Ensino de História e Historiografia escolar digital, de Marcela Albaine Farias da Costa, como explicitado no título, discute a relação entre os fenômenos da Historiografia escolar digital e a prática do Ensino de História em escolas da educação básica. Construído em quatro capítulos (além da introdução e da conclusão), o livro é resultado de uma tese de doutorado em História, defendida na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), sob a orientação da professora Keila Grinberg, avaliada pelos professores Anita Almeida (UNIRIO, Sonia Wanderley, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rodrigo Turim (UNIRIO) e Bruno Leal, da Universidade de Brasília (UnB).
A introdução do livro é empregada para anunciar as ameaças que o ensino de história, professores e alunos de história e a população em geral vem sofrendo nesses tempos de pandemia e de obscurantismo político. A autora faz considerações autobiográficas sobre sua formação e a construção da tese, anuncia categorias e pressupostos – “o ‘digital’ como condição de pensamento” forjado mais nas práticas que no suporte (p.21) – e apresenta os quatro capítulos que constituem a obra.
No capítulo primeiro – “Cultura digital e políticas do currículo” –, a autora mapeia a presença da cultura digital nas políticas de currículo, configuradas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCNEB) e na Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Para tal, mobiliza a categoria de “ciclo de políticas” sugerindo observá-la nos documentos em suas dimensões de “política proposta”, “política de fato” e “política em uso”, baseando-se nos escritos de Stephen Ball e Richard Bowe. Ao mobilizar os três documentos, a autora confirma que as tensões e relações de poder, em um contexto de dominação e resistência, contribuem para diferentes interpretações e práticas possíveis de implementação das políticas públicas mencionadas. A autora critica a associação do termo “tecnologia digital” e “inovação” como sinônimos e denuncia as ameaças ao ensino de história (a exemplo do avanço das ideias conservadoras), bem como as respectivas implicações no fazer docente na sala de aula e no âmbito da pesquisa. Segundo a autora, os PCN apontam para a hipervalorização do “tecnicismo educacional” em detrimento da ação dos sujeitos no tempo. As DCNEB trazem a expressão “era digital”, estimulando a criação de métodos didático-pedagógicos e exigindo, segundo a autora, muito do que o professor poderia oferecer. Além disso, ainda nas DCNEB, as tecnologias da informação e da comunicação (TICs) podem ser trabalhadas de forma transversal. No que diz respeito à BNCC, publicada em um contexto de forte instabilidade política, a autora destaca o apelo emocional provocado pelas TICs e a incorporação vaga do digital sem subsídios ao professor sobre o adequado emprego.
No segundo capítulo – “Cultura digital como objeto de estudo dos Professores” – pesquisadores em Ensino de História” – a autora apresenta e discute produções que incorporam “cultura digital” como objeto de estudo. A pesquisa é realizada em base de dados e anais de congressos da área de História, com destaques para três fontes: 1) eventos acadêmicos; 2) dissertações de mestrado; e 3) grupos ou linhas de pesquisa do Brasil. Ela assume que o universo pesquisado não dá conta de todos os profissionais envolvidos em práticas e trabalhos voltados para os conceitos que a sua pesquisa se propõe a estudar. No decorrer da análise, contudo, a autora constata o crescimento da utilização de termos digital e virtual nas pesquisas dos autores selecionados, principalmente nos trabalhos apresentados no Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História, cujo público é constituído, dominantemente, por interessados nas práticas de sala de aula. No banco de dissertações do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória), a autora encontrou produções que ajudaram na construção do seu argumento, principalmente as que fazem referência às expressões “gamificação”, “ensino híbrido”, “tecnologias digitais”/”gamificação”, “plataformas digitais”, “aplicativos”, “Google” e “podcast”. O capítulo é encerrado com uma percepção de que é crescente a presença na produção, em termos quantitativos, no material examinado, além do aumento de trabalhos referentes à “cultura digital”, radicados nos campos da História e do Ensino de História.
No capítulo terceiro – “Cultura digital nas escolas a partir da voz dos alunos: a primeira ida ao campo da pesquisa” – a autora retoma o conceito da cultura digital no espaço escolar e aborda o uso de novas fontes de pesquisa histórica, notadamente as ferramentas da tecnologia da informação na educação (em hardware ou software), como geratriz de ensino e aprendizagem de História sem recusar, contudo, os saberes pedagógicos tradicionais e os saberes individuais dos estudantes. Propõe investigar até que ponto, na sociedade contemporânea, os níveis de modernização digital distintos no ambiente escolar e/ou a condição socioeconômica dos estudantes podem interferir na sua formação intelectual e social. Nesse ponto, a autora questiona sobre o grau de entendimento que os jovens possuem sobre as TICs e possível implicação dessa variável na relação ensino-aprendizagem. Em tal sentido, a autora manifesta sua dificuldade para constatar as possíveis deficiências geradas em decorrência da ausência de equidade no contato ou posse com as novas ferramentas. A autora também assume o desconhecimento sobre as estratégias que o público-alvo, escolhido aleatoriamente em unidades públicas e privadas, emprega para a superação dessas dificuldades. A maior parte do capítulo, contudo, é dedicada a examinar as noções de tempo histórico partilhado pelos alunos, mediante a percepção de habilidades caras à tarefa (seriação e simultaneidade, por exemplo), e as formas como representam o tempo, empregando recursos não digitais. Assim, através dos resultados de uma oficina intitulada “Representações no Tempo”, voltada à rememoração de fatos pessoais, interagentes com fatos em escalas, local, nacional e global, a autora conclui que a cultura digital é universal, atravessa costumes e condições materiais do indivíduo e está enraizada na escola, apesar das visíveis diferenças estruturais que marcam os sujeitos dessa instituição.
