A relação entre a História e a Internet não é algo tão novo quanto alguns podem supor. Na década de 1990, por exemplo, pesquisadores americanos já discutiam o uso da internet como fonte e ferramenta de pesquisa, como suporte de memórias e espaço de divulgação de trabalhos acadêmicos, e analisavam os impactos do uso dessas novas tecnologias nas noções de tempo e espaço. Desde então, começaram a surgir reflexões sobre a própria escrita da História, agora perpassada pela rede mundial de computadores.
Em 2001, Rolando Minutti, professor de História Moderna da Universidade de Florença, publicou um livro que iniciou um debate que se esboçava à época, destacando as dúvidas e expectativas dos historiadores em relação ao que se chamava de “revolução digital”. Estes debates seguiram na direção de analisar quais seriam os desdobramentos da Internet nos estudos de História (LUCCHESI, 2012).
Estas tendências historiográficas estudadas por Anina Lucchesi tratam da apropriação da Internet pela História, seja como ferramenta de pesquisa, repositório de fontes ou novo meio para divulgação de trabalhos acadêmicos (LUCCHESI, 2012).
No caso do Brasil, desde pelo menos 2013, já era possível encontrar historiadores discutindo a História Digital, tentando entender do que se tratava e qual a sua dimensão para o ensino, a pesquisa e a divulgação históricas.
Em eventos específicos do campo da educação e do Ensino de História, começaram a aparecer trabalhos voltados para discutir a relação entre essas tecnologias e o ensino da disciplina nos ensinos fundamental e médio, na tentativa de reavaliar e repensar os modelos de ensino aplicados. No entanto, Carmem Tereza Gabriel e Marcela Albaine chamam a atenção para o fato de que se percebe em alguns desses trabalhos uma forte associação discursiva entre inovação e essas tecnologias, como se a sua existência por si só representasse a superação de um ensino qualificado como “tradicional” (GABRIEL; ALBAINE, 2014).
As reflexões apresentadas inicialmente nos levam a duas constatações. A primeira é a de que estamos imersos numa sociedade completamente mediada pelo mundo digital e essa situação não foge aos nossos alunos. A segunda é a de que, com a maior ampliação dos espaços de divulgação do conhecimento histórico, faz-se extremamente necessário ampliar nas aulas de História a discussão sobre o processo de construção do conhecimento histórico, na medida em que os alunos precisam compreender que o conhecimento sobre o passado não é algo dado, mas produzido, dando a ele condições de praticar a crítica histórica no seu cotidiano.
Os textos selecionados para compor este dossiê da Revista Historiar vão neste sentido. Apresentam reflexões que nos fazem pensar nas tecnologias para além do seu aspecto funcional, contribuindo para que professores e professoras da Educação Básica elaborem projetos e ações que ajudem na formação do pensamento histórico dos estudantes.
O primeiro artigo, intitulado Um repositório digital para ensinar e aprender História. O BaObAH como lugar de formação, escrito pelas professoras Vanessa Spinosa e Sonia Wanderley, apresenta o repositório digital que está sendo desenvolvido para reunir objetos de aprendizagem de História que possam ser utilizados no ensino básico. No texto, as autoras centram suas reflexões em três pontos principais: as formas de organizar a informação, a pesquisa dos objetos de aprendizagem e seu desdobramento para a prática docente e o significado de aprendizagem a partir de um diálogo com a Didática da História.
No artigo Domínios do digital como competência. Ensino de História e Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a autora Aline Vanessa Locastre discute a articulação entre o Ensino de História e cultura digital e como essa perspectiva se apresenta nas competências gerais da BNCC. No texto, a autora também discorre sobre as possibilidades do uso das tecnologias digitais para o professor-pesquisador de História.
