Max Weber und die Erste Weltkrieg | Hinnerk Bruhns

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Hinnerk Bruhns | Imagem: Hypotheses

Atribuem-se a Heráclito duas fórmulas memoráveis. A primeira, panta rhei, “tudo passa”, faz parte do repertório básico de qualquer aluno de primeiro semestre nas Humanidades. Já a segunda é bem menos citada: “a guerra é o pai de todas as coisas”. De fato, a ideia de que há algo não apenas de estranhamente sedutor, mas também de matricial na guerra, é confirmada à exaustão pela experiência histórica e mesmo por nossa sensibilidade estética. De Homero e do Mahabharata a Euclides da Cunha, da pintura de Otto Dix ao grande romance de Guimarães Rosa, a guerra aparece ora como epicentro narrativo, ora como pano de fundo. Tinha razão Ernst Jünger quando constatou que “a mania da destruição está profundamente enraizada na natureza humana” (Jünger, 2005, p. 48).

Como quer que seja, uma das conquistas fundamentais da modernidade, pelo menos desde a Guerra dos trinta anos, foi a de tendencialmente mitigar o fascínio que, desde sempre, cerca esse fato social total. Daí que, em suas memórias como soldado na Primeira Guerra, o historiador britânico R. H. Tawney não tenha escondido sua repulsa ante a “sensação de desempenhar um papel inútil” no que qualificou de “jogo disputado por macacos e organizado por lunáticos” (apud Stern, 2004, p. 254).

Em 1914, como se sabe, a aversão demonstrada por Tawney não resistiu à escalada das disputas entre as potências europeias, à agitação nacionalista e a uma visão demasiado ingênua quanto ao explosivo potencial da aliança firmada entre técnica e indústria bélica. Naquelas primeiras semanas, o entusiasmo com o início das hostilidades não encontra paralelos. Ainda no final de julho, o embaixador britânico em Viena afirma que “este país enlouqueceu de alegria com a perspectiva de guerra” (apud Gay, 1995, p. 515). Na Alemanha, onde a embriaguez patriótica não era menor, não apenas os editorialistas de jornais de província, mas também acadêmicos de prestígio saem em defesa das controversas ações da Wehrmacht na Bélgica. No documento que estarreceu a opinião pública europeia, o manifesto An die Kulturwelt, de inícios de outubro, afirma-se, entre outras coisas, que não tinham o direito de se colocarem como defensores da civilização os “que se aliam a sérvios e russos e oferecem ao mundo o vergonhoso teatro de jogar mongóis e negros contra a raça branca”. À acusação de que a Alemanha se rendera ao militarismo, o texto respondia que, sem ele, “a cultura alemã há muito estaria dizimada”, pois “exército e povo alemão são uma só coisa”. Certamente foi com esse triste documento em mente que Johan Huizinga escreveria, em 1945, que o militarismo é o sintoma de “doença da comunidade”, uma patologia que se torna manifesta “quando um Estado volta o conjunto de suas forças para a guerra […] ou quando celebra a guerra como um ideal” (Huizinga, 2014, p. 188).

Em junho de 1915, um manifesto idealizado pelo teólogo Reinhold Seeberg volta a insistir nessa indigesta fusão entre nação e caserna. Ante manifestações assim, é compreensível que espíritos que se sentiam tributários da tradição intelectual alemã expressassem seu assombro em cores fortes: “não é possível que esses homens que frequentávamos, que estimávamos, que pertenciam em definitivo à mesma comunidade moral que nós, tenham podido se tornar seres bárbaros, agressivos e inescrupulosos” (Durkheim, 1915, p. 4).

Max Weber não assinou nem o manifesto An die Kulturwelt nem o “Manifesto dos professores universitários alemães”, organizado por Seeberg. A ausência de seu nome, é claro, não passou desapercebida. Como erudito de prestígio, oficial da reserva e alguém que saudou a entrada da Alemanha na guerra, tal distância em relação ao que na época se convencionou chamar de “Ideias de 1914” nos ajuda a entender a especificidade do seu pensamento político.

Estas e outras questões são exploradas pelo historiador Hinnerk Bruhns em seu mais recente livro, Max Weber e a Primeira Guerra Mundial. O objetivo do autor é reconstruir e iluminar a importância dos eventos entre 1914 e 1918 para o homem e para o cientista Max Weber. Bruhns (2017, p. 199) faz questão de reconhecer que a ainda insuperada monografia de Wolfgang Mommsen (1974Max Weber e a política alemã teve o paradoxal efeito de desestimular o surgimento de novos trabalhos sobre o tema. Era hora de revisitá-lo.