No quarto e último capítulo – “Cultura digital nas escolas a partir da voz dos alunos: a volta ao campo de pesquisa” –, classificado como continuidade do anterior, a autora propõe a observação e análise e o uso direto da tecnologia digital na experiência discente de narrar histórias de vida e, novamente, do modo como são relacionadas as dimensões mundial/nacional/local, em turmas do 6º e 9º ano das escolas investigadas (uma escola privada e outra pública, da rede federal de ensino, no Rio de Janeiro). A autora também objetiva investigar e descrever a preferência dos alunos pelo impresso e/ou pelo tecnológico mediante oficinas com a possibilidade de uso de material impresso e do suporte digital. No curso do capítulo, a autora confessa que, antes de ir a campo, conjecturava que os alunos escolheriam o digital, em consonância com o conceito “nativos digitais” de Marc Prensky (conceito utilizado para descrever a geração de jovens nascidos a partir da disponibilidade das informações rápidas em rede). No entanto, a autora percebeu que a ocorrência do contrário. Ela compreende tal resultado como algo plenamente justificável diante da (im)possibilidade de acesso, dos problemas de infraestrutura das instituições, o (des)estímulo das escolas, de questões legais, entre outros aspectos condicionantes. Para medir o grau de preferência dos alunos por cada meio de maneira efetiva, segundo a autora, a igualdade de acesso seria necessária tanto ao meio impresso, quanto ao meio digital. Ao final do capítulo, a autora conclui que a ideia de linearidade temporal é frequente nas representações dos alunos e que a presença dos recursos digitais não significa mudança radical, seja de emprego da “lógica da tecnologia” (p.222).
O livro que acabamos de resumir em suas principais ideias, possui, contudo, insuficiências. Algumas são pouco expressivas, como a não esclarecida e justificada definição dos marcos temporais, nos quais se inscreve a pesquisa, a excessiva repetição da descrição das turmas e das suas atividades, a exemplificação redundante de trabalhos.
Outras insuficiências apresentam maiores empecilhos a compreensão imediata do texto. Falta clareza na exposição dos objetivos, na introdução, como também no decorrer do texto, na retomada das respostas às questões anunciadas na seção conclusiva do livro e, principalmente, no esperado (embora não obrigatório) anúncio da área de pertencimento dessa pesquisa, que apresenta elementos mesclados de teoria da História, teoria da aprendizagem e de teoria do currículo, mas pouco revela elementos de epistemológica da ciência da História. A maior insuficiência, por fim, está na obscura definição de “historiografia escolar digital” e na omissão (como objetivo) do exame das noções de tempo histórico dos alunos, que compete com a busca pela noção e importância do recurso digital.
Não obstante as insuficiências apontadas, o livro possui as suas virtudes, das quais ressaltamos três. Em primeiro lugar, ele apresenta momentos indicadores de bom uso dos rudimentos de pesquisa. Observem que a autora evidencia a importância do entendimento do conceito de Pesquisa e Docência, no que diz respeito à atividade de pesquisa básica e à atividade de ministrar aulas para adolescentes, à descrição detalhada de cada uma das oficinas e a exposição de tabelas que facilitam o processo de análise e de reanálise por parte do leitor. A autora também é feliz na sua escolha para a experimentação. Ela explora questão básica para o ensino de História: entendimento do tempo histórico. Ela o faz mediante as habilidades de datação, cronologia, anterioridade, posteridade, simultaneidade, transformação e frequência, aproximando esses elementos à realidade individual e estabelecendo uma conexão entre a história de vida com a história brasileira e a história mundial.
Em segundo lugar, a autora tece considerações sobre a prática docente e toma posições progressistas no que diz respeito ao Ensino de História. Defende a ideia de professores como mediadores e orientadores da aprendizagem, dependentes de conhecimentos e atualizações constantes, critica o fato de as políticas públicas incorporarem a tecnologia e o digital sem apontar estratégias que subsidiem o trabalho dos professores, bem como o desprezo pelo papel do docente na construção dessas políticas.
Em terceiro lugar, o livro apresenta teses conscienciosas e que contribuem para o fortalecimento do campo da pesquisa do Ensino de História. Essa positividade está, por exemplo, na afirmação de que a tecnologia da informação está enraizada na sociedade de uma maneira ampliada, ainda que existissem (e existam) barreiras socioeconômicas para tal, na percepção de que a escolha do impresso pelo digital acontece em parte por conta dos problemas de acesso, inviabilizando resultados mais consistentes, na defesa do uso das TICs, como ferramenta para inclusão digital nas escolas, e na apresentação, mesmo que de forma fragmentada, de possibilidades de uso das TICs em sala.
Em síntese, tanto pelas insuficiências como pelas virtudes que apresenta, como também pelos desafios de investigar questões de ensino-aprendizagem na fronteira da Ciência da Informação, da Pedagogia e da História, o livro de Marcela Costa deve ser lido por todo mestrando que se empenha na pesquisa sobre Ensino de História e, não apenas pelos que se interessam por temáticas que envolvem a discussão sobre os artefatos (entre os quais a narrativa histórica), as práticas, as compreensões os fins escolares adjetivados pela palavra “digital”.
Sumário de Ensino de História e Historiografia escolar digital
Resenhistas
Para citar esta resenha
COSTA, Marcela Albaine Farias da. Ensino de História e Historiografia digital. Curitiba: CRV, 2021. 212p. Resenha de: GOMES, Johnny P.; SANTOS, Elemi; SILVA, Douglas; PASSOS, Viviane Andrade. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, p.21-26, maio/jun. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/o-digital-no-ensino-resenha-de-ensino-de-historia-e-historiografia-escolar-digital-de-marcela-albaine-farias-da-costa/> Acessar publicação original.
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