Os autores Alexandre Freitas Campos e Sonia Wanderley nos apresentam o texto “Nazismo de esquerda” e fake history. Do Facebook à Netflix. Uma análise do streaming para a educação em tempos de pós-verdade. Aqui os autores partem de alguns documentários da Netflix, como “O círculo diabólico de Hitler”, “A Segunda Guerra em cores”, “Como se tornar um tirano” e “Hitler – Uma carreira” para discutir o fenômeno da pós-verdade no contexto da história pública e do Ensino de História. Seu objetivo é tentar mapear como os conceitos de esquerda e direita aparecem nessas produções audiovisuais.
O quarto artigo do dossiê é Imperialismo Digital. A representação e simulação dos povos americanos e da colonização em Sid Meier’s Civilization VI, de Diego Ferreira Rands. Aqui o autor investiga o uso educacional do referido game a partir das representações e simulações que o mesmo faz das sociedades americanas originárias e do processo colonizador, e defende que o uso de games históricos em sala de aula é tão possível quanto a utilização de um filme ou um romance.
Em seguida, Ana Amélia Rodrigues de Oliveira escreve o artigo O youtube no Ensino de História. Reflexões sobre uma experiência de pesquisa. Nele a pesquisadora relata uma pesquisa desenvolvida com alunos do Ensino Médio e apresenta, para os professores e professoras da Educação Básica, possibilidades de uso de vídeos produzidos por canais do youtube como fonte em sala de aula. A ideia da autora é que os professores possam assumir uma postura mais crítica em relação a essas produções e utilizá-los como elementos desencadeadores de uma aprendizagem histórica mais significativa.
Além dos textos que compõem este dossiê temático, a Revista Historiar também apresenta artigos de tema livre. São eles: História social da pobreza no Cariri na segunda metade do século XIX, de Antônia Marciana Silva Holanda; O cinema como signo de progresso. A atividade cinematográfica e seu efeito modernizante em Cajazeiras-PB (1905-1945), de José Antônio da Silva Neto e Viviane Gomes de Ceballos; “Eu me reconheço aqui…”. Um estudo acerca da mudança da importância dada pelas crianças do bairro Dom Expedito, Sobral-CE, em diferentes épocas do ano, de Francisco de Sousa Furtado; Likes, dislikes e views. Reflexões sobre linguagens e narrativas dos meios virtuais para a pesquisa histórica, de Ygor Pires Monteiro; A doença como punição e o doente como culpado. Discurso médico e a construção da culpa nos tracomatosos do Ceará (1928-1940), de Pablo Victor Santiago Lima; e Por uma história local. Um debate entre teoria e prática na formação do docente em História-Fafidam/UECE (2010-2020), de Luciana Meire Gomes Reges.
E por último, mas não menos importante, a entrevista com a professora Marcella Albaine Farias da Costa, da Universidade Federal de Roraima, onde fala da sua formação, dos seus objetos de pesquisa e reflete sobre a relação entre as tecnologias digitais e o Ensino de História.
Esperamos que os artigos apresentados neste dossiê possam inspirar, instigar e incomodar professores, professoras e os demais profissionais comprometidos com o Ensino de História. Boa leitura!
Referências
COSTA, Marcella Albaine Farias da; GABRIEL, Carmen Teresa. Sentidos de “digital” em disputa no currículo de história: que implicações para o ensino desta disciplina? Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 165 ‐ 185, mai./ago. 2014.
LUCCHESI, Anita. Entre a Storiografia Digitale e a Digital History. Um olhar comparativo. Anais do II Seminário Versões do Mundo Contemporâneo. Disponível em: https://orbilu.uni.lu/bitstream/10993/31139/1/Entre_a_Storiografia_Digitale_e_a_Digita.pdf . Acesso em: 15. jun/2021.
Organizadora
Ana Amélia Rodrigues de Oliveira – Instituto Federal do Ceará.
Referências desta apresentação
OLIVEIRA, Ana Amélia Rodrigues de. Novas tecnologias e ensino de História. Revista Historiar, v. 14, n. 26, p. 3-6, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]
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