O local, o provincial e a construção do nacional | História, histórias | 2021
San José de Chiquititos – Santa Cruz, Bolivia | Foto: Jery Dino Mendes/Wikimedia Commons
O mundo atlântico, entre finais do século XVIII e princípios do século XIX, vivenciou conturbada conjuntura revolucionária. Neste contexto, na América, as revoluções de regeneração e, no seu transcurso, as revoluções de ruptura, teriam como desdobramentos mais evidentes os processos de emancipação política dos domínios ultramarinos de suas mães-pátrias e a conformação de novo tipo de governabilidade: a dos Estados Nacionais. O processo em curso vincularia Estado e Nação, nas acepções modernas destes termos, umbilicalmente à constituição e desenvolvimento das novas unidades políticas soberanas na América.
A despeito de ter sido objeto de vasta bibliografia, iniciada ainda no século XIX, esse processo está longe de ser esgotado. Nas últimas décadas, a historiografia tem buscado, por diferentes caminhos e métodos, discutir múltiplos temas e problemas pertinentes às Independências e aos processos de construção dos Estados Nacionais. Nessa direção, indubitavelmente, uma das principais problemáticas têm sido a do governo dos territórios, seja do ponto de vista político-institucional ou sócio-identitário, e de suas relações com o “centro de poder”, aspecto nevrálgico para o entendimento das novas unidades nacionais.
Tendo em vista essas considerações, o presente dossiê busca promover a reflexão da temática com a reunião de trabalhos sobre as experiências e vivências de múltiplas realidades locais e provinciais em sua complexa – e por vezes contraditórias – inserção nos processos constitutivos dos centros de poder e de instituição de novos ordenamentos pretensamente nacionais. Os trabalhos permitem iluminar a pluralidade de tensões vivenciadas em diferentes províncias, na articulação de experiências e esperanças, de que resultou a elaboração de agendas múltiplas no vasto processo de construção do nacional no Brasil.
O artigo de Ernesto Cerveira de Sena, A Anexação da Província de Chiquitos ao império do Brasil (1825) – O governador e os indígenas – outras perspectivas, apresenta uma visão provocativa ao vincular diretamente história indígena e relações internacionais. Partindo do fio condutor da tentativa de anexação da província de Chiquitos ao Mato Grosso em 1825, o autor inscreve o processo de Independência e construção do Estado imperial no Brasil no conturbado contexto americano do período, marcado por guerras e disputas entre independentistas e realistas, bem como por múltiplas divergências quanto aos territórios das novas unidades nacionais emergentes. Os protagonistas do episódio, contudo, não são apenas diplomatas e políticos, mas, principalmente, os indígenas chiquitanos.
Na sequência, o artigo de Raissa Gabrielle Vieira Cirino, Os conselheiros do Maranhão à serviço do Império (1825-1834), concentra-se na análise da atuação política das famílias da elite provincial do Maranhão no âmbito do Conselho de Presidência, instituição criada nas províncias do Império pela lei da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Brasil de 20 de outubro de 1823. Situado no entrecruzamento da história política institucional e da história social, o artigo coloca em cena a centralidade da “velha arte de governar” como matriz explicativa basilar para a compreensão do processo de integração da província do Maranhão ao Estado imperial e, de maneira mais ampla, de reestruturação do Brasil como um Império no contexto que se seguiu à emancipação política.
Também preocupado com a organização e atuação dos poderes provinciais no Primeiro Reinado e nos anos iniciais do período regencial, o artigo de Eduardo da Silva Júnior, Justiça leiga e cultura jurídica no Brasil Império: as controvérsias em torno do direito e da forma de suspender os juízes de paz (Minas Gerais, 1827-1834), analisa as disputas verificadas na província de Minas Gerais em torno da prerrogativa de suspensão dos juízes de paz, propondo uma releitura sobre o controverso enquadramento jurídico-institucional e social dos juízes de paz naquele contexto. A partir do mapeamento e análise de conflitos de jurisdição que chegaram ao governo provincial mineiro, o autor evidencia os muitos debates e incertezas que marcaram o processo de construção do ordenamento jurídico nacional que, em seus embates cotidianos, contou com a participação direta de um emaranhado de agentes históricos: juízes, câmaras municipais, presidentes de província, Conselhos de Governo, governo imperial etc.