Em vista da enorme quantidade de material inédito aportado pela edição crítica das obras de Weber – 47 volumes editados entre 1984 e 2020 -, Bruhns logra complementar, e sob diversos aspectos, corrigir, o retrato composto por Mommsen em sua fulminante tese de doutorado. Nesse sentido, seja dito desde já: estamos diante do que de melhor se publicou nos últimos anos a respeito das circunstâncias nas quais o pensamento político weberiano atinge sua maturidade. Mas não só isso. Foi também neste período que a “sociologia compreensiva” adquiriu forma. No início da década de 1910, Weber preparava os manuscritos do que viria a ser Economia e sociedade, interrompendo o trabalho para se dedicar a uma longa série de textos de intervenção política e, simultaneamente, dar início ao seu último grande projeto, os estudos sobre a Ética econômica das religiões mundiais. Estamos, assim, diante de uma espécie de encruzilhada em que política, sociologia e história se tangenciam e influenciam mutuamente. Daí a importância de se explorarem os últimos seis anos da vida do erudito alemão, orientando-nos, como sugere Bruhns, pela seguinte questão: em que medida a experiência da guerra pode ter influenciado a sociologia weberiana? Com alguma dose de exagero, poder-se-ia dizer dela o mesmo que o geógrafo Yves Lacoste disse a respeito de sua disciplina, que ela “serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”?

Historiador e pesquisador experimentado – ao lado de sua amiga Catherine Colliot-Thélène, Bruhns tem sido um dos maiores responsáveis pela difusão do pensamento weberiano na França -, o autor tem o mérito de se esquivar de duas tentações recorrentes. A primeira é a tendência, que não desapareceu de todo, sobretudo no Brasil, à leitura deshistoricizada de Weber; e a segunda é a pretensão de se encontrar, a todo custo, o que teria sido, e quando supostamente se formou, “a ideia central” de Weber.

Por conta de seus afazeres como administrador dos hospitais militares da região de Heidelberg, função que ocupou entre os primeiros dias da guerra e setembro de 1915, são discretas e escassas as manifestações públicas de Weber sobre o conflito nos seus dois primeiros anos. A grande exceção, ao que parece, é sua adesão ao manifesto, organizado em julho de 1915, de uma quase centena de professores universitários contra a política de anexações então defendida pelos nacionalistas alemães mais exaltados. Weber tinha pretensões de exercer influência junto aos setores dominantes da política alemã, mas, ao ver as portas se fecharem à sua frente, passa a escrever uma longa série de artigos veiculados pela imprensa diária. Convém lembrar que a maior parte desses textos, nos quais encontramos a quintessência de sua teoria do político, permanece inédita em português. Mesmo um ensaio como “A futura forma de Estado da Alemanha” somente há pouco foi vertido por Sam Whimster ao inglês e publicado na Max Weber Studies (Weber, 2021).

No interregno entre a administração dos hospitais e o início da escrita desses textos, Weber profere duas palestras às quais Bruhns dá especial atenção. Na primeira delas, em agosto de 1915, ele contraria a tese, até hoje bastante difundida, de que a guerra não passaria de um by-product do imperialismo: Weber diz ao público em Nurembergue que uma das lições mais importantes dos últimos meses era que os interesses puramente econômicos não dominam o mundo. As duas outras lições: ao contrário do que acreditavam os oriundos do estamento Junker, o desenvolvimento da indústria não implicava um refluxo do espírito cívico dos cidadãos. E, por fim, mais importante, que o Estado seria a nação (Bruhns, 2017, p. 13). Weber chega a qualificar a guerra de “sagrada” – excesso retórico que Bruhns não se esquiva de criticar, por contradizer expressamente a premissa weberiana de que um pensador deve manter a cabeça fria ante os “ideais dominantes” (Bruhns, 2017, pp. 16-17).

