Ensaios de História e Filosofia da Química | Luciana Zaterca e Ronei Clécio Mocellin

Detalhe de capa de Ensaios de Historia e Filosofia da Quimica

Detalhe de capa de Ensaios de História e Filosofia da Química

Por meio de discussões filosóficas baseados em casos históricos e até de assuntos contemporâneos,  Zaterka  e  Mocellin,  no  livro  Ensaios  de  História  e  Filosofia  da  Química,  levantam questões importantes em torno da química, entrelaçando vieses epistemológicos, ontológicos e até mesmo éticos, ambientais, econômicos, sociológicos e políticos. Os ensaios, distribuídos em cinco capítulos e as considerações finais, trazem discussões que podem contribuir para ativi-dades no ensino de química superior, em aulas de disciplinas específicas de história e filosofia da ciência/química e ensino. Os capítulos podem ser lidos de forma independentes, porque tratam de assuntos (estudos de caso) autônomos. Esses capítulos podem, também, contribuir no planejamento de outras disciplinas da graduação, para contextualização de conceitos como a experimentação (caso da alquimia no capítulo 1, filosofia experimental no capítulo 2 etc.), as substâncias simples (caso do alumínio no capítulo 4) e a síntese química (caso do plástico no capítulo 4 e fertilizantes capítulo 5). Os casos envolvem os conhecimentos acerca da matéria/materialidade/mundo material, por meio da discussão de práticas, produtos e processos ligados, desde a alquimia, passando pela química e a medicina até chegar à agricultura industrial (química agrícola).  Assim, lendo o livro de forma completa, apresenta-se a química com toda a sua centralidade, identidade epistêmica e capilarização social.

No capítulo 1, intitulado “Alquimia e química: permanências e rupturas”, os autores tiveram como objetivo expor as aproximações e distanciamentos entre alquimia e a química. A alquimia é colocada como “parte integrante da história das ideias e das técnicas” (p. 64), sendo um campo que contribuiu para o entendimento da matéria e suas transformações. De acordo com o texto, diferentemente da química moderna, a alquimia tem sua racionalidade baseada em uma cosmovisão predominantemente feminina, onde, por exemplo, os fornos eram considerados úteros que gerariam (transformariam) a matéria. É explicitado que o mundo para os alquimistas era como “um grande organismo vivo, orgânico e feminino” (p. 50). Por fim, terminam o capítulo ressaltando  que  a  “distinção”  da  alquimia  e  a  “nova”  química  não  aconteceu  de  uma  forma  linear e abrupta, se diferenciando na questão cosmológica, epistemológica e ontológica, mas, mesmo assim, ambas possuem um espaço de trabalho comum: “o laboratório” (p. 56). Mesmo que  a  noção  de  experimento  fosse  diferente,  tanto  a  alquimia,  quanto  a  química  moderna  utilizaram/utilizam a dimensão experimental para a construção de suas teorias, com aparatos em seus laboratórios para a investigação de matéria. É desenvolvido entre as páginas 64 a 74 uma descrição e análise mais detalhada do laboratório alquímico, expondo como os alquimistas contribuíram com o desenvolvimento de técnicas e invenção de instrumentos para a investigação da matéria, mas se ressalta a diferença com a química, na visão de mundo dos alquimistas que entrelaçavam os experimentos com aspectos místicos e religiosos. Assim, mesmo que a noção de experimento fosse diferente, tanto a alquimia, quanto a química moderna utilizaram/utilizam aparatos em seus laboratórios para a investigação de matéria.

Já  no  capítulo  2,  “História  natural,  filosofia  experimental  e  a  emergência  da  química  moderna”, os autores analisam o lugar da química na história natural baconiana e a influência no método experimental como critério de justificação do conhecimento químico e suas profundas modificações  na  linguagem,  entendimento  sobre  reatividade  química  dos  gases  e  composição dos metais. Essa nova filosofia químico-experimental, aliada à linguagem (nomenclatura), ganhará publicidade por meio da “Enciclopédia metódica”. Se expõe também, nesse capítulo, o trabalho do químico em separar, combinar, examinar e reconhecer as propriedades. Sobre a nomenclatura, são citadas as contribuições de Olof Bergman (1735-1784), Guyton de Morveau (1737  –1816)  e  Antoine-Laurent  de  Lavoisier  (1743-1794),  e  será,  por  meio  da  “Enciclopédia  metódica” (p. 135) que a nova nomenclatura (sistema químico) ganhará a publicidade e o caráter de universalidade, o que contribuiu para que os conhecimentos da química começassem a se destacar dos conhecimentos da história natural e da medicina.

