Ney Matogrosso… Para Além do Bustiê: Performances da Contraviolência na Obra Bandido (1976-1977) | Robson Pereira da Silva
Ney Mato Grosso. Detalhe de capa do disco “Bandido” (1976). Imagem: BR320
“[…] O personagem é um determinante da ação, que é, portanto, um resultado de sua existência e da forma como ela se apresenta. O personagem é o ser humano (ou um ser humanizado, antropomorfizado) recriado da cena por um artista-autor, e por um artista-ator.” (PALLOTTINI, 1989, p. 11)
O processo de analisar uma obra artística é complexo, e se tratando da Música Popular Brasileira (MPB) não é diferente. Ao fazê-lo é comum atentar-se mais a letra, aspecto logocentrico da canção, mas além da parte do texto é preciso nos atentar também aos intérpretes, pois eles não podem ser resumidos somente a quem dá voz a composição, por esses a relação logos e melos é corporificada. Tendo isso em mente, é importante nos questionar: Qual o lugar do intérprete na Música Popular Brasileira?
Em vista disso, o historiador Robson Pereira da Silva busca compreender como a historiografia tem olhado para os intérpretes da MPB, em especial Ney Matogrosso, no livro Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976 – 1977), de 2020, lançado pela Editora Appris, fruto de sua dissertação de mestrado.
Silva inicia o livro nos apresentando seu sujeito de pesquisa, o qual tem sido foco de seus estudos desde a iniciação científica, ainda na graduação. Um dos problemas iniciais apresentados, pelo autor, diz a respeito de como a academia tem olhado para Ney Matogrosso. Após fazer um levantamento bibliográfico, o autor constata que, embora, o cantor seja um agente importante no cenário musical brasileiro, ainda assim, existem poucos trabalhos sobre ele, especialmente na área de história, se comparado com nomes cristalizados na história da Música Popular Brasileira, como, por exemplo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Neste sentido, Silva identifica que parte desse problema da cristalização de determinadas figuras na história é fruto de algo que ele chama de “tirania do texto” e sistematização de uma memória histórica constituída no bojo do processo dos acontecimentos históricos, que é a valorização do texto, ou seja, dos compositores, e então os intérpretes ficam secundarizados:
[…] Quando estudamos as décadas de 1960/70, nós, historiadores, em nossas análises histórico-culturais, elegemos majoritariamente os compositores e as atividades literomusicais, não as atividades performáticas e dos intérpretes que articulam texto musical, cena, audiovisual etc. (SILVA, 2020, p. 58)
Para ilustrar melhor essa situação dos agentes cristalizados pela memória histórica sobre a resistência contra a ditadura militar, o autor utiliza os exemplos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que são figuras cristalizadas em especial pela sua participação e importância no movimento do Tropicalismo, e essa diferença pode ser notada quando intérpretes como Gal Costa nem mesmo possui trabalhos, até então, na área de história, a respeito da sua participação durante a Ditadura Militar.
Nesse sentido, Silva decide percorrer um caminho diferente da maioria dos outros historiadores, e invés de se preocupar em analisar apenas as letras das composições, ele se dispõe a analisar o trabalho de intérprete de Ney Matogrosso, observando aspectos de sua performance, como figurinos, cenários, movimentos corporais e, principalmente, a forma como o cantor vocaliza as canções de forma única.
Ney Souza Pereira é um intérprete da MPB, que nasceu em 1941 na cidade de Bela Vista (MT) que hoje é (MS), mais conhecido como Ney Matogrosso, ele é destacado por suas interpretações polêmicas, cuidadosamente montadas e que apresentavam aspectos da marginalidade. Desde cedo, a marginalidade esteve presente em sua vida, pois durante a adolescência, Ney demonstrou seu lado hippie, ao sair da casa de sua família para viver de sua própria arte, escolhendo assim a marginalidade, de acordo com o próprio cantor na obra de Silva, viver à margem foi uma escolha dele, na juventude.
