Maria Antonieta Antonacci possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além de ser mestra em História Econômica pela Universidade de São Paulo e pósdoutora em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), da França. Atualmente é professora associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo demonstrando maestria em História da África, Culturas Africanas, Afro-Brasileiras e também em História do Brasil.
É imprescindível citar que em 2003, quando promulgada a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas do Brasil, Antonacci posicionou-se veementemente contra o ensino, no curso de História da PUC-SP, de uma História Africana contada sob a ótica de historiadores europeus. A partir dessa justa militância, a professora intensifica seus estudos acerca da temática supracitada, dando vida a sua obra mais famosa, o livro Memórias Ancoradas em Corpos Negros.
Obtidos a partir da matriz oral, os escritos que compõem a obra supracitada trazem um viés contra-hegemônico sobre as vidas, vivências e experiências de pessoas que carregam em seus corpos a força de sua ancestralidade negra. A presente resenha, porém, pretende enfocar-se ao conteúdo de um dos capítulos do referido livro, tendo por título Corpos negros desafiando verdades.
Nesse capítulo, a autora trabalha através da perspectiva da cosmovisão africana no que diz respeito a expressão “corpo”. Para a cultura ocidental, corpo se refere à estrutura material e palpável constituída de carne e osso. Já para os africanos, corpo é um lugar de memórias, no qual se carregam gerações e tradições:
Por muitos caminhos, linguagens orais, visuais, sonoras trazem lutas sem fronteiras por liberdade, evidenciando que corpo e memória são indissociáveis entre povos e grupos socializados em matrizes orais. Suas tradições, transmitidas em presença de corpos, materializam-se em gêneros não-verbais de narratividade inerentes à moldagem de corpos enquanto fontes vivas. (ANTONACCI, 2014, p.159).
Sob essa narrativa, Antonacci disserta que houve uma tentativa de silenciar africanos criminosamente traficados pelas rotas do Atlântico. Todavia, não puderam prever que esses povos encontraram na musicalidade, na oralidade e em suas vibrações um canto de resistência. Mas como de praxe, a cultura da dominante civilização ocidental cristã apressou-se para colocar a sonoridade das expressões dos escravizados na insciência.
Gilberto Freyre, por exemplo, suaviza a escravidão em sua obra Casa Grande & Senzala, além de atribuir “positividade as práticas sexuais de colonizadores portugueses e senhores de engenho, que teriam gerado, entre casa-grande e senzala, ‘encantados’ legados de madrinhas negras a netinhos brancos, em idealizada convivência” (ANTONACCI, 2014, p. 161), objetivando valorizar, em vias erradas, a mestiçagem.
Apesar da tentativa de silenciamento, da relativização do processo de escravidão e de seus frutos, é sabido que os corpos africanos em diáspora de forma alguma se renderam. Seguiram perpassando o tempo e espaço em simbiose, deixando um pouco de si nas culturas. Tome-se como demonstrativo a presença destes nos carnavais cariocas (o que trouxera um certo incômodo à classe média das décadas de 1926 a 1934) hoje tido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, no teatro, na música, na dança com a famigerada Capoeira.
Convém destacar o papel de Cecília Meirelles na projeção embelezada desses corpos negros, por meio de belíssimas pinturas, embora se perceba uma narrativa entre o “próximo e distante” (ANTONACCI, 2014, p. 167) postulada pela personalidade aqui mencionada. Ao tecer alguns comentários sobre as ilustrações, Meirelles também demonstrava, ainda que sem intenção (ou não), um olhar etnocêntrico que fomentava o racismo com a ideia de que a cultura negra era algo em processo de desaparecimento.
Outrossim, Antonacci busca analisar, por meio de dissecções de registros orais, a questão dos corpos das mulheres negras e como estes eram vistos. Sabe-se que o patriarcalismo e o machismo contido nele já são, por si só, um grande infortúnio para atuação social da figura feminina. Isso se agrava mais ainda quando se tratam de negras, levando em consideração o racismo construído historicamente nas estruturas sociais do país. Freitas (2019, p.1) discorre que “o racismo, como protagonista de um cenário social, isolou a mulher negra e a reduziu a um corpo inexpressivo”.
Corroborando a fala acima, se pontua que os corpos das escravizadas eram tidos como “vitrine aos patrões”, comumente estereotipados como objeto sexual e de desejo. Em consonância com Antonacci, Bell Hooks em sua obra Intelectuais Negras aborda, em uma breve passagem, justamente essa questão de hiperssexualização dos corpos das mulheres negras:
Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representa-las como altamente dotadas de sexo a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado. Essas representações incutiram na consciência de todos a ideia de que as negras eram só corpo sem mente. (HOOKS, 1995, p. 469).
A posteriori, as descendentes dessas mulheres ainda são assediadas com essa visão, além de serem taxadas como “fantasia brasileira”, tanto na tendência designada a simbolizar a mulher brasileira na figura de uma negra baiana, tornando-a uma reles alegoria, quanto no estereótipo da negra hiperssexualizada, comumente difundido pela mídia.
Em suma, fica explícita a tentativa de branqueamento da cultura através de mecanismos como silenciamentos, criação de estereótipos, desmoralizações, etc. Não é hodierno o fato de que sempre existiu um árduo empenho para a invalidação dos corpos negros. Mas, através da oralidade, como é o exemplo constantemente usado por Antonacci, existe de igual modo uma tentativa de positivação da negritude. Tentativa essa de resgate principalmente dos corpos, desses organismos sociais e humanos vivos, cheio de memórias.
Os corpos negros que desafiam as verdades são estes que resistem a narrativas epistemológicas eurocêntricas, à colonialidade há muito tempo imposta nas ciências. São corpos que se desdobram e permanecem. Seguem carregando a força de sua afrodescendência. São lugares de memórias, sobretudo, vivos, para que ninguém os esqueça.
Referências
ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos negros desafiando verdades. In: ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC, 2014.
FREITAS, Thayanne Tavares. Resenha: RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017. 112 p. (Feminismos Plurais). Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 25, n. 54, p. 361-366, maio/ago. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/WrqXLFMHpLHgGZCpnph8wCM/?format=pdf&lang=pt Acesso em 30 mar. 2022.
HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Revista de Estudos Feministas, vol. 3, nº2, Florianópolis: UFSC, 1995, pp. 464-478. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509708/mod_resource/content/0/16465-50747-1-PB.PDF Acesso em 30 mar. 2022.
Resenhista
Geovanna Moraes de Almeida – Acadêmica de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac), componente do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Ufac (Neabi/Ufac), egressa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência entre os anos de 2018 e 2020. Atua no grupo de pesquisa: “O Processo de Construção do Docente em História: possibilidades e desafios da formação inicial e da formação continuada do fazer-se historiador em sala de aula, na linha de pesquisa “Estágio Supervisionado do Ensino de História” (2021- Atual). Atualmente compõe o corpo editorial da Revista Discente de História da Universidade Federal do Acre (UFAC) Das Amazônias. Faz parte do programa institucional de Residência Pedagógica do Curso de Licenciatura em História (2021), sendo também Bolsista de Iniciação Cientifica no Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica 2021/2022: Educação das relações étnico-raciais e suas práticas pedagógicas nas escolas do estado do Acre sob orientação da Profª. Ma. Flávia Rodrigues Lima da Rocha.
Referências desta Resenha
ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos negros desafiando verdades. In: ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC, 2014. Resenha de: ALMEIDA, Geovanna Moraes de. Corpos negros como lugar de memória: lembrar é resistir. Das Amazônias. Rio Branco, v. 5, n.1, p. 136-139, 2022. Acessar publicação original [DR]
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