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Imagens Interditas: censura e criação artística no espaço ibérico contemporâneo | Diálogos | 2022

Detalhe de capa do Diccionario del Franquismo (2019), de Manuel Vazquez Montalban (Autor) e Miguel Brieva (Ilustrador)

O presente dossiê resulta do primeiro Congresso Internacional Imagens Interditas. Cinema e literatura no espaço ibérico – séculos XX e XXI, que decorreu a 12, 13 e 14 de Abril de 2021, numa organização do CEComp – Centro de Estudos Comparatistas (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), em colaboração com o IHA – Instituto de História da Arte (Universidade NOVA de Lisboa) e o CHAM – Centro de Humanidades (Universidade NOVA de Lisboa, Universidade dos Açores).

O evento contou com 33 comunicações de 38 participantes de 15 universidades (Universidade de Lisboa, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade de Coimbra, Universidade do Minho, Universidade Lusíada, UNED – Universidad Nacional de Educación a Distancia, Universidade de Brasília, University of the Western Cape, Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, Université Paris Nanterre, Universidad de Alcalá, Universitat Pompeu Fabra, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidad de Málaga e Universidade de Bergen) de seis países (Portugal, Espanha, Brasil, França, Noruega e África do Sul). Contámos ainda com comunicações de um editor e de um realizador de cinema. As duas conferências plenárias do evento foram proferidas por Ana Cabrera (Universidade NOVA de Lisboa) e Josefina Martinez Alvarez (UNED – Universidad Nacional de Educación a Distancia).

Após a realização do congresso foi aberta uma chamada de artigos para o presente dossiê, que obedeceu a um dupla revisão cega por pares levada a cabo por avaliadores provenientes de Instituições portuguesas, italianas, espanholas e brasileiras.

Algumas das principais questões que nortearam a proposta do evento, e que estão agora subjacentes ao dossiê, são as seguintes: qual a diferença entre as imagens que passam diante dos nossos olhos e aquelas que o imaginário produz? Quais as mais poderosas e “subversivas”? O que justifica, nesse caso, a censura? As imagens em si, os seus propósitos ou os seus usos? São as imagens aquilo que acaba por ser censurado ou o que pensamos e fazemos posteriormente com elas? A tensão entre visibilidade e invisibilidade, entre imagem vista e imagem imaginada, endereça-nos para as complexas relações entre literatura e artes visuais.

Ainda há poucas décadas, em países como Portugal (de onde os editores convidados deste número são oriundos) ou o Brasil (onde a revista Diálogos foi fundada), questionar e debater a própria natureza e legitimidade da censura seria, pois, tarefa impossível, ou, pelo menos, impensável nos moldes aqui propostos. Não obstante a aclamada conquista do direito de liberdade de expressão por Portugal, Espanha e Brasil no quadro do Estado de direito e dos valores democráticos, no exacto momento em que estas linhas são escritas, não apenas nestes três países, mas também em muitos outros pontos do globo, autoridades policiais, responsáveis públicos e grupos privados continuam a silenciar, suprimir ou remover determinadas obras de arte da esfera pública, cancelando exposições, confiscando livros e proibindo a distribuição de filmes simplesmente por serem criações “controversas” ou “incómodas”. Em nome da “protecção do público” e de “princípios superiores”, tal é levado a cabo com a justificação de se evitar a subversão da política e da sociedade e a corrupção moral.

Grande parte do século XX ibérico foi marcado pela censura imposta por regimes ditatoriais (em especial o Estado Novo e o Franquismo) que visavam todas as formas de expressão, principalmente a comunicação social, o cinema, o teatro, a música e a literatura. Em paralelo surgem fenómenos de resistência, seja abertamente, seja na clandestinidade, que desenvolveram movimentos como o neo-realismo em Portugal e o tremendismo em Espanha. Nesse país, após o fim da Guerra Civil, grande parte dos intelectuais emigraram, construindo, então, uma impressionante literatura de exílio, contando uma versão alternativa à História propagada pelo regime vencedor. Tal circunstância é bem demonstrativa do facto de que, ao negar certas obras de arte, os mecanismos da censura poderem acabar por ser o principal impulsionador de uma criação que denuncia e responde ao próprio censor, desempenhando este um papel determinante na construção dos seus significados e sentidos.