Em outubro, num evento em Munique, Weber critica o peso excessivo que as emoções vinham ganhando na política. Os objetivos militares alemães deveriam se orientar exclusivamente pelos interesses nacionais. O maior deles seria fazer da Alemanha uma potência mundial. Diante disso, a invasão da Bélgica lhe parecia um problema de pequena monta (sabemos que Weber lera com atenção a Geografia política de Ratzel). A neutralidade belga teria sido infringida apenas “formalmente”. Bruhns constata: “A Bélgica é um exemplo de que, frequentemente, Weber era bastante acrítico no que se refere à propaganda do comando do exército” (Bruhns, 2017, p. 27).

De fato, nada há de mais recorrente para um intelectual “público” que o deixar-se enredar pelo pathos da política diária. Engajamento e cabeça fria (sobretudo em meio a uma guerra) raramente combinam, e Max Weber não escapa à regra. Contudo, graças à sua crença pessoal no valor da neutralidade axiológica, à sua enorme disciplina intelectual e à sua máxima de que pensar equivale a “perfurar tábuas duras”, o que o livro de Bruhns revela é o ininterrupto esforço de Weber em tentar manter sob rédeas curtas a volição política indomesticada, em nome daquilo que ele via como o mais importante de tudo – elaborar diagnósticos não apenas sóbrios, mas sobretudo corretos sobre a realidade do mundo à nossa volta.

Na prática, isso significa admitir que processos históricos complexos não se deixam explicar, e muito menos compreender, à base de reducionismos como o que atribui o início da primeira guerra mundial à responsabilidade de um único país, ou ao imperialismo e às disputas geopolíticas dele decorrentes (cf. Döpcke, 2017). Embora tudo isso estivesse claro para o economista político Max Weber, ele sabia que a dinâmica das ideias jamais se reduz a uma mera expressão das “verdadeiras” causas atuantes. Por outro lado, não é menos característico de Weber que o trabalho concreto de imputação causal, desde que se queira racional, não pode tomar partido das ideias, sobretudo quando elas lhe pareciam errôneas. É assim que o vemos tomar distância das “Ideias de 1914”. Propostas pelo economista Johann Plenge, elas pretendiam ser uma resposta alemã ao ideário da Revolução Francesa (as “Ideias de 1789”). Ao invés de uma liberdade entendida como laissez passer, organização e integração do indivíduo na comunidade política e no Estado; ao invés de democracia e liberalismo, um “socialismo alemão”. Num panfleto de 1915, singelamente intitulado Comerciantes e heróis, Werner Sombart chegou a afirmar que “a guerra de 1914 é a guerra de Nietzsche” (apud Lübbe, 1974, p. 213).

É representativo da recusa de Weber em se deixar aprisionar pelas teorias que ele tenha sido um duro crítico daquele mesmo “idealismo” de que volta a meia ainda é acusado. Na palestra de novembro de 1916 acima referida, sua menção às tais “Ideias de 1914” fala por si mesma:

Sim, para quê nosso pessoal está morrendo hoje no campo de batalha? Pessoas “de espírito” se juntaram e inventaram as “Ideias de 1914”, mas ninguém sabe qual era o conteúdo dessas “ideias”. […] O que nosso pessoal […] responderia se alguém lhes dissesse: vocês se deixam abater lá fora, e os que ficaram em casa inventam ideias? As ideias de 1917 serão decisivas caso venha a paz (apud Bruhns, 2017, p. 39).

Se Weber não se deixou iludir pelos mercadores de visões de mundo, num momento em que eles se multiplicavam e em que a própria filosofia alemã cedia ao furor nacionalista, foi porque anteviu as catastróficas consequências econômicas da guerra. Mas não só. Ao perceber que a vitória se tornava cada vez mais improvável, Weber se coloca a tarefa de dizer publicamente que a Alemanha deveria estar preparada para enfrentar uma realidade inteiramente nova. Bruhns (2017, p. 54) entende que, para ele, “não se tratava apenas [da realização] de Reformas, mas da construção da paz”. A universalização do sufrágio deveria ser capaz de contrabalançar as diferenças sociais; e o cargo de presidente não deveria mais coincidir com o de ministro-presidente da Prússia – o que, para Weber, mitigaria a influência que ainda era exercida pala atrasada aristocracia agrária do Leste. As rédeas da nação deveriam passar a uma camada social portadora de futuro. Ele não a via no proletariado e muito menos nos intelectuais, a quem qualificava de “covardes” e “estéreis”, mas na burguesia. Bruhns evoca como exemplar a esse respeito uma das mais marcantes passagens do ensaio Sufrágio e democracia na Alemanha:

