Corria o ano de 1780, a Revolução Americana encontrava-se em pleno desenrolar e o vizinho mar do Caribe estava cheio de tropas e navios. Entre os dias 10 e 16 de outubro, aquele que ficou conhecido como o “grande furacão” varreu a região, deixando um rastro de mais de vinte mil mortos. Todos os impérios europeus tiveram suas possessões afetadas. Com ventos que podem ter alcançado uma velocidade superior a 300 quilômetros por hora, a tempestade atingiu primeiro Barbados, arrasando a capital, onde quase nenhuma casa resistiu. Somente na Martinica, o naufrágio de uma frota francesa ancorada em Fort Royal fez quatro mil vítimas. Na cidade de Saint-Pierre, mais ao norte, um vagalhão de oito metros de altura lambeu uma centena e meia de casas, o hospital desabou e todas as quase cem freiras e noviças do convento de Saint-Esprit morreram. Para tornar tudo mais difícil, o grande furacão de outubro não veio sozinho, naquele ano houve pelo menos oito tempestades devastadoras na região. As plantações de cana-de-açúcar sofreram um duro golpe, a produção de alimentos ficou arruinada e os pescadores perderam seus barcos. Quando a temporada dos furacões acabou, os sobreviventes estavam desabrigados e a fome e as doenças tinham se instalado.
A tragédia de 1780 é uma das muitas histórias contadas por Stuart B. Schwartz em seu livro, Mar de tormentas.1 Professor da Universidade de Yale, ele é um dos mais importantes estudiosos de história colonial, da escravidão e do mundo atlântico. Entre suas principais obras estão Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751 (Perspectiva, 1979; Companhia das Letras, 2011), Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (Companhia das Letras, 1988) e Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico (Companhia das Letras; Edusc, 2009). Com Mar de tormentas, Schwartz dirige o seu olhar para o Grande Caribe e, mais particularmente, para a zona de incidência dos furacões no Atlântico Norte (incluindo o golfo do México e o sudeste dos Estados Unidos).
Embora a temporada de furacões de 1780 tenha sido uma das mais destrutivas a afetar a região, não foi nem de longe um acontecimento isolado. Em certo sentido, a história do Caribe e os furacões são inseparáveis. Na abordagem escolhida, no entanto, não interessa tanto o evento atmosférico em si, o que está no centro da investigação é a maneira como as sociedades caribenhas vêm respondendo a cada nova temporada dessas tempestades que, ano após ano, século após século, se abatem violentamente sobre a região, alterando o curso de guerras ou migrações e ajudando a moldar mudanças econômicas e sociais.
Buscando inspiração em O Mediterrâneo (1949) e na centralidade que Fernand Braudel (1902-1985) concedeu ao ambiente natural e ao clima em sua obra, Schwartz julgou que os furacões poderiam fornecer um ponto de vista privilegiado para olhar para a história do Caribe. Seu estudo percorre uma larga temporalidade, das viagens de Cristóvão Colombo até 2005 (ano do Katrina), tendo os furacões que castigaram a região como o centro organizador de toda a narrativa. Mas esse é um livro de história social e cultural, em que as forças da natureza não são, elas próprias, as causadoras das tragédias. Por mais forte que seja um temporal, ele ainda é apenas um temporal. Somente quando as comunidades são destituídas de resiliência, incapazes de responder, é que um evento natural se transforma em desastre. No artigo “The Hurricane of San Ciriaco: Disaster, Politics, and Society in Puerto Rico, 1899-1901” [“O furacão de San Ciríaco: desastre, política e sociedade em Porto Rico, 1899-1901”], publicado em 1992, Schwartz já tinha abraçado a ideia, compartilhada com muitos no campo da história ambiental, de que os chamados desastres naturais, como os furacões e outros eventos extremos, têm o seu poder de destruição amplificado graças à vulnerabilidade causada por estruturas sociais e econômicas específicas de cada sociedade e de cada época. É a partir da interação entre processos ambientais e sociais que se dá a produção do desastre. Assim, tal como guerras ou revoluções, os “desastres naturais” podem ser considerados como eventos socialmente produzidos.2
Mar de tormentas, publicado em 2015, somente agora foi traduzido no Brasil. Esses seis anos que separam o lançamento original da tradução não fizeram, no entanto, com que a obra envelhecesse. Talvez fosse possível dizer que, na verdade, o livro e a sua temática se tornaram ainda mais centrais. Segundo a climatologia atual, o grande combustível dos ciclones (que, no Atlântico Norte, recebem a denominação de furacões) é a água aquecida dos oceanos nas zonas tropicais. No relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançado em agosto de 2021, em Genebra, o nexo entre o aquecimento global e a intensificação dos eventos extremos foi reafirmado pelos cientistas. Entre os futuros climáticos possíveis desenhados pelo IPCC, considerou-se muito provável que os ciclones tropicais intensos (categorias 4-5) – como o Grande Furacão de 1780 – se tornem mais frequentes e, com o aumento da velocidade máxima de seus ventos, ainda mais fortes.
