podem ser tipificados como de direita ou como novos apoiadores de direita (ou membros de novas direitas) no espectro das ideias políticas, tomei a decisão de questionar, implicitamente, o sociólogo Martins Filho e os autores dessa coletânea sobre a matéria, deixando aos especialistas em história política, militar das relações internacionais, entre outras, o trabalho de criticar os vários outros aspectos da obra.
Levando em conta os objetos da obra, Bolsonaro teria que aparecer e muito como um personagem significativo. Ele é acusado de ameaçar a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas (FA). Somando-se à atuação de militares em sua “necropolítica” durante a pandemia e o comportamento genocida em relação aos povos indígenas, Bolsonaro contamina as FA com a incompetência do seu governo. Não se poderia mesmo esperar outra coisa de um presidente com muita “fortuna” para vencer eleições e pouca “virtú” para governar, como declara Martins Filho (p.52), lembrando as assertivas de Nicolau Maquiavel.
O personagem central, porém, é o militar brasileiro, analisado no contexto das crises da segunda década do século XXI. Os autores não combinaram, evidentemente. São sujeitos autorizados e autônomos. Mas, o conjunto das descrições é compreensivelmente desfavorável à imagem dos militares e, correlatamente, das FA. Para os autores, militares apoiaram os movimentos contestatórios de 2013-2014 e o golpe de 2016, justificando parte desses apoios como uma vingança aos relatórios da Comissão Nacional da Verdade. Militares foram ativos participantes da campanha eleitoral de Bolsonaro, promovendo “guerra híbrida” (fake news, false flags), reunindo ativos, profissionais da reserva, familiares e simpatizantes profissionais liberais bem como profissionais da imprensa antiesquerdista./
Vencidas as eleições, militares se transformaram em “escoras” e “suporte militante” (p.13) de Bolsonaro por motivos não tão morais, como ampliar o orçamento das FA em tempos de arrocho econômico e garantir vantagens salariais e previdenciárias na implantação de reformas neoliberais do próprio governo a quem apoiam. Militares, portanto, são coniventes com o desastre dessa administração e, sobretudo, porque sabiam que o atual presidente seria incapaz de governar.
Assim mesmo, se instalaram no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), tentaram controlar as ONGs envolvidas com pautas do meio ambiente e os Movimentos Sociais pró indígenas e perseguiram servidores no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e na Fundação Nacional do Índio (Funai), acusando-os de incompetência e corrupção. Hoje, a quantidade de militares de alta patente no primeiro escalão do governo é maior que a proporção de militares no governo da Venezuela – assumidamente militarista.
Os autores divergem sobre a categorização dessa presença. Alguns tratam como “tutela” e outros veem “participação” em “governo militarizado”. Também divergem sobre os motivos do retorno. Alguns até mencionam uma “intenção” secular de “desmonte da democracia”. Outros afirmam que a presença dos militares da ativa no governo e na política é crescente, desde a redemocratização. Outros, ainda, defendem que os civis nunca assumiram efetivamente o controle dos militares porque foram estes os protagonistas da transição ditadura/democracia, ao final do século passado.
Em proporção idêntica, autores situam as causas do retorno à política na curta duração. É o resultado do falho e pendular controle civil sobre os militares, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. É também o resultado da crise institucional deflagrada pelo desrespeito aos dispositivos jurídicos, tanto no período do Mensalão, como na ação da operação Lava Jato. A mesma crise, para outro autor, foi criada e propagandeada pelos próprios militares lançando mão de velhos bordões: é preciso salvar a pátria dos políticos incompetentes, da esquerda comunista e corrupta. Por fim, a volta dos militares é tida como efeito colateral da participação das FA nas missões de paz no Haiti quando, ao se encerrar cada etapa daquele trabalho, seus comandantes máximos se instalavam na administração em Brasília.
Com tal papel, e mesmo não configurando um partido político institucionalizado, militares escapam da sua função dominante de defesa externa revelam pensamento e ação de membros dos partidos tradicionais: construíram uma “memória histórica” salvacionista e moderadora da política nacional, uma memória positiva, inclusive, da ditadura militar. Possuem pautas claras, coletivas e corporativas (salários, por exemplo), direção e atuação governamental, “quadros” (recrutados e promovidos endogenamente, há décadas), “base eleitoral militante” e, principalmente, “base ideológica” (p.95).
Os autores são parcimoniosos sobre esse último tema. As ideologias professadas pelos militares não foram agraciadas com um capítulo, mas atravessam todos eles. Alguns especialistas enxergam ideologia na longa duração, com transmissão contínua e explicável genealogicamente. Militares de alta patente, em geral, guardam uma ancestralidade escravagista, bandeirante, autoritária. A maioria dos autores, contudo, identifica ideologias dos militares a partir de categorias reconhecidas academicamente na segunda metade do século XX. Eles são conservadores antidemocráticos, anticomunistas, antiesquerdistas, antimarxistas, antiglobalistas, contrários à autodeterminação dos povos indígenas, ultraconservadores e fascistas.
