Os Kaingang e a colonização Alemã e Italiana no Rio Grande do Sul (Séculos XIX e XX) | Soraia Sales Dornelles
Soraia Sales Dornelles | Imagem: Universidade FEEVALE
O livro é uma adaptação da dissertação de mestrado defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Soraia Salles Dornelles (2021). Passados dez anos, esse texto permanece relevante, enquanto continua no senso comum a ideia de que as regiões colonizadas por italianos e alemães durante o século XIX e XX eram “terras vazias” de populações, de sentidos e de histórias. O que Dornelles (2021) traz na sua pesquisa ajuda a complexificar as relações entre aqueles sujeitos que vinham buscando melhores condições em um novo continente e os que lutavam para sobreviver no território de seus antepassados. A autora busca compreender a participação e a agência dos povos originários dentro dos processos históricos que formaram o estado-nação, incluindo a complexa dinâmica interna das sociedades indígenas e como ajudaram a definir os rumos dos acontecimentos que fizeram parte.
No prefácio do livro, o orientador da dissertação e professor da UFRGS, Eduardo Neumann, afirma que “[…] a especialização das pesquisas é o que opera na definição do neologismo acadêmico que é a História Indígena” (DORNELLES, 2021, p. 15, grifo do autor). Ou seja, o processo de formação de pesquisadores que aprofundam as problemáticas dos povos indígenas vai constituindo um campo próprio, que vem crescendo desde a última década do século passado. Em tese, apresentada na Unicamp em 2017, Dornelles (2021) foi orientada parcialmente pelo professor John Monteiro, um dos expoentes da Nova História Indígena, construindo relações com a antropologia e estabelecendo aportes para entender as dinâmicas internas e externas dos grupos indígenas envolvidos nos processos históricos.
Ao tratar de um tema clássico para historiografia, que é a imigração europeia no século XIX, Dornelles (2021) busca uma perspectiva que possa incluir os indígenas e suas dinâmicas internas, além de ressaltar sua participação nos processos históricos. Neumann aponta três aspectos dos quais parte a pesquisa do livro: em primeiro lugar, o reconhecimento de que as populações indígenas foram agentes de sua história, com dinâmicas internas e projetos, que tentavam aplicar, dentro das possibilidades, no contexto de relações com outros grupos e com o governo; em segundo lugar, a importância do recorte cronológico do século XIX, por ser um momento em que os indígenas foram deliberadamente apagados da história oficial, o que fica bastante evidente nas narrativas históricas das cidades de colonização alemã e italiana, nas quais os sujeitos indígenas são praticamente inexistentes; em terceiro e último, a importância da releitura dos processos de ocupação promovidos pelo império na região sul, especialmente no Planalto Meridional, conectando no tempo e no espaço as políticas de colonização europeias e de aldeamentos indígenas (DORNELLES, 2021, p. 15).
Como retratar os povos indígenas como sujeitos ativos na narrativa histórica, sendo que, por muito tempo, a sua atuação foi apagada? Dornelles (2021) desenvolve o seu livro, no conjunto dos capítulos, tendo como fio condutor o esforço de restituir as historicidades para as sociedades originárias, direcionando especial atenção a certas personagens outrora ausentes. Além de analisar sujeitos cujas trajetórias representam contatos e conflitos que ocorreram entre imigrantes e indígenas, a autora reforça a ideia de que nessas relações houve adaptações recíprocas. Os contatos são analisados com o objetivo de complexificar as relações interétnicas e evitar o binômio resistência e dominação, e a representação dos sujeitos indígenas enquanto meras vítimas, sem diminuir a violência por eles sofrida.
Esse aspecto fica muito marcado nas análises dos personagens Luiz Antônio de Silva Lima – o Luís Bugre – e o Cacique Doble. Ambos foram sujeitos indígenas que transitaram entre os grupos de Coroados, de brasileiros e de imigrantes. Outros personagens que aparecem no intermeio cultural são os membros da família Versteg, em especial Jacó. De certa forma, um personagem que aparece em um processo oposto ao de Luís: enquanto esse foi capturado quando criança por imigrantes alemães e criado por um descendente de português, a família Versteg foi sequestrada pelos Coroados, que os mantiveram por dois anos vivendo junto a seu grupo. Devido a esse trânsito cultural, ambos foram tratados, muitas vezes, com estranhamento e suspeita.
No primeiro capítulo intitulado “Histórias de Contato”, autora faz um apanhado geral sobre a história dos Kaingang no sul do Brasil trazendo problemáticas que caracterizaram a representação histórica dos povos Jês. Seguindo a tese de John Monteiro (2001), o binômio tupi – tapuia relegava aos últimos – entre outros povos, os Jês – características depreciativas. Os Kaingang foram retratados durante os séculos XVII e XVIII como “avessos a civilização” (SILVA; BARCELLOS, 2009). Com a chegada dos alemães a partir de 1824 no Rio Grande do Sul, o tema se tornou de interesse para políticos e para as elites coloniais, refletindo o clima intelectual do Brasil no século XIX, “[…] marcado pela busca da transposição da racionalidade Ocidental para o espaço nacional que se construía, embora essa transposição tenha sido marcada por inúmeras adequações” (DORNELLES, 2021, p. 44). As primeiras relações entre alemães e indígenas Kaingang foram vistas pela chave da “civilização” e da “selvageria”, o que foi agudizado pelos constantes ataques dos índios Coroados contra as colônias alemãs, sendo os primeiros registrados a partir de 1829 (DORNELLES, 2021, p. 46). Estão bem documentadas as mortes de colonos, porém, não se pode afirmar, com base nos dados, o número de mortes de indígenas, pois os imigrantes muitas vezes agiam à revelia do governo.