O terceiro capítulo, “Química e medicina: sangue longevidade e controle dos corpos”, traz a interconexão da química com a medicina. É exposto e discutido como os químicos contribuíram, por meio de proposição de experimentos e análises e discussão dos dados experimentais, com a objetificação do sangue e, consequentemente, dos corpos. Os experimentos envolviam transfusões de sangue com, basicamente, o objetivo de parar ou retardar o envelhecimento humano  (alcançar  a  imortalidade).  Esse  entendimento  reflete  em  “(…)  um  impulso  infinito  e  insaciável em direção ao domínio e à apropriação total da natureza, tanto no exterior quanto interior ao corpo humano. O orgânico, então, perde lugar para o tecnológico e toda e qualquer matéria-prima se torna manipulável e de caráter puramente instrumental” (p. 168). Discorre-se sobre  as  questões  éticas  e,  até  mesmo,  morais  envolvidas  no  desenvolvimento  e  aplicação  dos experimentos envolvendo o corpo humano e se ressalta a importância da discussão de tal caso para o entendimento do acúmulo da história, para assegurar o não retorno de “práticas eugênicas” (p. 174).Já no capítulo 4, chamado de “A química e a biografia de seus materiais”, foi apresentada a química não só como um estudo de objetos no ambiente natural de forma controlada, mas também como a que cria objetos (materiais novos ou substituição de produtos naturais por artificiais), fruto dos seus estudos, e estuda esses objetos novos. A partir da descrição e análise dos “modos de existência” (p. 176) de dois novos objetos químicos, o alumínio e os plásticos, os autores defendem que conhecer a “biografia” (p. 176) dos materiais sintéticos contribui para entender tanto a origem desses materiais quanto as consequências da existência desses materiais na sociedade. Argumenta-se que é necessário o entendimento do objeto químico criado não só de sua composição, propriedades e aplicação, mas também do entendimento do contexto econômico, político, social e ambiental em torno da motivação de sua criação e implicações de sua existência. Assim, o modo que os autores expõem as duas narrativas enfatiza a necessidade do debate amplo e público sobre os produtos sintéticos produzidos pela ciência.

As  controvérsias  em  torno  da  biografia  do  alumínio  estão  principalmente  relacionadas  à economia, saúde pública e a questões ambientais e sociais. Os autores expõem o método que foi utilizado para sua criação e questões técnicas geológicas, de extração do minério; de eletrificação,  como  a  propriedade  condução  de  corrente  elétrica;  de  eletricidade,  com  sua  dependência para a produção. Além disso, abordam a contextualização histórica em torno do desenvolvimento do conhecimento químico para produção de alumínio, colocando as controvérsias relacionadas à economia, por conta da sua capilarização social e o surgimento dos carteis de extração e produção; estética e cultural, por conta de suas propriedades que substituíram diversos materiais, o que influenciou não só como material para  produtos industriais, como na arquitetura e decoração; de saúde pública e ambiental, por conta da extração predatória do minério e construção de hidrelétricas para produção de energia elétrica, com ambas as ações afetando territórios de comunidades tradicionais, por exemplo. Além disso, os autores trazem a  discussão  sobre  o  impacto  da  existência  do  alumínio  na  saúde  dos  organismos  vivos,  por  conta de sua toxicidade.

Já na exposição da biografia dos plásticos sintéticos, os autores trazem como esse novo material contribuiu com o desenvolvimento do conhecimento químico sobre polímeros, mas também como mudou nossas “necessidades humanas, sejam estéticas, sociais e/ou econômicas” (p. 202). Os “polímeros naturais” extraídos de árvores (como resinas e o látex) ou de chifres e carapaças eram, até meados do século XIX, materiais para artigos de luxo, como botões, teclas de piano e joias. O processo de vulcanização (descoberto entre 1830 e 1840) – principalmente da borracha natural, que modificou a composição desse material natural – iniciou o processo de popularização do uso dos plásticos, por conta das novas aplicações que surgiram. A partir dos anos 1920, os polímeros sintéticos substituirão cada vez mais os usos dos plásticos naturais e trarão novas utilizações como as películas de filmes de cinema, como a celuloide, mas também embalagens, baldes, sacos e sacolas, acessórios médicos, autopeças, garrafas, tecidos, brinquedos, canetas etc. “Esses novos produtos trouxeram consigo uma ampliação de novos grupos sociais que poderiam utilizá-los, e, com isso, novos modos de existência” (p. 199-200).

Finaliza-se o capítulo ressaltando como o modo de existência dos plásticos, praticamente permanente, incide em questões de saúde pública e ambientais. Coloca-se, de maneira superficial, um posicionamento dos autores quanto ao papel da química/químicos sobre a consequência nos desenvolvimentos dos materiais, propondo que se coloquem esforços em pesquisas sobre novas rotas sintéticas utilizando reagentes de recursos renováveis (no caso do plástico, em alternativa ao petróleo, blocos de base biológica, como a partir de álcool etílico) e que o produto dessas rotas seja biodegradável. No entanto, o texto não enfatiza que não é suficiente somente a mudança na produção dos materiais e sim no modo de produção e consumo da sociedade. Nós, químicos, devemos nos posicionar contra o atual modelo de sociedade que nos explora e explora a natureza demasiadamente. O tipo de conhecimento produzido e suas implicações mudarão se a sociedade mudar.