O início de sua carreira como cantor se deu ao entrar no grupo de rock progressivo “Secos & Molhados”, que durou de 1972-1974 com a presença do intérprete, mas seu reconhecimento veio através de um esforço labutador e um projeto de carreira solo. O recorte feito pelo autor para sua pesquisa foi a segunda metade da década de 1970. Voltando-se para a carreira solo de Ney Matogrosso, mais especificamente para o seu segundo álbum, que foi intitulado Bandido, lançado no ano de 1976.
Água do Céu – Pássaro (1975), sendo este também conhecido como O homem de Neanderthal graças a sua faixa de abertura, foi o primeiro álbum que o cantor lançou em sua carreira solo, após sair do grupo Secos & Molhados. Se tratando de um artista muito dedicado à performance, Ney Matogrosso fez com que O homem de Neanderthal fosse um espetáculo grande, com cenários muito elaborados, roupas chamativas e maquiagens carregadas, o transformando por vezes em um híbrido de homem-animal, isso fazia com que as pessoas não o reconhecessem quando estava descaracterizado, como o próprio artista relatou. Mas todos esses elementos cênicos e performáticos fizeram com que os preços dos espetáculos ficassem caros, e com isso, Ney Matogrosso passou a sofrer com a elitização do seu show, aspecto esse que ele quis mudar imediatamente com o álbum e espetáculo seguinte, Bandido.
Com dívidas acumuladas graças aos espetáculos de O homem de Neanderthal, Ney decidiu fazer um segundo álbum diferente, que deveria ter um material de qualidade, mas que também fosse popular, no sentido de maior alcance de público. Quanto aos shows, muito do cenário foi reaproveitado do espetáculo anterior, além de objetos do próprio artista. No que diz a respeito à caracterização, o híbrido de homem-bicho foi deixado de lado. Agora, Ney Matogrosso apareceria de rosto praticamente limpo, exceto por algumas maquiagens específicas que lhe dessem uma aparência sensual. Agora o corpo esguio estaria mais à mostra, e suas roupas teriam elementos de um bandido mesclado com elementos ciganos.
A estreia de Bandido aconteceu em um festival de música em uma penitenciária do Rio de Janeiro, no ano de 1976, onde os detentos escolheram Ney como símbolo de liberdade. Neste lugar foi onde a representação encontrou o representado, num aspecto de representatividade. Essa apresentação teve uma repercussão controversa na mídia, embora como Silva abordou em sua obra, para o cantor foi uma experiência positiva.
Contendo 10 faixas, o segundo álbum de Ney Matogrosso na forma musical contém gêneros e ritmos latinos, no conteúdo está a liberdade, o erotismo e a natureza. Quanto aos compositores escolhidos, estes eram tratados como bandidos e marginais, como é o caso de Gilberto Gil, Rita Lee, Odair José e Chico Buarque. (SILVA, 2020, p. 194)
Quanto à performance, ela também vincula discurso, assim como na literatura. Ao pensar em Ney como um intérprete, é preciso ter em vista que não se trata de alguém que somente canta as letras selecionadas para seus álbuns, sendo que muitas vezes o cantor seleciona uma composição e a interpreta de um modo único, trazendo aspectos muito presentes no seu estilo, como o erotismo e o duplo sentido. Para ilustrar melhor isso, Silva faz a análise de algumas músicas, como é o caso de Trepa no coqueiro, que é feito, um jogo de linguagem entre o som musicado e a letra cantada, a fim de elucidar um trocadilho com a palavra “prejuízo”, sendo cantada como “pré-juízo”.
A marginalidade sempre esteve presente na carreira do cantor, desde o período em que ele esteve como vocalista do grupo Secos & Molhados, e continuou posteriormente a aparecer em suas obras. Robson P. da Silva, a partir da questão erótica, relata que na década de 1970 houve um aumento considerável de artistas que utilizavam bastante do Eros em suas performances, como é o caso de Ney e por isso, ele sempre costumeiramente era associado à homossexualidade. Neste contexto, o erotismo foi apropriado, mesmo recebendo desaprovação por parte da sociedade, isso não o impedia de fazer sua arte.