A partir de 1846, a política de aldeamentos ganha força na província sulina, afetando tanto as colônias alemãs quanto a região dos Campos de Cima da Serra, regiões com as quais os grupos Coroados tinham conflitos e contatos. Tal política consistia na redução de todos os grupos indígenas que viviam nas florestas para três aldeamentos no norte do estado, Nonoai, Guarita e Campo do Meio. Desse modo, muitos grupos, de alguma forma ou outra, foram coagidos a se dirigirem aos aldeamentos oficiais. Porém, com aponta Dornelles (2021, p. 50-52), essa política “[…] não pôde findar o problema dos ataques dos indígenas às colônias visto que não foi capaz de observar a inexistência de uma unidade dos índios Coroados na província”.
Para observar a constituição social dos grupos Coroados, uma fonte importante é o engenheiro belga Alphonse Mabilde (1983), que foi encarregado da abertura de estradas que cruzavam o território controlado por esses indígenas nas florestas do nordeste e norte da Província. Mabilde (1983) afirma que os grupos Coroados se organizavam, naquele momento, em pequenos grupos familiares e de compadrio que compunham uma tribo. Esses grupos eram liderados por caciques subordinados – como Doble – e caciques principais – como Braga. Também afirma que qualquer falta de obediência ou dissidência entre essas lideranças degenerava em “guerras de extermínio”, como ocorreu a partir da traição de Doble contra Braga. Importante ressaltar sobre esse cronista que, apesar da riqueza de seus relatos, sua visão é marcada por uma certa simpatia, somada a um profundo preconceito contra os indígenas, a quem considera de “má índole”.
O segundo capítulo, intitulado “A história em As vítimas do Bugre, ou como tornarse bugre na história”, parte da literatura e de fontes documentais para tratar da utilização desse termo até hoje considerado pejorativo para os povos indígenas. Dentro da narrativa literária, mas baseada em relatos de um sobrevivente de ataque dos Coroados, surgem dois personagens que contrastam em um mesmo tema dos contatos violentos entre indígenas e colonos alemães. Por um lado, Jacó Versteg, sequestrado pelos Coroados por dois anos quando criança, que relatou essa história para o Monsenhor Matias José Ganswedit quando já velho; e por outro lado Luís Antônio da Silva Lima, conhecido como Luís Bugre, um Coroado que foi capturado em um assalto à colônia Feliz em 1847, ainda criança, e foi criado entre imigrantes alemães.
Apesar de ter um foco na fantástica história do sequestro da família Versteg, é um relato que reproduz a narrativa “heroica” dos colonizadores alemães. Quanto ao Luís, foi capturado com apenas 11 anos, quando já era um guerreiro dentro dos parâmetros dos Coroados da época. Passa a viver com Matias Rodrigues da Fonseca, de origem portuguesa, que o batiza com o nome católico. Conforme o relato analisado por Dornelles (2021), o menino não tinha medo dos possíveis castigos e mantinha relações com os indígenas nas matas, seja nas caçadas que fazia com os homens da colônia, ou quando se retirava por longos períodos. A sua posição entre múltiplas identidades o permitia atuar como intermediário entre os imigrantes e os indígenas, inclusive trocando alimentos e produtos no fundo das matas. Quando do sequestro da família Versteg em 1867, de acordo com o relato do Monsenhor Gansweidt, Luís aparece diversas vezes como alguém suspeito, que teria planejado junto com os Coroados o ataque, enquanto o homem da casa estava em viagem para a localidade de Caí para uma quermesse.
A mesma narrativa escrita por Gansweidt traz relatos interessantes sobre guerras entre grupos Kaingang, condizente com conflitos registrados por outras fontes. Dornelles (2021, p. 82) alerta o leitor que a narrativa do Monsenhor não passa de fantasia sua, mas que “[…] essa narrativa […] permanece tratando de questões muito possíveis”. Nesse sentido a autora resgata o relato de Mabilde acerca da traição do cacique subordinado Doble ao seu principal Braga, que desencadeou um conflito intenso entre esses dois grupos, que assim como outros, de certa forma, condicionaram as políticas de aldeamento dos indígenas no nordeste da Província de São Pedro do Rio Grande. Esse fato histórico aparece de forma lateral na narrativa do Monsenhor, propondo uma reflexão acerca das possibilidades de relacionar literatura e História.