Esses termos, retirados de discursos em formaturas militares, artigos de jornal militar, postagens nas redes sociais de membros do alto comando, livros de militares combatentes da “guerra cultural” e de ordens do dia nos quartéis não constituem um corpo de conceitos-valor que configurem um, dois ou três conjuntos de ideias articuladas, situáveis em determinada posição do espectro ideológico. Não é um defeito dos artigos, posto que não tomam essa tarefa como objetivo. Excetuando-se os marcadores “direita” e “conservador” ou o clássico “modernização conservadora” (originalmente aplicado à política econômica dos últimos governos militares) e “fascismo”, as fontes (mediadas pela coletânea) não oferecem clareza, sistematicidade e articulação precisos, por exemplo, entre ideias de ser humano, sociedade, Estado, país, povo, cultura, esfera pública, esfera privada, por exemplo. Os termos, em geral, são usados isoladamente ou em pares e (com a ajuda da análise dos especialistas) nos revelam contradições entre pensamento e ação dos militares: Como ser nacionalista/salvacionista se as verbas destinadas à compra de armas alimentam (incompreensivelmente) os grandes inimigos bélicos? Como ser protetor do território nacional, abrindo a Amazônia à exploração internacional? Como ser defensor da pátria, associando-se ao real inimigo externo (agências de segurança norte-americanas) para combater o ilusório inimigo interno (partidos de esquerda brasileiros)? Como ser defensor dos interesses nacionais, apoiando a aplicação de princípios neoliberais à política econômica brasileira? Como ser moralmente superior e lutar para não ser atingido pelas regras mais duras da Reforma da Previdência? Como ser infenso à corrupção e não dar transparência ao uso das suas próprias verbas?
Essas contradições induzem a alguns autores a declararem que os militares empregam o discurso de “interesse nacional” para satisfazer interesses “corporativos”. Não haveria mais, como outrora, uma disputa entre militares “nacionalistas” e “entreguistas” (p.156). Militares teriam migrado, ideologicamente, do desenvolvimentismo “conservador e concentracionista” para o neoliberalismo (p.115). Pior que isso: o discurso decorado pela maioria dos não militares na escola básica sobre a importância das FA na história brasileira dos últimos dois séculos (“amor servil pelo Brasil”) não passaria de uma lenda. Ocorre que as consequências perversas desses princípios ideológicos e das ações supostamente orientadas por algumas dessas crenças não se limitam ao âmbito militar e às FA. Sob a ignorância da maioria dos civis, a soberania brasileira é corroída a galope.
Com esse breve inventário colhido nos escritos dos especialistas em estudos militares, espero ter fornecido um panorama representativo do que são hoje individual e institucionalmente os personagens de farda que apoiam o presidente Bolsonaro. Espero ter comunicado as ameaças e os crimes perpetrados por esses pensamentos conservadores à democracia liberal brasileira. Antes que as teorias da conspiração sejam disparadas contra a obra, é necessário registrar que não há uma só passagem defendendo a extinção das Forças Armadas ou das funções militares. Não obstante as divergências e as insuficiências descritas acima, o que os autores propõem é a efetivação do controle das Forças Armadas às políticas de defesa discutidas e pactuadas pelos civis. O conjunto de teses defendidas ao longo da obra converge nesse sentido. Por essa razão, considero que a coletânea organizada por João Roberto Martins Filho deve ser, não apenas, lida pelos profissionais das ciências humanas (sobretudo professores de História), o livro deve ser disseminado aos pedaços sob os mais diversos e acessíveis gêneros textuais consumíveis pelo público não especializado, como animações, documentários, quadrinhos e paradidáticos. Professores das humanidades têm o dever de disseminar o virtuoso papel que as FA podem cumprir em uma democracia liberal e a obrigação de questionar a imagem falsamente ufanista, apolítica, apartidária, imune à corrupção de tipo vário que frequenta as cabeças dos nossos escolares. Os textos dessa obra orientam a construção de instrumentos para cumprirmos essas duas tarefas críticas e cívicas.
Referências
MARTINS FILHO, João Roberto. O Palácio e a Caserna: A dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1965-1969). São Paulo: Alameda, 2020.
Sumário de Os militares e a crise brasileira
Resenhista
Para citar esta resenha
MARTINS FILHO, João Roberto (Org.). Os militares e a crise brasileira. São Paulo: Alameda, 2021. 195p. Resenha de: FREITAS, Itamar. A ideologia dos militares. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/3237/>.
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