Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira

Mateus Henrique de Faria Pereira Imagem Varia Historia
Mateus Henrique de Faria Pereira | Imagem: Varia História

No atual século, poucos livros no campo da teoria da história alcançaram um índice de repercussão como Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo (originalmente publicado em 2003), de François Hartog (2013). O livro se tornou referência fundamental nos estudos acerca da experiência do tempo com a proposta de criação de um “instrumento”, a categoria “regimes de historicidade”, para a averiguação de como sociedades e culturas estabeleceram em distintos momentos históricos determinadas ordens do tempo. Do mesmo modo, a obra vem sendo alvo de importantes reavaliações (ver ARAUJO; PEREIRA, 2018ARANTES, 2014LORENZ; BEVERNAGE, 2013; GUIMARÃES; RAUTER, 2021; TURIN, 2016, entre outros), que questionam tanto as pretensões heurísticas da categoria anunciada por Hartog, quanto a sua hipótese mais fundamental acerca do “presentismo”, isso é, a prevalência do presente sobre as dimensões do passado e do futuro, sendo que, no caso do último, ainda se impõe uma importante sensação de fechamento, ao contrário do que se via na concepção moderna de história, como teorizada por Koselleck (2006).

Compondo essa mesma linhagem crítica e saindo pela mesma editora que publicou o livro de Hartog no Brasil, Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet, de Mateus Henrique de Faria Pereira (2022), aparece como uma obra disposta a analisar os impactos do novo para a redefinição dos papéis da historiografia sem qualquer olhar nostálgico de uma antiga condição, ao mesmo tempo que aceita o desafio de pensar as possibilidades que a era da internet traz para uma efetiva inserção do historiador e da historiadora num debate público amplo e democrático.

Entre as virtudes da obra, destaco inicialmente duas. Primeiro, o exercício de pensar a condição histórica na era da internet num contexto maior, aquele da crise do conceito moderno de história, que, observável desde ao menos a segunda metade do século XX, vem sendo detalhada nas últimas duas ou três décadas. Tal crise, como bem notado por Pereira (2022) ao longo de todo o texto, produz reconfigurações na própria ideia, modernamente concebida ao menos, do historiador como enunciador de certa pedagogia nacional com capacidade mesmo de desvelar ou antecipar sentidos futuros. A crise dessa figuração do papel do historiador ainda é acompanhada pela ampliação que a internet produz na autoria histórica, que, agora, parece operar de maneira descentralizada e mesmo atomizada no universo da rede. Uma segunda virtude é a proposta do autor de superar “uma grande dificuldade da comunidade de historiadores em historicizar o atual e o imediato” (PEREIRA, 2022, p. 32). Dificuldade essa que Pereira (2022, p. 35) situa como um “legado dos Annales”, mas que pode mesmo ser ampliada para uma boa parte da tradição historiográfica que externaliza passado e futuro de nosso âmbito existencial, estando eles, assim, “ao dispor” do presente.

Lembrança do presente está estruturado em quatro capítulos relativamente independentes, mas que podem ser reunidos por um diálogo permanente entre historicidade e historiografia. Ou melhor, o livro parece transitar em torno de uma pergunta fundamental que também foi alvo de historiadores como Hartog, Gérard Lenclud e Fernando Nicolazzi: a coincidência ou não entre regimes de historicidade e regimes historiográficos. Indo direto ao ponto: trata-se de pensar a possibilidade de que “alguns modelos de escrita da história [sejam] compatíveis com uma ordem tematizada do tempo, até mesmo dedutíveis desta ordem” (LENCLUD, citado por NICOLAZZI, 2020, p. 211).

Em Lembrança do presente, isso aparece no trânsito permanente de preocupações historiográficas: os embates em torno do conceito de “tempo presente”, a noção de autoria reconfigurada na era da internet, a dimensão narrativa do texto historiográfico, etc.; e de indagações acerca da historicidade contemporânea: o suposto presentismo, as disposições atualistas trazidas, entre outros fatores, pelo ritmo das atualizações tecnológicas, o desejo pela transparência, as guerras culturais que se valem da tensão permanente oferecida pelo universo das redes.