A investigação sobre a censura ao cinema em Portugal durante (e após) a ditadura começa a dar passos cada vez mais largos, sobretudo após a concretização do projecto “Censura e mecanismos de controlo da informação no teatro e no cinema antes, durante e depois do Estado Novo”, coordenado por Ana Cabrera. Em Espanha, os estudos sobre o tema da censura ao cinema durante o franquismo estão mais desenvolvidos. Porém, só muito recentemente se começou a estudar, sob um ponto de vista comparado, o que sucedeu nos dois países ibéricos, no que respeita à organização das respectivas comissões de censura ao cinema, composição das comissões e modus operandi, durante o período em que vigoraram ambas as ditaduras. A publicação mais recente é o dossiê “Censura ao cinema nas ditaduras ibéricas” (Ler História), no qual se conclui que existiam mais semelhanças do que diferenças e que estas sofreram alterações ao longo dos anos, dependendo dos acontecimentos e contextos políticos e sociais dos dois países. (MORAIS, 2021, p. 9-84).

Do ponto de vista internacional, os estudos sobre censura ressurgiram nas últimas décadas. Por um lado, o declínio das potências coloniais e o colapso do modelo soviético dos Estados socialistas (com os acontecimentos do Leste Europeu ocorridos entre 1989 e 1991) permitiu o acesso a um volume considerável de material de arquivo e assim lançar uma nova luz sobre as relações entre controlo estatal e produção artística. Por outro lado, o fenómeno da última onda de globalização, mitigador de restrições institucionais anteriormente confinadas às políticas estatais nacionais, desencadeou debates sobre a própria definição da censura enquanto tal. A perspectiva tradicional, segundo a qual o controle da criação artística representa um “estado de excepção”, é desafiada por aquilo que já foi designado por “nova censura” (BUNN 2015).

De acordo com Pierre Bourdieu (1982), a prática da censura pode ser sistematizada, grosso modo, em função de três grandes categorias: a institucional, quando imposta por um Estado mediante legislação específica e organismos que a aplicam; a estrutural, assente no controlo que a própria estrutura da sociedade exerce sobre a circulação de um determinado discurso, estabelecendo uma hierarquia entre vozes dominantes e vozes relegadas para a margem (e que pode tomar a forma da intimidação popular, da represália e do ostracismo); e, finalmente, a auto-censura, que consiste na resposta ou cedência, consciente ou inconsciente, de um determinado autor/agente às duas formas acima referidas. Nesse sentido, o escritor português Ferreira de Castro escrevia, em 1945, que, “Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho”. (CASTRO 1945).

A tentativa de controlar o discurso público legitimando certas vozes e relegando outras ao silêncio constitui um dos principais objetivos da censura. Esta está intimamente ligada ao exercício da coerção estatal e/ou institucional com o fim de se impor uma ideologia a pretexto da proteção dos valores de uma sociedade. Não obstante, perante a concepção liberal tradicional da censura governamental como algo “externo, coercitivo e repressivo” (BUNN 2015), abordagens mais recentes têm defendido que o seu campo é bem mais subtil e generalizado do que o primeiro modelo. Novos estudos têm mostrado que as relações entre criação, produção e recepção da arte e as suas estruturas de controle e censura podem ser imensamente dinâmicas e complexas (KENNEDY & COULTER 2018). À luz dessa reinterpretação, não só qualquer um de nós pode, a qualquer momento, assumir o papel de censor activo, como se afigura difícil determinar peremptoriamente se uma dada obra não se torna ao mesmo tempo um acto de censura e um gesto que a denega. Também todo o questionamento de uma dada estética ou tema hegemónico tem uma consequência censória não intencional.

