Identidade e fronteiras étnicas: a prática da língua ucraniana em Prudentópolis – PR (1940-2018) | Lourenço Resende da Costa

Detalhe de capa de Identidade e fronteiras étnicas: a prática da língua ucraniana em Prudentópolis – PR (1940-2018)

A obra Identidade e fronteiras étnicas: a prática da língua ucraniana em Prudentópolis – PR (1940-2018) discorre acerca da língua ucraniana enquanto elemento basilar para a manutenção da cultura ucraniana no município de Prudentópolis, no estado do Paraná. O livro, de autoria de Lourenço Resende da Costa, é produto de sua tese defendida em 2019, visando à conclusão do Doutorado em História, pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Apesar de ser uma obra que se insere no campo da História, a sua contribuição se estende à área da Linguística, uma vez que traz elementos passíveis de análise também nesse horizonte. Nesse sentido, em termos de problemática, o autor desdobra criticamente o fato de que a língua ucraniana está sendo cada vez menos falada e transmitida às gerações mais jovens – língua esta que representa e continua sendo um elo identitário, além de ser considerado um fator fundamental das fronteiras étnicas entre os descendentes de ucranianos daquele município.

Lourenço Resende da Costa é professor de História e Pedagogo pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR), e organizador de diversos livros: Faces do Paraná: (i)migrações, cultura e identidades (2021); Ucranianos e seus descendentes no Paraná: religiosidade e identidades etnoculturais (2021); Gênero, mulheres e masculinidades na história, literatura e no cinema (2019); Fragmentos de  Identidade e Cultura (2018); e Diversidade étnica e cultural no interior do Paraná (2016).

A obra versa, mais precisamente, sobre como os imigrantes ucranianos que se estabeleceram no município de Prudentópolis, a partir da última década do século XIX, fazem uso da língua própria de suas origens, destacando que esse é um importante elemento para preservar a identidade de um povo e as fronteiras de sua etnia. Como aporte teórico, Costa utilizou autores como Fredrik Barth e Denys Cuche, que contribuíram nas discussões sobre a perspectiva de que a identidade e suas fronteiras são advindas de relações sociais e culturais.

O livro é composto por doze capítulos e está dividido em três partes. A primeira, intitulada “Língua e Identidade”, é composta de quatro capítulos que tratam, especificamente, da origem histórica da língua ucraniana, considerada como um fator étnico, além de discorrer sobre as mudanças linguísticas a partir do contato da língua ucraniana com a língua portuguesa brasileira. Já a segunda parte do livro, denominada como “A língua na transição e na relação internacional”, compreende cinco capítulos, trazendo uma perspectiva histórica acerca dos desdobramentos da língua ucraniana, dividida nos períodos de 1940 a 1950, de 1960 a 1970 e de 1980 até o início do ano 2000. Por fim, a terceira seção – “Imprensa e Religião: pilares da língua ucraniana” – é composta por três capítulos que abordam a relevância da imprensa e da religião na preservação da língua ucraniana em Prudentópolis, bem como de sua identidade etnocultural.

Ao longo da obra, é interessante mencionar que o autor buscou, por meio de entrevistas, examinar se a língua se converte em um elemento de etnicidade para os povos que descendem dos ucranianos, e que se estabeleceram na região de Prudentópolis. Além disso, a partir da pesquisa realizada por Costa, foi possível observar as mudanças e as variações pelas quais a língua ucraniana vem passando.

Com o propósito de responder às inquietações da pesquisa, Costa recorre à história oral como metodologia, e as entrevistas como ferramentas, coletando, assim, 48 entrevistas entre 2017 e 2018, contando com a participação de descendentes de ucranianos residentes em Prudentópolis e membros do clero ucraniano-brasileiro (padres, freiras e catequistas). Em sua maioria, os entrevistados apontaram a língua ucraniana enquanto uma característica relevante para a formação identitária, e o seu uso como uma maneira de identificação do grupo.

Nesse sentido, o autor utiliza como recorte temporal a década de 1940 até o ano de 2018. Costa optou por iniciar na referida década, justificando ter sido este o ano de imigração ucraniana mais intensa no município. No caso dos prudentopolitanos com ascendência ucraniana, durante os anos 40, uma legislação do Estado Novo acirrou as restrições ao uso de línguas estrangeiras no país. Foi esse contexto que propiciou condições e uma necessidade de reconstrução da identidade étnica ucraniana, que vinha sendo reconfigurada desde a chegada ao Brasil. Ademais, há uma dilatação no corte temporal, transportando-o até o ano de 2018, já que as pessoas entrevistadas rememoram a partir do presente, e os efeitos dos processos de identificação podem ser percebidos até os dias atuais.