O primeiro capítulo retoma um conceito bastante discutido no campo historiográfico nas últimas décadas, aquele de “tempo presente”. A retomada desse conceito por Pereira não é, porém, meramente descritiva. Interessa-lhe, sobretudo, explorar certa potencialidade inerente ao conceito que “joga” com a possibilidade de superar e se aproveitar das aporias próprias ao conceito de presente histórico, isso é, algo que extrapola a ideia de um presente autossuficiente e destacado das demais dimensões do tempo.

O que Pereira (2022, p. 28-29, grifos no original) chama, portanto, de uma “natural plasticidade na denominação tempo presente” estaria ligado a uma escrita da história constantemente confrontada na sua função política e social, assumindo o desafio como historiadores de “sermos também contemporâneos”. Tal desafio é observável no grande interesse que a historiografia brasileira revela, tratando hoje, permanentemente, temas como o racismo, o feminismo, o colonialismo, a subalternidade, o autoritarismo, a democracia. É essa a preocupação fundamental que notamos no segundo capítulo,1 quando Pereira passa a operar com a noção de “inscrição frágil” para discutir as batalhas pela/de memória que acontecem, por exemplo, através de edições do verbete Regime militar brasileiro (em português) da Wikipédia.

Uma das hipóteses para o recrudescimento de certos aspectos negacionistas em tempos recentes no Brasil residiria, segundo Pereira (2022, p. 56), nas “iniciativas de democratização de espaços antes ocupados pelas elites e pelas classes médias altas”. Assim, a constituição de uma comunidade de memória no contexto brasileiro é atravessada por uma dimensão hierárquica, violenta, autoritária, desigual e por um temor do aprofundamento de uma experiência democrática. Nos últimos anos, a instalação de uma Comissão Nacional da Verdade e a emergência de movimentos e reflexões com claro propósito questionador acerca das dimensões supracitadas seriam, na visão otimista de Pereira, indícios da passagem de uma não inscrição/inscrição frágil para um regime de inscrição tênue.

Situação um pouco distinta se registra no último capítulo, quando Pereira (2022, p. 95-111), ainda que com o pano de fundo da midiatização e do universo das redes, procura explorar o terreno político-institucional a partir de algumas disposições relativas a uma temporalidade atualista. Nesse capítulo, no que é talvez a radicalização de sua proposta de um historiador de olhos bem abertos ao atual e imediato, Pereira procura interpretar uma série de fenômenos contemporâneos, como a Operação Lava Jato, o funcionamento do Google, o capitalismo de vigilância, entre outros, a partir de alguns índices característicos ao nosso tempo, como o desejo pela transparência, a hipervisibilidade e a espetacularização da existência, que estariam, de algum modo, reunidos em torno da problemática do atualismo.

Um dos riscos, porém, que comportam argumentos com certa pretensão holística é o que poderíamos chamar de metonímico, isso é, a tomada de algumas disposições pontuais como sintomas gerais e definitivos. É o que talvez ocorra quando, nesse último capítulo, Pereira (2022, p. 96-97) aposta na onipresença do tema da transparência como um eixo definidor da nossa “condição atualista”. Transparência que, ainda que visível e uma chave importante de compreensão do nosso tempo, parece ser o oposto do que foi identificado em texto também recente e com propósito semelhante ao de Pereira. Refiro-me a Dentro do Nevoeiro, de Guilherme Wisnik (2018).

Ali, Wisnik (2018, p. 5) pontua que “uma das características mais marcantes da arquitetura contemporânea é o nublamento. Edifícios camaleônicos, que parecem trocar de roupa”. Colecionando exemplos no mundo da arquitetura, das artes e da tecnologia, Wisnik (2018, p. 7) acredita que, para o “ethos iluminista que informou em grande medida a arte e a arquitetura modernas, a transparência era um índice de verdade, despojamento, honestidade e pureza”. O vidro foi, assim, um instrumento por excelência do esclarecimento racional. Ora, o que se vê, portanto, é que a modernidade, valorizando uma verdade absoluta, hiperexposta, desencantada – características denunciadas inclusive por Benjamin (2012, p. 86) como a “nova pobreza” moderna -, teve na ideia de transparência uma característica fundamental. Sintoma oposto, portanto, ao que observaríamos hoje, quando a sombra, o velamento, o embaralhamento e mesmo aquilo a que Wisnik (2018, p. 11) se refere como uma “poética da bruma e da evanescência” são explorados como “emanações eloquentes de significados”, revelando o que seria, talvez, uma desconfiança da racionalidade iluminista.