Tudo o que dissemos volta a mostrar que a pátria alemã […] é e precisa ser não o país de seus pais, mas o de seus filhos […]. Isso vale sobretudo para os problemas políticos. Para resolvê-los, o “espírito alemão” não pode ser destilado das obras intelectuais de nosso passado, por mais valiosas que sejam. […] É hora de colocar os alfarrábios de castigo! Não há nada a aprender com eles. […] Os problemas modernos do parlamentarismo e da democracia e, em geral, a natureza de nosso Estado moderno estavam completamente fora de seu horizonte” (Weber, 2014, pp. 157-158).

Ao iniciar-se o quarto ano da guerra, Weber está mais pessimista que nunca. Naqueles dias caóticos, em que seu país pendia ora para a revolução, ora para a reação, ele assiste estupefato o retorno dos soldados dos campos de batalha, que descreve como um “cortejo de fantasmas e carnaval ao mesmo tempo” (apud Bruhns, 2017, p. 76). Em janeiro, ele chama o alto comando da Wehrmacht de “hospício político”. Suas ambições políticas persistiam, como sugeriam as exageradas expectativas de Marianne, que via seu marido “predestinado, pelo menos, ao cargo de chanceler” (apud Bruhns, 2017, p. 73).

Resta saber se a inadequação dos intelectuais para a política, volta e meia proclamada por Weber, tinha nele uma exceção. Ao se candidatar ao parlamento pelo DDP (Partido Democrático Alemão) nas eleições de janeiro de 1919, ele não se deu ao trabalho de fazer um só discurso eleitoral, nem de se submeter ao previsível beija-mão das lideranças partidárias. Aconteceu o que tinha de acontecer, e Bruhns não consegue evitar a ironia: “teoria e práxis, também para Weber, eram coisas inteiramente diferentes” (Bruhns, 2017, p. 74). Ainda assim, especula-se que Weber tenha influenciado o projeto da Constituição de Weimar preparado por Hugo Preuss e sua equipe.

Num encontro do diretório do DDP de Frankfurt, Weber faz uma palestra poucos dias após o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Segundo relatam os jornais da época, ele abre sua fala com as seguintes palavras: “Estamos todos sob o impacto dos eventos em Berlim”. Não poupa os espartaquistas, porque considera que “numa época em que o inimigo está ante nossas portas, a revolução é um crime”. Suas críticas à extrema-direita são ainda mais duras. Ela seria a grande responsável pela derrota militar e pelo perigo existencial que agora cercava o país. Em maio, Weber acompanha a delegação alemã a Versailles, irritando-se com o papel meramente acessório a que é relegado. Assinada a rendição, ele sente que é chegada a hora de repaginar: “Sobre política eu nada mais quero escrever. […] Pois o fundo do poço ainda não foi atingido. Mas, claro, em breve o será” (apud Bruhns, 2017, p. 86).

O livro de Bruhns dá atenção especial às relações recíprocas entre guerra e ciência, questão à qual os estudos weberianos nunca deram muita atenção. E mostra que na França, já em 1917, Ernest Lavisse e Vidal de la Blache integram uma comissão encarregada de elaborar cenários para o posterior domínio francês na bacia do Sarre – aspirações que, como se sabe, vão num crescendo, e das quais não deixa de dar testemunho o conhecido livro de Lucien Febvre sobre o Reno.

Obviamente, a associação entre a cátedra e as baionetas não se limitou à França. Mas o que ela efetivamente produziu, para além de novas armas e da inflamada retórica dos manifestos? No caso de Max Weber, curiosamente, o influxo parece ter sido negativo. A preparação de Economia e Sociedade, que ele havia adiantado razoavelmente, foi interrompida tão logo se inicia o conflito. A história da sociologia do século XX não seria a mesma sem este “livro” (embora ninguém saiba ao certo como haveria de ser sua formatação definitiva), mas é fato que o interesse de Weber subitamente se desloca para um projeto de natureza inteiramente distinta: essa continuação da Ética Protestante e o espírito do capitalismo que são os grandes estudos sobre a Ética econômica das religiões mundiais. A virada de chave acontece em plena guerra.