Buscando discutir sobre a construção e as reconstruções da identidade étnica ucraniana em Prudentópolis quanto às diferenças geracionais, o autor se vale da conceituação de geração feita por Karl Mannheim, a qual considera que a instância geração não pode ser compreendida apenas como a reunião de pessoas com a mesma faixa etária. Para ele, mais importante do que definir as balizas de início e término de uma geração é perceber as conexões entre grupos distintos e compreender o que une os indivíduos em uma formação comum. É essa perspectiva teórica que concede a Costa diferentes possibilidades de análise.

Segundo o autor, a cidade de Prudentópolis é um dos centros da atual comunidade ucraniana brasileira, visto que boa parte da população desse município é descendente de ucranianos. Os primeiros cinco mil imigrantes chegaram em Prudentópolis entre os anos de 1895 e 1896. Muitas escolas no município oferecem a língua ucraniana como curso obrigatório ou opcional de língua estrangeira. Nas escolas nas quais a língua ucraniana é facultativa, uma grande quantidade de alunos opta por estudar ucraniano, em detrimento de outras línguas, como inglês ou espanhol, devido ao grande número de falantes locais. No entanto, a difusão da língua ucraniana nem sempre foi tão simples.

Nas décadas de 1930 e 1940, o presidente Getúlio Vargas proibiu o uso público e o ensino formal de línguas estrangeiras, especialmente as provindas de imigração, o que resultou em um sério desafio para a relativamente nova comunidade ucraniana. Dessa forma, muitos imigrantes, advindos de diversas partes do mundo, acabaram perdendo o contato com a cultura de seus ancestrais ao longo de gerações e, dessa maneira, assimilaram mais rapidamente a cultura brasileira moderna. Apesar disso, os ucranianos de Prudentópolis, e de outras localidades do Paraná, conseguiram preservar muitas de suas tradições culturais, linguísticas e religiosas.

Hoje, os ucranianos do estado do Paraná mantêm sua cultura de diversas formas. A manutenção dos costumes ucranianos pode ser parcialmente credenciada à atuação da Igreja Católica Ucraniana de Rito Bizantino Ucraniano, no município e na região. Nessa perspectiva, as igrejas ucranianas têm desempenhado um papel fundamental em manter as comunidades unidas no decurso das gerações. Somados aos serviços educacionais e religiosos promovidos e administrados pelas igrejas locais, Prudentópolis mantém grupos de dança ucraniana, entre eles, o Grupo Folclórico Ucraniano Brasileiro Vesselka. A cidade também dispõe de um museu, chamado Museu do Milênio, dedicado a valorizar a história da imigração na região. Repleto de fotografias dos primeiros imigrantes e de artigos de vestuário tradicionais ucranianos, o espaço se configura como um local de memória, resguardando as lembranças da história e das origens culturais da cidade e de seus imigrantes.

Costa acredita que a unidade dentro da diáspora no Brasil, e o vigor com que cada comunidade preservou a cultura ucraniana, evidencia como determinadas tradições são poderosas em unir as pessoas. A fim de analisar essa identidade presente em Prudentópolis, bem como as fronteiras étnicas por meio da língua ucraniana, que é usada amplamente nesse município, faz-se necessário entender quando isso ocorreu, mais precisamente, a partir do estabelecimento dos ucranianos no Brasil.

Para tanto, ao longo dos primeiros capítulos, o autor traça um panorama histórico acerca da história do povo ucraniano e o seu caminho até se fixar no município de Prudentópolis, relatando que os primeiros imigrantes chegaram ao Brasil por volta do final do século XIX, partindo da Galícia para o Rio de Janeiro, enquanto as agências de viagens estavam ativamente promovendo “viagens” ao exterior para ganhar dinheiro. Nesse período, os imigrantes eram bem aceitos em território brasileiro, desde que se comprometessem a cultivar terras no país. Para isso, os fazendeiros estrangeiros receberam a promessa de terrenos. Naquela época, quase não havia mais terras livres na Ucrânia, então, um grande grupo de galegos de classe média se interessou em emigrar para o Brasil.