O relato segue até a fuga de Jacó Versteg, durante uma festa dos Coroados, a sua chegada em uma fazenda nos Campos de Cima da Serra e, posteriormente, o reencontro com o seu pai em São Leopoldo. Sobre Luís Bugre recaem suspeitas de que teria ajudado a planejar o ataque àquela família, de modo que ele se muda Serra acima. Na ocasião da chegada dos primeiros colonizadores italianos, ele foi o guia até o lugar de uma aldeia abandonada recentemente, chamada de Campo dos Bugres, onde se fundou a Colônia Caxias, posteriormente cidade de Caxias do Sul.
No terceiro capítulo “Doble, de Cacique Subordinado a Brigadeiro”, Dornelles (2021) debate a trajetória dessa liderança a partir da sua relação com o estado, enquanto se manteve “constantemente necessário” ao projeto colonizador na Província do XIX. Ao revisar a história do rompimento de Braga e Doble por volta de 1837, Dornelles prepara o leitor para compreender em profundidade a sua atuação frente ao governo, uma postura que já foi chamada de colaboracionista ou ainda negociadora. A autora ressalta a participação dessa liderança na “[…] resolução, por assim dizer, de alguns casos de ataques de índios a particulares” (DORNELLES, 2021, p. 100-103).
A sua relação com outro cacique subordinado da região, João Grande, Nicué ou Nicuó, é demonstrativa do tipo de colaboração feita por Doble. Em dois casos, esse se pôs a perseguir o grupo desse cacique: nos Campos de Vacaria, para resgatar os prisioneiros pertencentes a família do fazendeiro João Mariano Pimentel em 1851, e no ano seguinte para resgatar prisioneiros da família de Pedro Watterpuhl, na colônia de Mundo Novo. Ao encontrar o grupo de João Grande pela segunda vez, Doble mata o cacique e um negro fugitivo que lutava a seu lado, fato que gerou repercussão, sendo mencionado no Relatório do Presidente da Província de 1853.
Ao colaborar com o governo em questões em que ele mesmo se implicava, como por exemplo, o fato de ser já inimigo de João Grande, ou receber assistência do governo enquanto era perseguido pelo grupo de Braga, Doble foi conseguindo certos benefícios para o seu grupo, eventualmente um aldeamento próprio. Ao mesmo tempo que cultivava boas relações com o governo, há relatos de que Doble organizava “correrias”, mesmo aldeado. Dornelles não confirma, mas deixa a entender que teria sido possível o governo descobrir as artimanhas desse cacique, e ter lhe entregado roupas de soldados que haviam morrido de varíola como recompensa por capturar indígenas “selvagens”. Doble morreu em 1864 dessa doença, como muitos outros nesse ano, enquanto ocupava o cargo de Brigadeiro.
No último capítulo do livro, “O Campo dos Bugres vira Vinhedo”, a pesquisa indica caminhos para novos pesquisadores em recortes que ainda estão por se aprofundar. Já foi mencionado aqui o papel de Luís como guia para os italianos que iam chegando, e Dornelles (2021) destaca o seu apoio nos primeiros momentos. Também já foi abordado o tema do apagamento dos indígenas na história da região, e sendo esse um tópico recorrente no livro de Dornelles (2021), a partir de uma leitura atenta, fica explícita a potência de desinvizibilização dessa pesquisa.
Um dos aspectos que mais chama a atenção no livro Os Kaingang e a Colonização Alemã e Italiana no Rio Grande do Sul é o esforço em mostrar como as relações entre imigrantes e os povos Kaingang foram, sim, importantes para a construção das identidades de ambos os grupos. As colônias de alemães e de italianos não se estabeleceram em um “vazio” de pessoas, culturas e sentidos como muitas vezes se retrata nas narrativas oficiais. O trabalho de pesquisa que resultou nessa obra demonstra como os contatos, pacíficos e violentos, forçados e voluntários, geraram mudanças profundas na organização social de todos os grupos envolvidos.
Referências
MABILDE, A. P. T. Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul (1836-1866). São Paulo: Ibrasa, 1983.
MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de História indígena e do indigenismo. 2001. Tese (Livre Docência) – Universidade de Campinas, Campinas, 2001.
SILVA, A. F.; BARCELOS, Artur. H. F. A “Terra de Ninguém“: índios e Bugres nos Campos de Cima da Serra. In: GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (org.). História Geral do Rio Grande do Sul – Povos Indígenas. Passo Fundo: Méritos, 2009. v. 5, p. 63-80.
Resenhista
Guilherme Maffei Brandalise – Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: guilhebrandalise@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0092-752X
Referências desta Resenha
DORNELLES, Soraia Salles. Os Kaingang e a colonização Alemã e Italiana no Rio Grande do Sul (Séculos XIX e XX). Curitiba: Editora CRV, 2021. Resenha de: BRANDALISE, Guilherme Maffei. Desinvisibilização da Agência Kaingang na história da colonização europeia no Rio Grande do Sul. Outros Tempos. São Luís, v. 19, n. 34, p. 438-443, 2022. Acessar publicação original [DR]