Estudos sobre a personalidade autoritária | Theodor W. Adorno
Theodor W. Adorno | Imagem: DW
A ascensão de movimentos de extrema-direita antidemocráticos pelo mundo trouxe consigo a edição e reedição de diversos livros sobre autoritarismo. Entre esses, o clássico de Theodor W. Adorno em conjunto com outros pesquisadores, Estudos sobre a personalidade autoritária, traduzido competentemente pela primeira vez para o português em edição da Editora UNESP. Apesar de seus mais de 50 anos, a edição em português veio em boa hora: o livro é peça essencial para se compreender fenômenos que não morreram em 1945, como o fascismo e o antissemitismo. Não sem motivo foi tema de mais de “2 mil estudos sobre autoritarismo entre os anos de 1950 e 1990”1.
Um projeto que teve início ainda durante a Guerra, com um grupo em grande parte composto por exilados, Personalidade autoritária se baseia em duas premissas básicas: o fascismo não é exclusivo da Alemanha e existem aspectos sociais e psicológicos que favorecem sua ascensão. Para realizar isso, mescla vários campos do saber. Da mesma forma que o próprio Adorno o era, este livro trafega na interdisciplinaridade, de uma forma que seu conteúdo é útil e recomendável a qualquer pesquisador interessado no pensamento da direita/extrema-direita, seja um psicanalista, um cientista político, um sociólogo, entre outros.
Em uma primeira parte mais densa, os pesquisadores aplicam uma análise quantitativa baseada em escalas, da qual vale destacar a Escala do Fascismo. A segunda parte, não menos rica, aprofunda análises qualitativas e discute os resultados das entrevistas em profundidade, na tentativa de explicar o fenômeno do racismo, do antissemitismo e do fascismo. Surpreende em duas chaves: primeiro a percepção da internacionalidade do fascismo ainda em 1944, quando o estudo teve início; em segundo o aporte empírico, mais de 2000 entrevistas em profundidade.
Vale ressaltar o cuidado com a tradução em conjunto de um trio de tradutores, bem como da opção de recorte. Das quase mil páginas da versão em inglês, chegou-se a cerca de 500 do livro, além de 100 de elementos pré e pós-textuais. Apesar de ter praticamente a metade do livro original, a tradução é eficiente e não passa a sensação de quebrar a leitura. Ao contrário, comparando o original com a versão brasileira, tem-se a impressão de que a leitura ficou mais fluida, mais prática, ainda que mantendo as ideias e os argumentos principais sem mutilá-los. Para isso, a edição privilegiou as passagens de Adorno sobre a dos demais pesquisadores, sem, entretanto, excluí-los: os levantamentos deles na primeira metade são essenciais à compreensão das análises de Adorno na segunda parte do livro.
A maior contribuição de Personalidade autoritária é mostrar, tanto no quantitativo quanto no qualitativo, que o fascismo não é uma exclusividade alemã e/ou do período entreguerras, mas “o filho bárbaro da democracia de massas” 2. Por mostrar, através de seus multimétodos, como “cada ser humano tem um fascista implorando para sair”3, e que não há sociedade imune de seu bacilo. Nesse sentido, reforça os argumentos de Wilhelm Reich4, por exemplo, quando este afirma que o fascismo é uma estrutura psíquica enrustida do homem médio, esmagado pelas configurações urbanas e estruturas políticas modernas. Como um animal preso em uma coleira, que reage agressivamente quando solto. Para isso, o trabalho de coleta de adorno et al 5 é essencial por mostrar como o “fascismo não era um episódio isolado, mas estava presente de forma latente em amostras da população norte-americana”.
Tão mais interessante, é um ponto colocado em destaque durante todo o livro: ainda que sujeitos pontuem alto nas quatro escalas temáticas (Antissemitismo, Etnocentrismo, Conservadorismo político-econômico e Fascismo), buscam manter um verniz democrático durante as conversas. Ainda que alguns relativizem ou até defendam o Holocausto6 , há em constante uma preocupação em se afirmar como defensor da democracia (e até mesmo em acusar minorias perseguidas de, essas sim, estarem atacando a democracia). Alguns defendem que o erro de Hitler não foi a perseguição aos judeus, mas ter levado “as coisas um pouco longe demais” 7, ao mesmo tempo em que as “leis da democracia deveriam favorecer as pessoas brancas e gentias”. Na prática, assim, um malabarismo do sentido de democracia não muito distinto do que faz Mussolini8 em sua doutrina ao afirmar que o Fascismo promove o oxímoro “democracia autoritária”; ou Orbán, para utilizar um exemplo contemporâneo, com o nome orwelliano de “democracia iliberal”9.