Já o artigo de Carlos Eduardo França de Oliveira, O Ato Adicional (1834) e seus atores: deputados mineiros na criação das Assembleias Legislativas provinciais, ocupa-se da atuação dos deputados da província de Minas Gerais nos debates parlamentares em torno do Ato Adicional de 1834. Nesse sentido, o autor apresenta uma leitura significativamente inovadora sobre a elaboração de um novo arranjo institucional para as províncias do Império ao colocar em cena o “intrincado xadrez político” que acabaria por dar forma à normativa em questão, perpassado por reflexões em torno da monarquia constitucional e do sistema representativo, pela experiência pregressa dos Conselhos Gerais de província e também, no caso dos liberais moderados mineiros, especialmente dos setores proprietários do sul da província, pelo interesse em ampliar seus negócios na praça do Rio de Janeiro.
Em diálogo com as discussões em torno das formas de inserção das províncias e de seus representantes no arranjo político-institucional do Império do Brasil, o artigo de Kelly Eleutério Machado Oliveira, Teófilo Otoni, deputado provincial (1835-1842), consiste em um estudo de trajetória que oferece uma análise acurada das percepções e leituras do célebre político mineiro sobre o papel das províncias na arquitetura dos poderes no escopo de seu projeto de “republicanizar as instituições”. Sem secundarizar os desafios historiográficos pertinentes aos estudos biográficos e de trajetórias, a autora se ocupa da análise da atuação de Teófilo Otoni como deputado na Assembleia Legislativa da província de Minas Gerais, inscrevendo-a, simultaneamente, no escopo mais amplo do complexo processo de construção do Estado e da nação no Brasil do século XIX, marcado por distintos projetos e disputas políticas, historiográficas e mesmo armadas.
Ainda sobre a instância de poder provincial, mas a partir de um outro enfoque e perspectiva, o artigo de Amanda Chiamenti Both, Os caminhos da comunicação: uma análise da administração provincial a partir dos circuitos comunicacionais dos presidentes de província, concentra-se nos mecanismos governativos do Estado monárquico. Trata-se de uma abordagem que coloca em cena dimensões pragmáticas da governação que nem sempre receberam a devida atenção dos historiadores, mas que são, não obstante, como argumenta a autora, centrais para a compreensão do processo de construção do Estado imperial, das práticas governativas e das relações entre o centro político-administrativo do Império sediado no Rio de Janeiro e as autoridades provinciais e locais. É caso, precisamente, da comunicação política escrita que circulava por rotas institucionais e condicionava em boa medida as “formas de governar” analisadas no artigo a partir do estudo exaustivo da administração do presidente de província do Rio Grande do Sul, Antônio da Costa Pinto e Silva.
Por fim, encerrando o dossiê, o artigo de Edilson Nunes dos Santos, Velas enfunadas cortam a baía: propriedade, liberdade e relações de trabalho entre remadores e barqueiros no Rio de Janeiro (c.1830-c.1850), analisa uma dimensão conexa, relativa à circulação de pessoas e mercadorias, temática central para a compreensão das densas conexões e inter-relações quotidianas tanto entre diferentes regiões quanto entre sujeitos e coletividades históricas múltiplas, igualmente constitutivas do Império do Brasil. Nesse sentido, com uma análise quantitativa e qualitativa sobre tráfego marítimo na baía do Rio de Janeiro, o autor propõe uma reflexão sobre o mercado de trabalho marítimo atenta, de um lado, aos impactos de transformações transnacionais e, de outro, aos seus muitos significados para a miríade de sujeitos envolvidos de acordo com suas condições sociais e origens nacionais ou étnico-raciais.
Organizadores
Neuma Brilhante Rodrigues – Professora de História do Brasil Império. Universidade de Brasília ORC-ID: https://orcid.org/0000-0002-5807-3865
Renata Silva Fernandes – Professora de História da América Colonial. Universidade Federal de Goiás ORC-ID: https://orcid.org/0000-0002-9861-5913
Referências desta apresentação
RODRIGUES, Neuma Brilhante; FERNANDES, Renata Silva. Apresentação. História, histórias, v.9, n. 18, p.12-15, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]