Mulheres empilhadas | Patrícia Melo

Patricia Melo Imagem Agenda BH
Patrícia Melo | Imagem: Agenda BH

A imaginação como dinamismo criador é a rejeição da tirania da forma fixa que parece se oferecer à percepção. As imagens dinâmicas não só formam, mas, sobretudo, deformam, transformam, ampliam e aprofundam a chamada realidade. É a imaginação, poder maior da natureza humana, que não só inventa coisas, mas, principalmente, inventa caminhos novos.

(Norma Telles, 2010, p. 2) Há exatamente 15 anos, no mês de agosto de 2006, foi sancionada a lei responsável por prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher no Brasil. Fruto da luta contra as violências experienciadas por mulheres e com o apoio de órgãos internacionais, o gênero foi reconhecido como um marcador fundamental de opressões sistematizadas e invisibilizadas pelo Estado, que se ausentava diante da necessidade de medidas legais, ações efetivas e reconhecimento dos agressores.1 A resistência se deu através de vozes e atuações femininas que, organizadas em coletivos feministas, centros de advocacia e assessoria jurídica, possibilitaram a aprovação da lei e continuam zelando por ela. Inspirado nesse contexto real, o romance ficcional Mulheres Empilhadas da premiada autora brasileira Patrícia Melo, nasce em 2019 como um alerta da importância de estarmos atentas ao crime que continua nos tirando a vida.

Uma mulher morre no Brasil a cada duas horas, o Acre, estado que serve de ambientação para a narrativa, lidera a estimativa de ocorrência de crimes de ódio motivados pela condição de gênero2.

Com destino a Cruzeiro do Sul, uma jovem advogada viaja a trabalho para acompanhar e analisar julgamentos de feminicídio que fariam parte de um livro sobre a “matança autorizada de mulheres” pelo Brasil (MELLO, 2019, p. 24). O caso de uma indígena que aos quatorze anos é estuprada, torturada e morta, toma o centro da narrativa, se enraizando em todos os pontos da trama. Aliada à misoginia e a violência contra os povos indígenas, uma rede de corrupção e narcotráfico realizada na região fronteiriça dificulta as investigações sobre o assassinato da jovem.

O corpo de Txupira foi encontrado boiando em um igarapé, com braços amarrados, mamilos extirpados e cacos de vidro no útero, posteriormente retirados pela vagina. Lourdes Bandeira aponta para a existência de uma dimensão da violência que objetiva atingir especificidades identitárias das mulheres. O ódio é direcionado a todo corpo marcado pelo elemento feminino, logo, agressões direcionadas aos seios, vaginas, úteros e desfigurações faciais seguem o objetivo de destruição identitária e desumanização (BANDEIRA, 2017, p. 30-32). No caso de Txupira, a autora do romance ainda nos direciona para reflexões sobre como o cruzamento de dimensões da identidade afetam “aspectos estruturais, políticos e representacionais da violência contra as mulheres nãobrancas” (CRENSHAW, 1991, p. 1244). Teorizada pela defensora dos direitos civis e advogada Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade permite analisar experiências que, a partir das sobreposições de categorias de opressão, complexificam as fronteiras tradicionais da raça e da discriminação de gênero.

Por vezes, em Mulheres Empilhadas, Patrícia Melo se arrisca ao reproduzir, através da protagonista branca-paulista-classe-média, um olhar forasteiro de piedade aos povos indígenas do Acre, descritos como “pobres” e “abandonados”, vivendo na precariedade (MELO, 2019, p. 140). Sabemos o resultado desastroso da equação que relaciona o “salvacionismo” da branquitude colonizadora e as experiências dos povos originários. Por sorte, o risco apontado se limita a sutileza de descrições breves e pontuais.

O caráter múltiplo da violência de gênero, do perfil das vítimas e da identidade dos agressores, é tópico de destaque no romance, demonstrando que “matar mulheres é um crime democrático, pode-se dizer” (MELLO, 2019, p. 20). A autora constrói um enredo que mistura a história de mulheres fictícias e narrativas reais, anunciadas no início de capítulos, enfatizando o aspecto cotidiano da violência e sua amplitude plural, afetando diferentes idades, classes, raças e corpos femininos. A protagonista é rodeada por casos de violência de gênero que a acompanham desde a infância até a idade adulta, testemunhando o crime cometido por seu pai, sofrendo agressões do companheiro e presenciando violências contra mulheres cujas trajetórias a atravessam. Analogias com a vida ordinária tornam didático o caráter corriqueiro dos crimes de feminicídio, como o ciclo da violência (tensão – agressão – arrependimento – carinho) comparado a fases de videogame ou o “aviso prévio” dado pelo criminoso informando à vítima que seus dias de vida estão contados. A dimensão doméstica da violência de gênero é outro aspecto constantemente reiterado durante a narrativa, “Faca. Foice. Canivete. Enxada. Garrafas. Martelos. Fios elétricos. Panelas de pressão. Espetos de churrasco. Na hora de assassinar uma mulher qualquer objeto é arma” (MELLO, 2019, p. 20).