O ponto mais interessante dentre os levantados pelos pesquisadores, desta forma, é menos os abertamente antidemocratas e mais aqueles com uma personalidade autoritária latente, isto é, propensos a apoiar o autoritarismo se as circunstâncias propícias aparecerem. Assim, chega-se ao título do livro: a personalidade autoritária é menos sobre um fascista ou um autoritário declarado, e mais sobre o indivíduo propenso a tornar-se um. E por isso perceberam que o fascismo não é uma exclusividade da Alemanha ou da Itália: os traços enrustidos de autoritarismo são comuns10, bem como intrinsecamente interligados à intolerância, racismo e/ou antissemitismo. O que não se alterou muito de 1950 para hoje. É de conhecimento nos estudos sobre democracia a incapacidade de realizar uma pergunta direta em um survey, por exemplo, sobre apoio aberto e declarado a uma alternativa autoritária. Ainda assim, mesmo com essa dificuldade em identificar, uma pesquisa do Latinobarómetro11 encontrou no Brasil de 2018 cerca de 60% da população contra ou indiferente à democracia. E testes qui-quadrados confirmaram uma associação entre essa rejeição e um medo do futuro econômico. Em tempos de propaganda maciça a partir de notícias falsas estapafúrdias, a análise da personalidade autoritária latente, que aflora com o amalgama de propaganda, do ressentimento, do medo e da sensação de crise, se torna tão atual quanto na década de 1940.
Para exemplificar essa questão, o livro abre com uma discussão em profundidade sobre dois indivíduos, Mack e Larry, que, por mais que dividam traços em comuns (homens, brancos, universitários, idade, conservadores), mostram-se ideologicamente distintos – Mack sendo um “pseudoconservador” ou reacionário, enquanto Larry é um conservador genuíno. A discussão entre esses dois indivíduos, ainda que concentrada nos capítulos no início do livro, permeiam todo o livro como exemplo metodológico e empírico de um baixo e um alto pontuador, respectivamente um mais ligado à democracia e outro com traços fortes de intolerância e autoritarismo. Isso porque, ainda que representem um alto e um baixo, Mack e Larry não estão nos extremos da escala, personificando, assim, a maior parte dos indivíduos entrevistados. Mack, por exemplo, não hesita em manifestar antissemitismo, concedendo aos judeus imagens contraditórias que se repetem por grande parte do livro: simultaneamente fracos e fortes, sectários e assimilados, inteligentes e burros, entre outras tantas 12. De forma parecida, o autoritário, quando afirma o seu preconceito, tende a conceder poderes sobrenaturais a um grupo socialmente marginalizado, confundindo o seu próprio grupo como vítima – o que, em última instância, serve para justificar a repressão, tal como o foi com Hitler, o Holocausto e o Protocolo dos sábios do Sião. Ademais, Adorno et al mostram, através de vários exemplos durante o livro, como o autoritário pratica “concessões” aos grupos desumanizados, no sentido de, para tentar um mea culpa após destilar a sua intolerância, ressaltar supostas qualidades desses grupos – ainda que essas qualidades, elas próprias, incorram em estereótipos como o exemplo do judeu como bom homem de negócios.
Entre as várias opções disponíveis, A personalidade autoritária se destaca como uma das principais para os interessados no tema. Ainda que se aproxime de um século de sua publicação, o estudo permanece atual e essencial para compreender o autoritarismo contemporâneo. Estudos atuais que utilizam a mesma metodologia do livro de Adorno et al – como a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Medo da violência e apoio ao autoritarismo13 -, evidenciam a impressão que o leitor tem ao terminar de ler o livro: o fascismo não morreu em 1945. E não morreu porque o fascismo transcende sua versão historiográfica ou política e, como os autores mostram, é até mesmo um traço de personalidade. Do qual se decorre o pioneirismo do estudo de Adorno et al, ao mostrarem os traços latentes de autoritarismos que, ainda que suprimidos, podem facilmente evoluir para autoritarismos escancarados se as devidas condições forem preenchidas.
Notas
1 ADORNO, Theodor W. et al. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019, p. 17.
2 RIEMEN, Rob. Fascism is once more at our doors, and we still refuse to see and treat it by its name: an interview with Cultural Philosopher Rob Riemen. Entrevista concedida a Sergio Schargel. Revista Cantareira, Niterói, nº 33, 2020. Disponível em: https://periodicos.uff.br/cantareira/article/view/40711. Acesso em: 09 set. 2021.
3 SUNSTEIN, Cass (org.). Can it happen here? Authoritarianism in America. Harper Collins: New York, 2018, p. IX.
4 REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. XII.
5 ADORNO, Theodor W. et al. op. Cit, p.14.
6 Ibidem, p. 335-336.
7 Ibidem, p. 335.
8 MUSSOLINI, Benito. My autobiography: with “The political and social doctrine of Fascism”. New York: Dover Publications, 2006, p. 247.
9 HELLER, Agnes. Por que a Hungria se rendeu ao extremista Orbán e como controlar o ensino é essencial para seu projeto. El País Brasil. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/18/actualidad/1555585620_542476.html. Acesso em: 08 set. 2021.
10 ADORNO, Theodor W. et al. op. Cit, p. 22.
11 Latinobarómetro. Latinobarómetro 2018: banco de dados. Disponível em: https://www.latinobarometro.org/latContents.jsp. Acesso em: 12 mai. 2021.
12 Ibidem, p. 33.
13 LIMA, R. et al. Medo da violência e apoio ao autoritarismo no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: http://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/medo-da-violencia-e-o-apoio-ao-autoritarismono-brasil/. Acesso em: 27 set. 2021.
Resenhista
Sergio Schargel – Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica-Rio. Atualmente é Doutorando em Letras pela Universidade de São Paulo, doutorando em Comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: sergioschargel_maia@hotmail.com ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5392-693X
Referências desta Resenha
ADORNO, Theodor W. et al. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019. Resenha de: SCHARGEL, Sergio. Meio século depois, a personalidade autoritária permanece relevante. CLIO – Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v.40, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]