Em suma, se a guerra o desvia do caminho da sociologia compreensiva, o mesmo não acontece com sua “história universal” (o termo é do próprio Weber) das relações entre sistemas ético-religiosos e dinâmica socioeconômica. Como mostra Bruhns, a interrupção da redação de Economia e Sociedade contrasta com seu entusiasmo pelo novo projeto, para o qual Weber escreve cerca de 830 páginas entre 1915 e 1918. A história ensina que mesmo o mais engajado dos eruditos tende a se voltar apaixonadamente para os estudos quando a realidade política se lhe apresenta como uma sucessão de fracassos e frustrações. Weber, convém dizer mais uma vez, não é exceção: “Com enorme satisfação retorno aos meus chineses e indianos; pois eu só servirei para a política caso possa dizer muito claramente o que penso e o que pretendo” (apud Bruhns, 2017, p. 94). Que bela forma de justificar para si mesmo a reclusão no gabinete de trabalho enquanto o mundo desmorona lá fora! Mas, terá surtido efeito? Durante o semestre de verão de 1918, que passa lecionando em Viena, ele se martiriza com o pesado ritualismo do mundo acadêmico austríaco e desabafa em carta a Marianne: “Eu nasci para a pena e a tribuna, não para a cátedra” (apud Bruhns, 2017, p. 97).

Nem sempre o Weber economista político e o Weber sociólogo concordavam em tudo. Ainda no início da carreira, em 1891, ele havia proclamado o caráter essencialmente prático da economia política. Formulação semelhante, até onde se sabe, jamais foi feita a respeito da sociologia. Em 1915, ele chega a realizar estudos para o Estado Maior sobre as possíveis consequências da introdução da legislação social alemã na Bélgica. No ano seguinte, Weber retoma uma preocupação que o perseguia desde a juventude – a “questão polonesa”. E sugere que, na hipótese de anexação da Polônia pela Áustria-Hungria, se poderia caminhar rumo a uma espécie de minimercado comum europeu; tendo até mesmo cogitado começar a aprender polonês. O Weber sociólogo se mantinha alheio a tudo isso. A Sociedade Alemã de Sociologia, que ele tanto se esforçara para trazer à vida em 1910, permaneceu singularmente “muda e não produziu qualquer saber sociológico sobre a guerra”, diz Bruhns (2017, p. 106).

Esse distanciamento chama ainda mais a atenção se levamos em conta a atmosfera a que nos referimos no início desta resenha, ou ainda a atividade febril da indústria editorial alemã naqueles tempos. Bruhns mostra que, em 1915, um pool de editoras de prestígio planeja publicar uma coleção sobre a guerra com nada menos que 25 títulos. As duas grandes revistas de ciências sociais, o Schmollers Jahrbuch e o Archiv für Socialwissenschaft und Sozialpolitik, intensificam suas atividades. Na segunda semana da guerra, o Archiv cria seus “Cadernos de Guerra” e, ao longo dos anos seguintes, dedica três volumes inteiros às relações entre guerra e economia. Um levantamento bibliográfico sobre esse tema, publicado por Franz Eulenburg no volume 43 da revista coeditada por Weber, atingiu a impressionante marca de uma centena de páginas. O volume 39 trouxe inclusive um ensaio sobre a “Sociologia da Guerra Mundial”, escrito por Emil Lederer. Esforços nesse sentido não eram exatamente novos: em 1899, autores como Albert Schäffle e Sebald Steinmetz esboçavam uma futura sociologia da guerra. Ora, em vista da vastidão dos temas abordados nesse livro-compêndio que é Economia e SociedadeBruhns (2017, p. 129), com razão, se pergunta: “não se deveria esperar também dele uma análise sociológica da guerra?”

A sua resposta é que tal sociologia se acha extremamente difusa em Weber – o que talvez seja apenas uma outra forma de dizer que ela não existe. Num nível muito estrutural, é sabido que Weber via no conceito de “luta” a essência do político; mas da luta à guerra a distância é imensa: impossível derivar uma da outra apenas ampliando o jogo de escalas. Por outro lado, Gangolf Hübinger sugeriu recentemente, a esse respeito, que a experiência da guerra e os graves conflitos dela resultantes ofereceram as condições a partir das quais o pensamento político do mestre alemão assumiu sua configuração definitiva (Hübinger, 2019, p. 168). Numa palavra, a guerra afasta Weber da sociologia na mesma proporção em que o aproxima do político.