Estudiosos da violência concordam na dificuldade de definição do conceito, cujas significações devem ser analisadas através da variação de condições, normas e contextos sociais, “o termo é potente demais para que um consenso seja possível” (ARBLASTER, 1996, p. 803). Robert Muchembled aponta que, durante muito tempo, a violência foi compreendida e estudada através de uma dupla concepção: ilegítima, exercida individualmente de encontro às leis e à moral e legítima, quando estabelecida por instituições, como o Estado e a Igreja (MUCHEMBLED, 2012, p. 11). No entanto, para além de um caráter instrumental, onde a violência é praticada como meio para alcançar uma finalidade, é preciso considerar sua potencialidade como fenômeno estrutural, modelador de relações pessoais e dinâmicas sociais, com base na misoginia. Misoginia que, também de maneira estrutural e autorizada, estabelece abjeção, ódio e horror a todo corpo marcado pelo elemento feminino. Parafraseando Simone de Beauvoir, Lourdes Bandeira afirma “Não se nasce mulher, mas se morre por ser uma mulher!” (BANDEIRA, 2017, p. 16) Reconhecendo e experienciando essa realidade que incide em corpos femininos, a protagonista de Mulheres empilhadas, ao lado de outras mulheres indígenas, planeja a vingança através de experiências oníricas e imaginativas, impulsionadas pelo uso da ayahuasca e do carimi3. Utilizado por sociedades tradicionais amazônicas e incorporada em religiões sincréticas a ingestão do chá de ayahuasca tem efeitos antidepressivos, altera a percepção de estímulos externos e provoca mirações divinatórias. Estudos recentes desenvolvidos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte apontam para o aumento da atividade cerebral em áreas do córtex relacionadas à visão, recuperação de memórias e imaginação intencional e prospectiva (RIBEIRO, 2019, p. 189). Sob o efeito da ayahuasca, a personagem-narradora revive experiências do passado e reativa memórias ofuscadas pelo trauma do assassinato de sua mãe.

A conectividade cerebral intensificada a partir da ingestão do chá torna, segundo Sidarta Ribeiro, a mente mais “aberta”, “alcançando um estado mais flexível em que pensamentos sobre futuro ou o passado não são mais identificados mentalmente com a realidade que representam, mas sim associados de forma livre” (RIBEIRO, 2019, p. 150).

Em estado de transe onírico, a imaginação feminista da protagonista de Mulheres empilhadas evoca as Amazonas vingadoras da Liga das Mulheres das Pedras Verdes. Guerreiras da região amazônica, bem como as “avistadas” durante a expedição de Francisco Orellana, elas se isolam em aldeias femininas, caçam homens para procriação e planejam sem piedade a morte daqueles que exploram florestas e estupram mulheres. A bebida ritualística era responsável por criar um espaço de sororidade e liberdade a partir do encontro com as amazonas. Desafiando regimes de verdade e penetrando redes discursivas, Tânia Navarro Swain nos atenta para a potência dos feminismos, “estas poderosas correntes de contraimaginário”, ao interrogar “o social e suas instituições, iluminando a incontornável historicidade das relações humanas e dos sistemas de apreensão do mundo” (SWAIN, 2000, p. 2). As visões da protagonista-narradora se conectam com as poéticas visuais da arte contemporânea feminista. Fábrica Fallus (1992-2004) em carros alegóricos com pirocas  Notas * Doutoranda em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), bolsista CAPES.

Referências

ARBLASTER, A. Violência In: OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social do século XX. Jorge Zahar Ed.: Rio de Janeiro: p 803-805, 1996.

BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. In: Mulheres e violências: interseccionalidades. Organização Cristina Stevens, Susane Oliveira, Valeska Zanello, Edlene Silva, Cristiane Portela, Brasília: Technopolitik, 2017.

BRASIL, Diário Oficial. Lei. n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 8 de agosto de 2006.

CORRADI, Consuelo. Violence, identité et pouvoir: Pour une sociologie de la violence dans le contexte de la modernité. Socio-logos, Revue publié par l´Association Française de Sociologie, Paris, 2009. Disponível em https://journals.openedition.org/socio-logos/2296. Acesso em 20 de julho de 2021.

CRENSHAW, Kimberle. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, July, 1991.

MELO, Patrícia. Mulheres empilhadas. São Paulo: Leya, 2019.

MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

NAVARRO-SWAIN, Tânia. A desconstrução das evidências: perspectivas feministas e foucaultianas. In: Lucila Scavone; Marcos César Alvarez; Richard Miskolci. (Org.). O legado de Foucault. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 119-140.

NAVARRO-SWAIN. Tânia. (Org.). “A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitário”. Textos de História. Dossiê Feminismos, teorias e perspectivas. Brasília, Edunb/PPGHIS, v.8, n. 1-2, 2000.

RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

TELLES, N. A. “Anjos da Anarquia”. Revista eletrônica Labrys, Estudos Feministas, n. 17, jan./jun. 2010. Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys17/arte/norma.htm. Acesso em 20 de julho de 2021.

Notas

1 A lei prevê a assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, conteúdo explorado por Patrícia Melo ao enfatizar a casa como local privilegiado onde se realizam agressões por parte de conhecidos da vítima, parentes e companheiros. A lei também enfatiza os direitos fundamentais como inerentes à pessoa humana, logo, incluindo todas as mulheres “independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião” (Brasil, 2006).

2 Dados colhidos através do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Monitor da violência, construído pela parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da USP, o Fórum Brasileiro de Segurança Público e o G1. Disponível em http://especiais.g1.globo.com/monitor-daviolencia/ 2018/mortes-violentas-no-brasil/.

/dados-mensais- .2021?mes_2021=mar%C3%A7o&estado=AC&crime=Todos%20os%20crimes%20violentos. Acesso em 20 de julho de 2021.

3 O uso se dá através do contato da personagem com as aldeias, de nomeação fictícia, dos Ch’aska e Kuratawa.


Resenhista

Caroline Farias AlvesUniversidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Doutoranda em História Cultural, bolsista CAPES. E-mail: carolinef.alves@hotmail.com.


Referências desta resenha

MELO, Patrícia. Mulheres empilhadas. São Paulo: Leya, 2019. Resenha de: ALVES, Caroline Farias. Imaginação feminista contra a violência de gênero no romance Mulheres empilhadas. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.19, n.1, jan./jun. 2022. Acessar publicação original.

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