Sendo assim, principalmente no estado do Paraná, os imigrantes já adaptados a trabalhar com a terra deram continuidade a esse ofício, dependendo da agricultura para garantir o seu meio de sobrevivência. No município de Prudentópolis, especificamente, os ucranianos que ali se fixaram trabalhavam, em sua grande maioria, em propriedades rurais de pequeno porte, ligadas à agricultura familiar.

Quando os primeiros ucranianos se estabeleceram no território de Prudentópolis, tiveram de se adaptar às condições climáticas, à vegetação e a terrenos desconhecidos. Por isso, a unidade do grupo foi essencial para o êxito no novo local. Além disso, uma informação importante destacada no livro é a de que o assentamento desses imigrantes em colônias mais afastadas dos centros urbanos teve uma contribuição significativa para a formação de comunidades mais unidas.

No decorrer do tempo, os ucranianos, já mais estabelecidos e adaptados em território brasileiro, perceberam que seria necessário aprender a língua portuguesa falada no Brasil, para que suas atividades do dia a dia pudessem ser realizadas com mais facilidade. Contudo, isso não aconteceu em todas as colônias ucranianas do país, pois alguns desses imigrantes continuaram, por um bom tempo, sem aprender o idioma local brasileiro.

Além dos ucranianos falarem uma língua distinta da língua portuguesa falada no Brasil, alguns dos aspectos da sua cultura marcavam as distinções entre o brasileiro e o ucraniano. Por exemplo, os ritos da Igreja Latina e Ucraniana eram muito distintos entre si, o que deixava mais evidente essas diferenças entre “nós” e o “outro”, demarcando essa “separação” entre os povos. Foi por meio desse movimento que começava a ser formada a ucraneidade, ou seja, a identidade étnica cultural do povo ucraniano. Costa aponta que a etnicidade desse povo se constitui: a partir da língua, a qual se manifesta à medida que o idioma é mantido em materiais impressos, como no caso dos periódicos editados pela Igreja; na prática da religião, em que a celebração litúrgica ainda é realizada em vernáculo eslavo; em conversas em ucraniano diante de não falantes, com o intuito de conservar certo sigilo ou intimidade.

Os contatos entre povos distintos no Brasil ocorreram por meio de um determinado contexto e, para que seja possível entender de fato a identidade étnica, tanto o ambiente quanto a demografia de um local se apresentam como muito relevantes, no caso, os aspectos do município de Prudentópolis. Os imigrantes que ali se fixaram eram destinados a viver em loteamentos rurais denominados de Linhas, visto que legalmente o município ainda não tinha sido fundado. Um fato interessante é que grande parte das colônias formadas nesses contextos recebia um grande número de imigrantes de um mesmo país ou região.

Assim, conforme as colônias recebiam mais imigrantes no Brasil, os povos já encontravam em si/para si certa homogeneidade, uma vez que procediam de um mesmo país e, consequentemente, partilhavam de uma mesma cultura. Nesse sentido, era natural que ocorresse uma conservação dessas características próprias da sua cultura, como, por exemplo, a língua. O autor ressalta algumas peculiaridades que levaram a esse quadro, entre elas: a prática da endogamia, visto que algumas Linhas eram quase que exclusivamente povoadas por ucranianos; a ausência de escolas obrigatórias em português, e o idioma da liturgia era/ser o ucraniano; e, por fim, a distância e a insegurança das estradas que ligavam os núcleos coloniais aos centros urbanos minimizavam a necessidade de aprendizado imediato do português.

Ademais, logo após a fixação dos imigrantes em Prudentópolis, e com os contatos mais frequentes entre povos e culturas distintas, a língua ucraniana passou a ser falada pela maioria dos indivíduos que ali vivam. Entretanto, no decorrer dos anos, após a medida arbitrada pelo governo Vargas de proibir as línguas estrangeiras, o uso do idioma ucraniano passava, de forma gradativa, de língua materna à língua falada por opção.

Outro ponto interessante com relação à língua é a análise que o autor empreende a partir de diversas narrativas obtidas por meio de entrevistas com descendentes de imigrantes ucranianos, focando, principalmente, em pessoas de mais idade. Tais depoentes relataram que têm certa dificuldade em utilizarem algumas palavras e expressões na língua portuguesa brasileira, e isso não se deve ao fato de desconhecerem a sua tradução em português, mas, sobretudo, devido a uma correlação de sentido da maneira como é falada em ucraniano. Eles relatam que a palavra possui um sentido mais amplo, ou mais bem compreendido em sua língua de origem, ou seja, no ucraniano.

