Lentes, memórias e histórias: os fotógrafos Lambe-Lambes em Aracaju (1950-1990) é o livro de Cândida Oliveira, jornalista e mestre em História, lançado no final do ano passado. O livro é produto de dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Sergipe, em 2020, sob a orientação do professor Claudefranklin Monteiro Santos, e sob o crivo da seleta banca: os também professores Antônio Lindvaldo Souza e Edna Maria Matos Antonio, da Universidade Federal de Sergipe, e Severino Vicente da Silva, da Universidade Federal de Pernambuco.
Essa investigação me interessou duplamente. Como fotógrafo amador e especialista em memória local, me chamou a atenção o valor que uma jornalista profissional atribuiu à relação memória, história e fotografia, partindo da experiência de trabalhadores que, há poucas décadas, ocupavam aquele final da avenida Coelho e Campos, no centro de Aracaju, servindo a baixo custo e de modo rápido.
O segundo ponto de interesse foi o potencial heurístico que as fotografias ocupam no ofício do historiador. As relações entre fotografia e história têm sido objeto de reflexões em torno dos critérios operacionais de pesquisa e análise das fontes, bem como sua interpretação como documentos históricos portadores de múltiplas significações. Para Boris Kossoy (1989), as fontes fotográficas devem ser questionadas por parte do sujeito do conhecimento em relação ao objeto da investigação, seja no que diz respeito à reconstituição do processo que deu origem ao documento em si, seja à devida interpretação do fragmento visual da realidade passada nele contido. As imagens capturadas mundo afora “são documentos para a história e para a história da fotografia”. A pesquisa histórica que utiliza essas fontes, afirma o autor, não pode “prescindir dos conhecimentos advindos das histórias da técnica fotográfica e dos fotógrafos, aqui entendidos como autores daquelas fontes que atuaram em diferentes períodos” (Kossoy, 1989, p. 16, 20).
O livro de Cândida Oliveira se insere, nesse debate, a partir dos fotógrafos lambe-lambes que atuaram (e atuam) no centro urbano de Aracaju, na capital do estado de Sergipe, no período de 1950 a 1990. Utilizando-se da metodologia da história oral, ela reconstruiu os lugares de ofício dessa categoria profissional na praça General Valadão e no Mercado Central, no contexto das transformações urbanas do centro histórico da cidade. Ao mesmo tempo, expôs os desafios enfrentados por esses profissionais ante os avanços tecnológicos que tornaram a câmera fotográfica acessível para amplos setores sociais.
Quem, como eu, já chegou aos cinquenta anos, sabe bem diferenciar aquela grande caixa de madeira que acondicionava uma máquina fotográfica e viabilizava a produção da foto em laboratório ambulante e um pequeno chip que captura imagens e os reproduz, instantaneamente na tela de um smartphone. Essa leitura sob o ponto de vista das mudanças tecnológicas se aproxima da pesquisa que desenvolvi na década de 1990 sobre os barbeiros nessa área urbana, em que foram tomados como símbolos da resistência às transformações do mundo do trabalho e, ao mesmo tempo, proporcionaram uma contribuição para a História de Aracaju, por um ângulo pouco comum, na historiografia sergipana (Sá, 2021, p. 74-88).
A busca pela “origem da fotografia na história moderna” e da história da fotografia no Brasil, nos capítulos iniciais, acabou por tomar quase a metade da publicação, preterindo a parte mais importante de sua contribuição que foi a conformação do ofício profissional com a descrição do maquinário utilizado e a identificação dos fotógrafos lambe-lambes na segunda metade do século XX, bem como a composição do seu cenário de atuação na Praça e no Mercado, com o atendimento da população mais pobre no centro urbano da cidade.
Pela escrita da autora, somos informados de que o aprendizado do ofício era realizado, a partir da tradição familiar e da transmissão oral, comunicando os conhecimentos da montagem do equipamento e do processamento fotográfico pelas caixas de madeira com uma lente apoiada em um tripé. A fala de um dos fotógrafos, Salatiel Eduardo dos Santos, é emblemática sobre os ensinamentos do ofício por seu pai, fundamental para se tornar, posteriormente, fotógrafo do jornal Gazeta de Sergipe (p. 129).