Muito recentemente, uma enorme vaga de censura – feita em museus, na imprensa e nas redes sociais (como o Facebook e o Instagram) – vem visando obras que, do cinema à fotografia, passando até pelo legado histórico da pintura, têm gerado acesos debates na praça pública. Ao mesmo tempo, a dependência das instituições de arte ao financiamento privado – ainda que parcial – parece legitimar a interferência na sua programação e nas suas atividades. Embora caiba aos Estados estabelecerem as regras do discurso considerado aceitável na esfera pública, isto é, no que diz respeito a quem pode falar e ao que pode ser dito, lobbies e grupos privados, na sua associação ao poder estatal, adquiriram o poder de impor os seus próprios padrões e ideologias. Acresce ainda o facto de estarmos a assistir à ascensão de partidos de extrema-direita em países de tradição democrática, mas com passados ditatoriais, como é o caso de Portugal e Espanha. O novo eclodir da guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, mostra como o controle da comunicação social volta a estar na ordem do dia.

Neste contexto, na “era digital” e da “pós-verdade”, em que as redes-sociais ganham cada vez mais relevância na formação da opinião pública, as figuras da “contra-informação” e da “desinformação” ascendem a patamares nunca antes vistos. Todos os dias somos bombardeados por fake news, fruto da utilização das técnicas de comunicação e informação para induzir a erro ou dar uma imagem deturpada da realidade, mediante a supressão ou ocultação de informações, minimização da sua importância ou distorção do seu sentido. Compreendemos assim que, ao abordarmos a censura enquanto prática, implica não a considerar como um exclusivo monopólio dos regimes autoritários, identificando momentos nos quais os regimes democráticos recorreram a práticas censórias (GUBERN, 1981). A censura pode assim ser encarada como um sistema de comunicação, independente do regime político em que vigora, no qual se verifica o desejo de impor uma interpretação da realidade, considerada a válida pelo poder vigente (DARNTON, 2015; LUHMANN, 1999, 2000; MOORE, 2015; MÜLLER, 2004). Assim, no quadro dos actuais regimes democráticos, não podemos afirmar que a censura esteja definitivamente extinta no campo das artes. As denúncias que contrariam esta posição sucedem-se. Vivemos um momento intenso de censura não institucionalizada, não legislada, e, por isso mesmo, mais difícil de ser quantificada, contextualizada e analisada. Este parece ser o momento certo para investigadores de diversas geografias e domínios do saber encararem o desafio de trabalhar sobre a censura contemporânea e, desse modo, contribuírem para a sua compreensão, prevenção e minimização dos seus efeitos. Este dossiê pretende assim promover o debate sobre o tema, focando-se em dois países que, para além de contextos históricos similares – semi-periferia, Inquisição, colonialismo, entre outros – suportaram duas das mais longas ditaduras do século XX.

O dossiê abre com “Cultura clandestina, cultura de exílio e imagens subversivas no ocaso ditatorial português”, de Daniel Melo, um artigo abrangente que parte de filmes, fotografias e cartazes, entre outros, para reflectir as relações entre as práticas repressoras em Portugal desde os anos 1960 e as culturas clandestinas e de exílio, em que se destacam questões relacionadas com o antifascismo, o anticolonialismo e o anti-imperialismo. Seguem-se três estudos sobre casos concretos de censura em Portugal: “Das Mónicas de Novas cartas portuguesas às Mónicas de Maria Teresa Horta”, de Andreia Oliveira, sobre o universo hortiano, as personagens feministas e a censura; “Ernesto de Melo e Castro e o salto do cavalo no jogo de xadrez do Estado Novo”, de Cláudia Madeira, em que se aborda a estratégia do artista para evitar o controlo da PIDE através de práticas experimentais e da poesia visual; e “Margem de certa maneira. O caso da censura a Catembe”, de Maria do Carmo Piçarra, em que se analisa a utilização do cinema para a construção de uma determinada imagem de Portugal e das suas colónias, a função dos censores e a censura ao filme Catembe.

A sexualidade e o erotismo constituem tradicionalmente alvos de processos censórios. Os artigos seguintes abordam essa questão de forma cronológica em diferentes áreas, em particular o cinema nos últimos anos da ditadura portuguesa (“Censura ao erotismo e violência no cinema em Portugal (1968-1974)”, de Ana Bela Morais); e o “cruising, o queer e as identidades homossexuais nas artes contemporâneas (“João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira: ‘cruising’ no reino do não-dito”, de Bruno Marques).