No  capítulo  cinco,  “A  química  agrícola,  os  organismos  geneticamente  modificados  e  a  responsabilidade  humana”,  os  autores  provocam  mais  reflexões  sobre  a  consequência  da  produção  de  materiais  sintéticos,  a  partir  dos  casos  dos  fertilizantes  e  pesticidas  sintéticos  (agentes químicos artificiais) e dos organismos geneticamente modificados. Assim, esse capítulo versa sobre “algumas relações entre a química, a agricultura e os ambientes (técnico, natural e social) nos quais elas ocorrem” (p. 219).

O desenvolvimento do conhecimento químico em torno dos fertilizantes e, consequentemente, pesticidas, teve muita influência da primeira revolução industrial (por volta de 1760), que provocou um grande êxodo rural, o que, consequentemente, diminuiu a produção de alimentos, e o inchaço das cidades. O capítulo mostra a centralidade dos conhecimentos químicos, nas ciências da natureza, para o entendimento da constituição dos vegetais, solo e atmosfera (investigações sobre as trocas materiais entre a planta e o ambiente), para pensar em práticas agrícolas para melhorar a fertilidade do solo e a produtividade da plantação. Entendia-se que conhecendo  a  composição  das  plantas,  poderia  determinar  como  suprir  esses  elementos.  A  agricultura química se baseou no controle da natureza por meio dos conhecimentos técnicos–científicos, não dando abertura para caminhos alternativos sem compostos artificiais, onde o uso desses compostos foi minimizado pela indústria.

vançando o conhecimento da nutrição das plantas, o nitrogênio (compostos nitrogenados) ganhou destaque, e por sua utilização não só como matéria para os fertilizantes, mas também para produção de pólvora e outros explosivos, foi motivo, por exemplo, da exploração dos europeus das terras na América do Sul. Na mesma época, também se desenvolvia a ciência básica em torno da “fixação” do nitrogênio que estava na atmosfera, transformando-se em matéria prima sólida. Nesse contexto, foi desenvolvido o conhecimento químico de cinética, equilíbrio químico e o uso de catalisadores para síntese industrial da amônia, a partir do nitrogênio do ar.

Junto com o uso dos fertilizantes, veio a necessidade de se utilizar, e então, produzir os pesticidas, proteção para às plantações contra insetos, fungos, bactérias que, desequilibrados, prejudicavam a produtividade. Além dos agrotóxicos, gerou-se a necessidade de modificar as plantas para resistir às pragas. Assim, os autores expõem que os transgênicos vêm sendo utilizados rapidamente e exponencialmente, sem antes um consenso científico sobre seu uso. Com o argumento do “princípio de equivalência substancial”, se monta a falácia de que com somente a comparação entre alimentos não transgênicos com alimentos transgênicos pelas características fenotípicas, avaliação em nível molecular e comparação analítica, não traz elementos para revelar a presença de componentes tóxicos ou alergênicos desconhecidos. Em suma, analisar e comparar somente a quantidade de moléculas que a substância tem (composição química), não leva em consideração se essas moléculas do “novo alimento produzido” são isômeros, ou seja, tem igual quantidade de elementos químicos (fórmula molecular), mas é especialmente diferente e isso reflete em propriedades químicas diferentes. O exemplo que os autores trazem para ilustrar é o da proteína infecciosa príon, relacionada à doença da vaca louca, onde a proteína é “idêntica, em termos de aminoácidos, à proteína celular não patológica” (p. 247), mas possui configuração espacial diferente. O desafio, então está em analisar tanto a composição, a questão espacial molecular e a interação dessas macromoléculas que esses transgenes transmitem, com outras biomoléculas ou funções metabólicas, além de ser considerado, até mesmo, fatores ambientais.

Nas considerações finais, os autores discorrem sobre o “princípio de responsabilidade” (p. 273-274) de Hans Jonas (1903-1993), defendendo a importância de entrar em vigor uma nova ética,  que  se  considere  todos  os  aspectos  da  biosfera,  focalizando  a  responsabilidade  sobre  a  sobrevivência  das  outras  gerações  no  planeta.  Assim,  por  meio  dos  temas  abarcados  nos  Ensaios de História e Filosofia da Química, de Luciana Zaterka e Ronei Clécio Mocellin (São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2022) capítulos, Zaterka e Mocellin pretendem contribuir com a formação de mais pesquisadores que considerem esses valores éticos, ou seja, que sejam mais cautelosos em suas pesquisas e que avaliem mais os riscos e responsabilidades sociais e ambientais.

Referências

ZATERKA, L.; MOCELLIN, R.C. Ensaios de História e Filosofia da Química. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2022.


Resenhista

Anielli Fabíula Gavioli Lemes – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Anieli.lemes@ufvjm.ed.br


Referências desta resenha

ZATERCA, Luciana; MOCELLIN, Ronei Clécio. Ensaios de História e Filosofia da Química. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2022. Resenha de: LEMES, Anielli Fabíula Gavioli. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.15, n.1, p.249-253, jan./jun. 2022. Acessar publicação original.

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