Baseado em extensas pesquisas em arquivos na Europa e nas Américas, o livro traz numerosos relatos de autoridades locais da época colonial. Para a coroa espanhola, mas também para franceses, ingleses, holandeses ou dinamarqueses, as tempestades influenciavam nas estratégias de domínio na região. A principal preocupação “do Conselho Real em Madri ou da guilda de comerciantes em Sevilha” em relação às suas possessões caribenhas era “a interrupção do lucrativo comércio no Atlântico e do fluxo de prata e ouro para os cofres do rei” (p. 69). Além disso, grande parte das ilhas da região voltou-se para a produção, baseada em trabalho escravo, de cana-de-açúcar e outros produtos de exportação, a que as tempestades causavam danos. E, como um problema derivado, havia a fome que se seguia a esses eventos, já que as culturas de alimentos não eram poupadas, como ocorreu em 1692, por exemplo, quando um violento furacão atingiu o oeste de Cuba, destruindo os cultivos de banana, de milho e outros.
Frequentemente, autoridades locais fazem relatos reveladores das preocupações dos impérios europeus que ocupam o Caribe, como na correspondência enviada de Barbados para Londres, narrando os estragos causados pela já mencionada tragédia de 1780, e lamentando os prejuízos nos seguintes termos: “a perda nas populações de negros e de gado […] é muito grande, o que deverá, mais especialmente neste momento, ser causa de grande aflição para os plantadores” (p. 124-125). Como observa Schwartz, as terríveis dificuldades impostas pelas tempestades pareciam ser “o preço a pagar para fazer negócios” (p. 83) na região.
Mas a luta contra o grande perigo também ajudou a criar uma “comunidade de experiências” (p. 79), e houve o compartilhamento de conhecimentos locais e de saberes envolvendo relatos de navegantes e outras narrativas de viagem, o que se traduziu na publicação de toda sorte de obras sobre os furacões caribenhos. Havia explicações do campo da fantasia e da religião, mas também observações preciosas sobre a circulação dos ventos e os mecanismos de formação das tempestades no Atlântico Norte. No século XIX, com a invenção do telégrafo, surge a possibilidade do amplo recolhimento de dados climáticos, captados tanto por amadores como por agentes governamentais, e são criados os serviços meteorológicos.
Ao longo de seus nove capítulos, as tempestades se sucedem, assim como os esforços das autoridades locais para socorrer a população afetada e recuperar as áreas destruídas. Porém é sobretudo uma história de longa duração sobre as concepções a respeito dos desastres, como os provocados por furacões, que é percorrida no livro. Durante muito tempo, eles foram entendidos como castigo divino, a ira de Deus se abatendo sobre os pecadores. Mas houve um momento em que passaram a ser vistos como eventos naturais, até certo ponto previsíveis, e cujos efeitos mais danosos poderiam ser evitados. Paralelamente, as noções em relação aos atingidos também se alteraram, num trajeto sinuoso, com idas e vindas, que vai da ideia de que eles são merecedores da caridade cristã até o surgimento do conceito de socorro às vítimas de catástrofe como um direito do cidadão, que deve ser garantido, em primeiro lugar, pelo Estado.
As ideias sobre direitos começaram a surgir no século XVIII. Ao longo do século seguinte, a filantropia ganha terreno em relação à caridade, e campanhas de socorro às vítimas se espalham pelo mundo. Enquanto isso, sistemas de prevenção e de mitigação de desastres começam a ser criados. E, para alguns estudiosos das primeiras décadas do século XX, as próprias “origens do New Deal e do Estado de bem-estar social nos Estados Unidos”, por exemplo, podem ser encontradas “na tradição de resposta governamental a calamidades e desastres naturais” (p. 296). Mas, nesse processo, ao mesmo tempo surgem os críticos da assistência governamental. Para esses, as ajudas deveriam se restringir aos governos locais e às iniciativas privadas, já que as vítimas não poderiam ser consideradas totalmente inocentes, uma vez que não tinham trabalhado ou poupado o suficiente, fazendo com que a ajuda governamental federal criasse nefastos laços de dependência.