O mais próximo de uma sociologia da guerra que ele chegou a escrever é o seu relato sobre a situação dos hospitais militares. Trata-se de um texto de ocasião e, ao que tudo indica, escrito de forma açodada. Quem se interessa pelas experiências-limite vividas nos campos de batalha aprenderá mais com os livros de Ernst Jünger e Erich Maria Remarque, mas o Lazarettbericht de Weber não deixa de ser, como ressalta Bruhns, um “documento sociológico altamente interessante” (Bruhns, 2017, p. 153).

A máxima de Heráclito sobre a dimensão cosmogônica da guerra não se aplica à sociologia weberiana, que, como se vê, praticamente emudece a respeito. Para alguém como Weber, para quem o ideal de cientificidade exigia capacidade de distanciamento e sobriedade no emprego da linguagem, resta claro que as paixões suscitadas pela primeira guerra mundial colocavam a neutralidade axiológica diante de um terreno minado. Basta ver (Bruhns, 2017, pp. 168-176) como Weber se expressa em seus artigos políticos. O estilo, seco e vigoroso, volta e meia se inflama, abusando de expressões rudes. Nada permite distinguir melhor o Weber político do Weber cientista que o diferente uso da linguagem num e noutro. Para ficarmos num exemplo apenas: a mesma pessoa que aprova a publicação de um artigo de Karl Liebknecht no volume 46 do Archiv é a que declara, numa palestra em 4 de janeiro de 1919, que o líder espartaquista mereceria ser posto num hospício (Bruhns, 2017, pp. 171-172). Se na ciência deveria reinar absoluto o logos, nos artigos políticos de Weber o discurso “não dava espaço seja para argumentos, seja para contra-argumentos” (Bruhns, 2017, pp. 175).

O fato de Weber, diz Bruhns (2017, p. 91), não ter dedicado “um segundo sequer” a Economia e Sociedade entre 1914 e 1918 pode ser lido de diversas formas. Uma delas, a nossa, ousa postular uma inadequação da sociologia weberiana a circunstâncias nas quais, em certo sentido, os estados nacionais assumem um papel análogo ao de “indivíduos”. A teoria weberiana da ação social não dispõe de meios para nos levar tão longe. Da sociologia (da que se define como compreensiva, pelo menos) se pode dizer que serve para muita coisa – mas não para a guerra.

Referências

BRUHNS, Hinnerk. Max Weber und die Erste Weltkrieg. Tübingen: Mohr Siebeck, 2017.

DÖPCKE, Wolfgang. “… Mas livra-nos da culpa”: 100 anos de controvérsia sobre as causas da Primeira Guerra Mundial. In: ARAÚJO, André M.; ASSIS, Arthur A; MATA, Sérgio da (Orgs.). Entre Filosofia, História e Relações Internacionais: escritos em homenagem a Estevão de Resende Martins. São Paulo: LiberArs; SBTHH, 2017. pp. 159-184.

DURKHEIM, Émile. L’Allemagne au-dessus de tout: la mentalité allemande et la guerre. Paris: Armand Colin, 1915.

GAY, Peter. O cultivo do ódio. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

HUIZINGA, Johan. Kultur- und Zeitkritische Schriften. Paderborn: Wilhem Fink, 2014.

HÜBINGER, Gangolf. Max Weber: Stationen und Impulse einer intellektuellen Biographie. Tübingen: Mohr Siebeck , 2019.

JÜNGER, Ernst. A guerra como experiência interior. Lisboa: Ulisseia, 2005.

LÜBBE, Hermann. Politische Philosophie in Deutschland. München: DTV, 1974.

MOMMSEN, Wolfgang. Max Weber und die deutsche Politik: 1890-1920. Tübingen: Mohr Siebeck , 1974.

STERN, Fritz. O mundo alemão de Einstein. São Paulo: Cia das Letras , 2004.

WEBER, Max. Germany’s Future Form of State. Max Weber Studies, v. 21, n. 1, pp. 23-65, 2021.


Resenhista

Sérgio da Mata – Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG. E-mail: sdmata@ufop.edu.br https://orcid.org/0000-0002-7963-6292


Referências desta Resenha

BRUHNS, Hinnerk. Max Weber und die Erste Weltkrieg. Tübingen: Mohr Siebeck, 2017. Resenha de: MATA, Sérgio da. Sociologia compreensiva: isso não serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 90, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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