O dossiê encerra com artigos que abordam contextos não exclusivamente portugueses: “Forbidden (Homo)sexual Images in Translated Short Fiction in Estado Novo Portugal and StateSocialist Hungary between 1949 and 1974”, de Zsófi Gómbar, em que a questão da homossexualidade volta a ser posta em cima da mesa, desta vez a partir da tradução literária de textos de língua inglesa e das estratégias de fuga à censura; “A coincidência da invenção poética revolucionária com a invenção política revolucionária’: os casos das exposições Cuba Colectiva e 48 Artistas, 48 Anos de Fascismo”, em que Cristina Pratas Cruzeiro, reflecte sobre a relação entre as experiências de pintura colectiva Cuba Colectiva (Havana, 1967) e 48 Artistas, 48 Anos de Fascismo (Lisboa, 1974) e a forma como foram recebidas na sociedade portuguesa contemporânea, em particular nos âmbitos poético e político; e finalmente “Luisa Carnés: a recuperação de uma voz feminina do início do século XX pela academia e pelas editoras”, de Isabel Araújo Branco, com a compreensão dos contextos e processos que levaram a que uma escritora da II República espanhola tenha sido “ignorada” durante a ditadura de Franco e que já no século XXI seja alvo de um crescente interesse por parte de leitores, críticos, editores e investigadores.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Censure et mise en forme. In: Ce que parler veut dire. Paris: Librairie Arthème Fayar, p. 167-205, 1982.

BUNN, Matthew. Reimagining repression: New censorship theory and after. History and Theory 54 (1):p. 25-44, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1111/hith.10739

CASTRO, Ferreira. O momento político. A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In: Diário de Lisboa, Sábado, 17 de Novembro de 1945. Disponível em: https://www.ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php

DARNTON, Robert. Censors at work: How states shaped literature. New York: WW Norton, 2015.

GUBERN, Román. La censura: Función política y ordenamiento jurídico bajo el franquismo (1936- 1975). Barcelona: Península, 1981.

LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 2ª ed. Lisboa: Vega, 1999.

LUHMANN, Niklas. The Reality of the Mass Media. California: Stanford University Press, 2000.

MOORE, Nicole. (ed.) Censorship and the limits of the literary: a global view. London/Oxford/NY/ New Delhi/Sydney: Bloomsbury, 2015.

MORAIS, Ana Bela. Censura ao Erotismo e Violência. Cinema no Portugal Marcelista (1968- 1974). Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2017.

MORAIS, Ana Bela (coord.). Dossiê: Censura ao cinema nas ditaduras ibéricas. In Ler História, nº 79, 2021, pp. 9-84. URL: https://journals.openedition.org/lerhistoria/index.html

MÜLLER, Beate. Censorship and cultural regulation: mapping the territory. In: Censorship and cultural regulation in Modern Age. Ed. B. Müller, Amesterdam / NY: Brill / Rodopi, pp.1-31, 2004.

ROISIN, Kennedy, Riann COULTER (ed.) Censoring Art: Silencing the Artwork. London, New York: IB Tauris, 2018.


Organizadores

Ana Bela Morais – Universidade de Lisboa. Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras: Lisboa, PT.  https://orcid.org/0000-0001-6728-1319  E-mail: anabmorais7@campus.ul.pt

Bruno Marques – Instituto de História da Arte. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa. Lisboa, PT https://orcid.org/0000-0001-9693-0090  E-mail: brunosousamarques@gmail.com

Isabel Araújo Branco – CHAM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. FCSH, Universidade NOVA de Lisboa. Lisboa, PT https://orcid.org/0000-0003-2204-5501  E-mail: ibranco@fcsh.unl.pt


Referências desta apresentação

MORAIS, Ana Bela; MARQUES, Bruno; BRANCO, Isabel Araújo. Apresentação. Diálogos. Maringá, v. 26, n. 1, p. 1-6, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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