Do Glamour à Política: Janaína Dutra em meandros heteronormativos é uma edição conjunta da Editora da Universidade Federal do Maranhão com a Paco Editorial. Publicado em 2020, o livro, escrito por Juciana Oliveira Sampaio, professora do Instituto Federal do Maranhão, apresenta os resultados da pesquisa realizada durante o curso de doutorado, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, concluído em 2015, sob a orientação da professora Sandra Maria Nascimento Sousa. A pesquisa foi premiada na categoria Melhor Tese de Doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão, em 2016.
No livro, temos acesso a um registro detalhado sobre a trajetória da travesti Janaína Dutra, reconhecida como a primeira travesti advogada do Brasil. Abrangendo um período histórico que se concentra entre a década de 1980 e a primeira década deste século, a pesquisadora aborda um amplo espectro das relações sociais nas quais Janaína estava envolvida, seu processo de transição e produção de um corpo que refletia como ela desejava ser identificada, sua atividade como advogada, a atuação como militante de movimentos sociais pró-direitos de travestis, lésbicas e homossexuais, além de suas relações familiares e afetivas. Este registro fundamenta uma análise minuciosa sobre os processos de construção de si, e sobre a mobilização de identidades como instrumento político. Ao lermos a trajetória de Janaína Dutra, evidenciamos que,
por mais que o foco da pesquisa seja um sujeito específico, o olhar está voltado para a cultura, para as normas impostas, para as convenções a que o sujeito está assujeitado, entendendo que as identidades são socialmente construídas, disciplinando, normatizando e controlando os sujeitos (Juciana SAMPAIO, 2020, p. 113).
A densa revisão teórica e a atenção metodológica colaboram para a elaboração de uma análise que se estrutura a partir de identificação de categorias como memória, sexualidade, identidade e travestilidade em um cenário de emergência dos Estudos Queer no Brasil. Sob a forte influência das discussões promovidas por Michel Foucault e Judith Butler, o trabalho dedica importante atenção às relações de poder que perpassam os processos de construção dos sujeitos, bem como sobre o uso político e os limites da identidade como um elemento que sugere uma homogeneização de um grupo e que tende a apagar as especificidades dos sujeitos.
O grande número de depoimentos coletados com parentes, amigos, antigos namorados e colegas de militância, além das próprias impressões de Juciana, que conheceu Janaína, junto a diversas fontes documentais, às quais a pesquisadora teve acesso, são utilizados para reconstruir a trajetória de Janaína dando atenção às tensões que envolvem a produção de um ícone político, ação que se acentua após a morte da militante, em 2004. Ao apresentar todos esses elementos, em vez de reconhecer a excepcionalidade com que o título de primeira travesti advogada do Brasil envolvia Janaína, a pesquisa busca compreender os elementos que foram mobilizados para a produção de um ícone do movimento LGBTQIA+.
Ao descrever seu processo de transição de um homem gay para uma travesti, no contexto heteronormativo brasileiro e, especificamente, nordestino, que se inicia próximo aos trinta anos, após a conclusão do Curso de Direito em uma reconhecida universidade do estado do Ceará, é possível perceber que o fato de não ter vivenciado o processo de graduação como travesti, permitiu que Janaína não experimentasse as violências que costumam ser vividas por travestis que acessam ambientes de ensino durante a transição ou após transicionarem, cujo exemplo mais direto é a luta pelo direito ao uso do nome social e pelo acesso a banheiros públicos.
Durante a atuação em entidades como o Grupo de Resistência Asa Branca, a fundação da Associação de Travestis do Ceará, e a indicação para a atuação na Articulação Nacional de Travestis e Transexuais e na Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Janaína lutava por temas que ainda estão longe de serem atendidos em sua totalidade, como o acesso à alteração do registro civil; acesso a técnicas de intervenção corporal pelo Sistema Único de Saúde; despatologização da transexualidade; combate à violência e à transfobia; inserção da temática da diversidade sexual nas escolas; políticas públicas de capacitação profissional e inserção de travestis no mercado de trabalho; cotas específicas para travestis em concursos e universidades; e linhas de crédito para empresários que empregassem travestis.