O pano de fundo da crise do ofício foi identificado pela historiadora. Ela descreve o processo de modernização do centro urbano, as constantes transferências de lugares para o exercício do ofício, deixando clara a exclusão dessa categoria profissional por parte das ações da Prefeitura Municipal de Aracaju em diferentes momentos históricos, seja por conta da retirada da Praça General Valadão para a Avenida Coelho e Campos, em 1969, seja na reforma do Mercado Central, durante o mandato de João Augusto Gama (1997-2000).
Mesmo preteridos do processo de modernização urbana, com constantes expulsões dos lugares de atuação, os fotógrafos lambe-lambes sobrevivem, aos trancos e barrancos, nos últimos anos, no box n. 43 no Mercado Central da cidade. Hoje, são apenas três. Os fotógrafos agora utilizam câmeras digitais, adaptando-se ao mundo digital que lhe tomou parte considerável de sua clientela. Apesar das dificuldades advindas com a democratização da fotografia, os retratistas representam a resistência ao esmagamento da vida cultural de setores populares, ocasionado pelas intensas modificações sociais e econômicas, num processo de modernização excludente. No geral, são aposentados que precisam complementar as parcas rendas familiares de um salário de aposentadoria, exercendo seu ofício em condições precárias em um “ambiente insalubre, sem higienização, sem dignidade”, conforme resumiu Cândida Oliveira (p. 137).
A narrativa se encerra com a inclusão da pandemia dos dois últimos anos. Soa estranho ao corpo do texto, já que não faz parte da periodização proposta no plano de redação. Essa passagem reitera a falta de assistência do poder público municipal a esses profissionais da fotografia. Apesar de justificada, penso que esse trecho estaria melhor posicionado como um posfácio. Outro dado destoante do valor da obra está no trabalho de copidescagem. Há problemas redacionais no corpo do texto, como, por exemplo, a manutenção da palavra “dissertação” em várias partes, bem como a forma inadequada de referenciação das fontes, com relação às normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
O livro, contudo, apresenta duas contribuições importantes à vida dos fotógrafos e à pesquisa sobre a memória: em primeiro lugar, a autora não se encerra na denúncia. Ela é propositiva quando defende a transformação do ofício em patrimônio imaterial. A iniciativa é plausível e viável e penso que o livro contribuiu, decisivamente, para avivar o debate sobre memória, patrimônio e cultura urbana. Em segundo lugar, o livro, ricamente ilustrado, é uma contribuição significativa para o desenvolvimento de novas abordagens da história do trabalho, em Sergipe, ressaltando a importância da metodologia da história oral para a promoção de uma nova concepção de história, uma interpretação clara de que todos, cidadãos comuns, somos parte do mesmo processo.
Referências
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989 (Coleção Princípios).
Michaelis. Dicionário de Português Brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 2015. Disponível em: < https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/lambe-lambe/> Consultado em 07 abr. 2022.
MORAES, Rubens Nunes. De fotógrafo à retratista lambe-lambe. Revista Expedições: Teoria da História & Historiografia. Morrinhos, v.4, n.1, p.163-177, jan./jun., 2013. Disponível em< https://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth/article/view/1450> Capturado em 04 abr. 2022.
SÁ, Antônio Fernando de Araújo. À Margem da História Contemporânea de Sergipe: Memória e Democracia. Aracaju: Editora Criação, 2021.
Sumário de Lentes, memórias e histórias: Os fotógrafos Lambe-Lambes em Aracaju (1950-1990)
Resenhista
Para citar esta resenha
OLIVEIRA, Cândida. Lentes, memórias e histórias: Os fotógrafos Lambe-Lambes em Aracaju (1950-1990). Aracaju: EDISE, 2021. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. História, Memória e Fotografia em Aracaju. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, p.47-51, maio/jun., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/?p=2736> Acessar publicação original.
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