Afinal, o que o livro nos mostra é que as concepções de direito dos atingidos nunca vigoraram plenamente e sempre estiveram submetidas a desigualdades sociais e raciais. Quando o Katrina chegou aos Estados Unidos, em 2005, levando embora mais de mil e oitocentas vidas e deixando Nova Orleans e seu entorno devastados, o governo de George W. Bush falhou em garantir o direito das vítimas. Muitos críticos consideram que a região pobre e de maioria afrodescendente (alvo de racismo, por séculos) recebeu um socorro patentemente inferior ao que seria necessário.
O jornalista McKenzie Funk, em seu livro Caiu do céu (2014), procurou mostrar como nos dias de hoje os desastres e o aquecimento global têm sido encarados por alguns países, e pelo capital privado, não em termos de uma assustadora emergência climática, mas, ao contrário, como uma grande oportunidade de negócios. Estudando os incêndios na Califórnia, retoma o tema do pouco crédito dado a um sistema de socorro público e universal, como o do Corpo de Bombeiros, para desvendar o curioso funcionamento das empresas privadas de combate a incêndio que atuam na região, fornecendo um exército de homens treinados, carros e equipamentos para socorrer exclusivamente os seus próprios clientes, assim que as suas casas começam a pegar fogo.
O filme norte-americano Tempestade: planeta em fúria (no original, Geostorm), lançado em 2017, não difere de outros tantos do gênero cinema-catástrofe. Um herói destemido, apoiando-se em avanços tecnológicos, luta contra tudo, enfrenta terríveis desafios e, afinal, salva a humanidade da fúria da natureza. Ao contrário do que acontece nas telas, na realidade da história de cinco séculos contada por Schwartz nesse livro admirável, as respostas aos desastres – embora as escolhas individuais não possam ser consideradas ausentes – estiveram sempre condicionadas ao colonialismo, à escravidão, e às desigualdades pós-abolição que chegaram aos nossos dias, marcando a vida nessas sociedades. Assim, para todos aqueles que quiserem conhecer como ao longo de quinhentos anos essas tempestades grandiosas foram – ou não foram – dribladas no Caribe, esse é um livro incontornável.
Notas
1 Edição original: Sea of Storms: A History of Hurricanes in the Greater Caribbean from Columbus to Katrina. Princeton: Princeton University Press, 2015.
2 Para um exemplo da grande complexidade que pode existir na conexão entre fenômenos naturais, sociedades humanas e desastres, ver os estudos do professor da Universidade do Arizona, Stephen Pyne, sobre o fogo. Um de seus artigos foi publicado no dossiê “A Terra e os homens sob fogo”, organizado pela historiadora Júnia Ferreira Furtado para a revista Varia Historia (v. 33, n. 63, 2017).
Referências
FUNK, McKenzie. Caiu do céu: o promissor negócio do aquecimento global São Paulo: Três Estrelas, 2016.
GEOSTORM. Direção: Dean Devlin. EUA: Warner Bros. Pictures, 2017. 109 min.
IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change. Climate Change 2021: the Physical Science Basis. Summary for Policymakers [Mudanças climáticas 2021: a base das ciências físicas. Sumário para tomadores de decisão]. Cambridge, MA: Cambridge University Press, 2021.
PYNE, Stephen. Sacudir e assar: um comentário sobre terremotos e incêndios. Varia Historia (Belo Horizonte). v. 33, n. 63, p. 583-589, 2017.
SCHWARTZ, Stuart. The Hurricane of San Ciriaco: Disaster, Politics, and Society in Puerto Rico, 1899-1901. Hispanic American Historical Review v. 72, n. 3, p. 303-334, 1992.
SCHWARTZ, Stuart. Mar de tormentas: uma história dos furacões no Caribe, de Colombo ao Katrina Tradução Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
Resenhista
Anita Almeida – Professora do Departamento de História/ Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Rio de Janeiro (RJ). E-mail: anita.almeida@unirio.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9334-8174
Referências desta Resenha
SCHWARTZ, Stuart B. Mar de tormentas: uma história dos furacões no Caribe, de Colombo ao Katrina. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Resenha de: ALMEIDA, Anita. Planeta em fúria. Tempo. Niterói, v. 28, n. 2, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]
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