A conclusão de Juciana Sampaio remete à simbologia que envolve a produção de imagens positivadas, pois a participação de Janaína em eventos e diversas atividades em que ela representava a militante, politicamente envolvida com atividades que buscavam a profissionalização de travestis e o acesso destas a programas de saúde pública, juntamente com o trabalho em projetos, associações e órgãos públicos, quebrava a expectativa de que travestis só tinham espaço dentro da prostituição. Além disso, é destacada a relevância do contexto em que Janaína aparece, o final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, período de consolidação de uma rede de organismos envolvidos na luta por direitos das travestis e transexuais.
Embora questione o discurso mobilizado por Janaína que identificava a atuação de travestis na prostituição como um problema, Sampaio reconhece que a contribuição que ela buscava, com a divulgação destes discursos, era a separação entre o termo prostituição e travestis. Nesse sentido, a intensa reprodução do título de primeira travesti advogada do Brasil colabora com a produção da travesti como sujeito que rompe com a designação de abjeto que a sociedade brasileira costuma atribuir a elas. Embora, recentemente, consigamos identificar travestis aprovadas em cursos de graduação e pós-graduação, no final dos anos 1990, encontrar uma travesti inserida no campo do Direito, com registro na Ordem dos Advogados do Brasil era algo inesperado. Nesse cenário, Janaína Dutra foi envolvida pelo sentido de representatividade que é associado a pioneiras como Jovanna Baby, pioneira no movimento social de travestis e transexuais; Katia Tapety, primeira vereadora travesti do Brasil; e Luma Andrade, reconhecida como a primeira travesti a obter um título de doutorado no Brasil, entre muitas outras.
Janaína foi um sujeito atravessado pela sua época, pelo contexto em que esteve inserida. Ela teve sua experiência marcada pelo afastamento da noção de inteligibilidade do gênero, nomeando sua subjetividade pela categoria de travesti, não porque entendia que aquela era sua essência, mas porque entendia como uma experiência que dizia algo sobre si. Longe de encarar a identidade travesti como um dado, Janaína a acionava, chegando a assumi-la estrategicamente. Isso a levou a estabelecer uma constante negociação com os outros, consigo mesma, com as instituições que a cercaram (SAMPAIO, 2020, p. 487).
Ao registrar os elementos que intermediam a negociação estabelecida por Janaína Dutra, Sampaio nos fornece um rico documento para pensarmos os processos de negociação/construção do gênero na produção de sujeitos e de identidades como instrumento político, acionadas para a conquista de direitos e consequente melhoria das condições de vida, sobretudo, para um segmento da população que segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, no Brasil, tem uma expectativa de vida média de 35 anos, o que significa menos da metade da expectativa média da população brasileira (Bruna BENEVIDES; Sayonara NOGUEIRA, 2021).
Referências
SAMPAIO, Juciana Oliveira. Do Glamour à Política: Janaína Dutra em meandros heteronormativos Jundiaí: EDUFMA; Paco Editorial, 2020.
BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim (Orgs.). Assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020 São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021. Disponível em Disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf Acesso em 01/06/2021.
» https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
Resenhista
Renato Kerly Marques Silva – Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, SC, E-mail: ppglitufsc@gmail.com http://orcid.org/0000-0003-2250-929X
Referências desta Resenha
SAMPAIO, Juciana Oliveira. Do Glamour à Política: Janaína Dutra em meandros heteronormativos. Jundiaí: EDUFMA; Paco Editorial, 2020. Resenha de: SILVA, Renato Kerly Marques. Janaína Dutra, primeira travesti advogada do Brasil. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 2, e84160, 2022. Acessar publicação original [DR]
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