Nesse contexto, a língua ucraniana passou por transformações significativas, e a sua variedade foi expandida. Os ucranianos de Prudentópolis passaram a utilizá-la por escolha própria e não simplesmente como resultado do contexto em que esses sujeitos interagiam comunicativamente. Dessa forma, a língua passou a ser um elemento de distinção, que marcava essa diferença étnica. Em uma conjuntura de interações, cada vez mais constantes com culturas distintas da ucraniana, os imigrantes estavam inseridos em um espaço apropriado para usar a língua portuguesa, no entanto, muitos desses imigrantes e seus descendentes ainda preferiam usar a língua ucraniana.

Outro aspecto importante apontado pelo autor é o de considerar a língua em uma perspectiva do campo da sociolinguística. Por ser um fenômeno social, a língua acaba mudando, e isso faz parte da construção de todas as línguas. Com o passar do tempo, ela é transformada pelas próprias pessoas que a usam. Essa mutabilidade pode decorrer de diversos fatores, os quais podem ser divididos em duas esferas: a) intralinguística, composta por elementos presentes dentro da comunidade falante; e b) extralinguística, formada por elementos trazidos de uma língua para outra. Dessa forma, a língua se constituiu em um patrimônio cultural extremamente importante para um grupo.

Outrossim, no momento em que se consubstancia a troca de experiências e informações por parte de indivíduos de diferentes culturas, a língua sofre uma variação, mesmo que não intencional, justamente por ser a ferramenta que torna possível o intercâmbio oral de ideias. Ela nasce e se altera por causa do contato com outras línguas desde o início da civilização. É dessa maneira que o autor explica como ocorreu a formação da etnicidade ucraniana em Prudentópolis, bem como as suas alterações no percurso temporal.

Ainda sobre esse aspecto, a obra também dispõe entrevistas cujo foco principal é a língua. As entrevistas foram realizadas com as gerações de imigrantes ucranianos e seus descendentes, que ainda se encontram vivendo em Prudentópolis, além de indivíduos que, de alguma forma, atuam na Igreja Católica Ucraniana de Rito Bizantino Ucraniano. A partir disso, foi possível, por meio de uma perspectiva relacionada ao tempo, observar de que modo a língua, compreendida entre 1940 a 2018, foi utilizada para definir e diferenciar o povo ucraniano fixado em Prudentópolis.

A narrativa oral constituiu um elemento de suma importância para o desenvolvimento da pesquisa de Costa, considerando-se que a língua ucraniana ainda se faz contemporânea no município de Prudentópolis. Costa, no entanto, destaca uma redução no uso do idioma ucraniano, a qual é provocada, principalmente, pela mídia de massa, pelas escolas e pelos casamentos mistos, gerando um espaço cada vez menor e restrito ao idioma ucraniano.

Portanto, a obra Identidade e fronteiras étnicas: a prática da língua ucraniana em Prudentópolis – PR (1940/2018) deixa claro que a identidade étnica ucraniana não foi transferida do país de origem para o município de Prudentópolis da mesma maneira que era praticada entre os povos da Ucrânia, mas foi sendo construída no Brasil, por meio do contato entre os diferentes falantes e culturas distintas, que acabavam por se aproximar entre si como imigrantes. Dessa forma, o desenvolvimento e as mudanças que ocorrem na língua são naturais, pois, a partir do momento em que as fronteiras étnicas são estabelecidas, uma determinada língua pode sofrer mudanças, ou até mesmo desaparecer.


Resenhista

Nikolas Corrent – Doutorando em História (Unioeste). E-mail: nik_corrent@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7628-6493


Referências desta Resenha

COSTA, Lourenço Resende da. Identidade e fronteiras étnicas: a prática da língua ucraniana em Prudentópolis – PR (1940-2018). São Paulo: Todas as Musas, 2021. Resenha de: CORRENT, Nikolas. Identidade e língua: os descendentes de ucranianos em Prudentópolis – PR. Outros Tempos. São Luís, v. 19, n. 34, p. 123-130, 2022. Acessar publicação original [DR}

 

Itamar Freitas

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