A figura do Bandido era utilizada como um personagem enunciador de práticas da liberdade. Assim:
“[…] Fez com que Ney Matogrosso emanasse atitudes artísticas diante de fenômenos humanos, como prática subversiva que destacou o uso performativo da linguagem artística que, por conseguinte, desembocou na realização do espetáculo que o aproximou da audiência; esse foi um dos primeiros interesses que construíram a obra Bandido, mas que foram ultrapassados à medida que corporificavam respostas à própria condição do artista e da sociedade, no Brasil, da década de 1970.” (SILVA, 2020, p. 198)
Destarte, Ney Matogrosso com seus vários personagens marginalizados se permitia trazer à cena os elementos sociais e culturais, como a violência, erotismo e marginalidade como formas de resistência à aos contextos de repressão latentes na História do Brasil. Seu lado latino, a natureza, o bandido, o cigano, todos compunham esse personagem criado para os espetáculos do seu segundo álbum. Nesta produção, o Bandido não era somente o marginal, mas também o herói.
Com um espetáculo, Bandido pode ser lido por atos teatrais. As apresentações eram carregadas de atos improvisados, cheios de requebro e sensualidade que foram vistos de forma controversa por parte da sociedade, como era o caso dos conservadores, mas para outros, como no caso dos presidiários da penitenciária que o show estreou, era símbolo de liberdade, esses relatos podem ser observados nas fontes documentais trazidas pelo autor no decorrer da obra.
Desta feita, Silva consegue cumprir com o seu objetivo de preencher essa lacuna historiográfica a respeito das obras de Ney Matogrosso. Com uma pesquisa muito bem estruturada que se iniciou durante o programa de Iniciação Científica na graduação, o autor aborda aspectos da marginalidade que sempre estiveram presentes na vida do artista, antes mesmo dele entrar para o grupo Secos & Molhados, e que continuaram transpassando em seus álbuns e performances ao longo dos anos.
Além disso, Robson P. da Silva faz críticas a respeito da cristalização de algumas figuras na história, além da tirania do texto, que valoriza mais os compositores e secundariza os intérpretes, como se esses últimos fossem somente reprodutores de textos musicais. Pensar assim é um limite, pois fazer análise da performance se trata de algo complexo, que se deve se atentar ao canto, a forma que o cantor pronuncia as palavras, o cenário, figurino, movimentos corporais e ao analisar a performance como uma vinculadora de discurso, Silva não se limita às composições ou análises textuais em seu trabalho, trata de um processo de significação e atribuição de sentido mais amplo e complexo.
Ney Matogrosso desejou transgredir e representar aspectos da subversão, que fazem parte de sua história, especialmente pelo contato com a marginalidade, que se apresentaram desde cedo, como o ato de sair de casa ainda jovem, contrariando um pai que era um militar, e escolhendo viver à margem da sociedade por meio do artesanato. Suas músicas e performances eram consideradas como desviantes, especialmente, durante a repressão da Ditadura Militar. Suas performances foram também resistência. Posto isso, Silva obtém sucesso ao demonstrar a importância dos intérpretes não só para a Música Popular Brasileira, mas também para a história da cultura brasileira.
Referências
SILVA, Robson Pereira da. Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977). Curitiba: Appris, 2020.
PALLOTTINI, Renata. A construção do personagem. São Paulo: Ática, 1989.
Resenhista
Jessica Ferreira Alves – Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Jataí – UFJ (2019). Mestranda do Curso de Pós Graduação Mestrado em Estudos Culturais UFMS/CPAQ. Bolsista CAPES
https://orcid.org/0000-0002-4073-6608
Referências desta Resenha
SILVA, Robson Pereira da. Ney Matogrosso… Para Além do Bustiê: Performances da Contraviolência na Obra Bandido (1976-1977). Curitiba: Editora Appris, 2020. Resenha de: ALVES, Jessica Ferreira. O Personagem marginal, em Ney Matogrosso… Para ALém Do Bustiê: Performances da Contraviolência na obra Bandido (1976-1977), de Robson Pereira da Silva. Albuquerque: revista de história, v. 14, n. 27, p. 159-163, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]