Nada disso muda, no entanto, a principal virtude de Lembrança do presente, a saber, seu objetivo de reabrir a história de discursos fatalistas e que perdem de vista a possibilidade de recriação do presente. Nesse sentido, parece-nos muito acertada a escolha de opor os conceitos bergsonianos de “falso reconhecimento” e, naturalmente, “lembrança do presente”. No caso do primeiro, trata-se, por exemplo, do déjà vu, “visto que o presente instantâneo toma a forma de uma lembrança. (…) Em outras palavras, ele é uma suposta repetição, um reconhecimento aparente, em geral, ilusório” (PEREIRA, 2022, p.113). Mais exatamente, diz-nos Pereira (2022, p. 114), o que vemos é o presente ser compreendido como uma das formas do passado, coincidindo nesse caso com alguns estados como o de “apatia e indiferença, com uma ‘desatenção à vida’ e, em especial, à ação e ao futuro”. Aqui, não nos parece casual que esses estados coincidam com aquilo que François Hartog acreditou serem as principais características de um regime de historicidade presentista, em especial o fechamento do futuro.

Nesse caso, mais importante é notar que a hipótese presentista padece de uma insuficiência de base. Isso porque, na sua essência, ela traz consigo a morte do possível e do contingente, fechando a experiência numa dimensão temporal única e, por suposição, autossuficiente. O que Pereira nos propõe, então, acompanha o que também foi notado por Guimarães e Rauter (2021), quando afirmaram que precisamos adensar a descrição do mundo contemporâneo e que a onda de ativismos e de reflexões sobre a transformação do presente pode estar apontando para a necessidade de revisarmos a imagem multidimensional acerca do presente e mesmo do futuro.

Nota

1 Esse capítulo retoma e aprofunda reflexões originalmente publicadas em Varia Historia. Ver: Pereira (2015).

Referências

ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0: Como a ideia de atualização mudou o século XXI. Ouro Preto: SBTHH, 2018.

ARANTES, Paulo. O Novo Tempo do Mundo e outros estudos sobre a era da emergência São Paulo: Boitempo, 2014.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: O anjo da história Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 83-90.

GUIMARÃES, Géssica; RAUTER, Luísa. Ativismo, movimentos sociais e politização do tempo: Possibilidades dos feminismos no Brasil contemporâneo. In: PINHA, Daniel; GUIMARÃES, Géssica; RANGEL, Marcelo (Org.). Diante da Crise: Teoria, história da historiografia e ensino de história hoje. Vitória: Milfontes, 2021, p. 51-69.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte, Autêntica, 2013.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.

LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (Ed.). Breaking Up Time: Negotiating the Borders Between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.

NICOLAZZI, Fernando. Os historiadores e seus públicos: Regimes historiográficos, recepção da história e história pública. História Hoje, v. 8, nº 15, p. 203-222, jan./jun. 2019.

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, v. 31, n. 57, p. 863-902, set./dez. 2015.

TURIN, Rodrigo. As (des)classificações do tempo: Linguagens teóricas, historiografia e normatividade. Topoi, n. 33, p. 586-601, jul./dez. 2016.

WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro: Arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo: Ubu, 2018


Resenhista

Mauro Franco Neto – Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Departamento de Ciências Humanas. E-mail:franconeto.m@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-5473-8436


Referências desta Resenha

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. Resenha de: FRANCO NETO, Mauro. Reabrir o presente, reabrir a história: Os vários tempos do contemporâneo. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 38, n. 77, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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