Da direita Moderna à Direita Tradicional | Cesar Ranqueta Júnior
Cesar Ranqueta Júnior | Imagem: Unipampa
De autoria de Cesar Ranqueta Jr, o livro Da direita Moderna a Direita tradicional, publicado em 2019, tem duas ambições. A primeira delas é reconstituir historicamente o conceito de Direita, sistematizando argumentos e compilando autores que são ícones para sua fundamentação no mundo ocidental. A segunda é, a partir de uma análise dessa corrente de pensamento no Brasil, apresentar suas fragilidades, incongruências, antinomias e propor, a partir dessas análises, uma fundamentação teórica a ser seguida.
O interesse do autor por essa questão tem como base uma dupla crítica que é por demais razoável em uma sociedade cada vez mais polarizada e marcada por uma naturalização de conceitos do campo da política. A primeira é a recusa aos autores filiados ao pensamento de direita, assim como às suas ideias nos círculos especializados de debate, implicando em seu desmerecimento. A segunda está na forma pela qual esses pensadores tendem a ser adjetivados: “fascistas” e “anacrônicos”. Para Ranqueta, esta última é uma clássica estratégia da esquerda em desmerecer seu maior rival ideológico. Para nós, trata-se de um problema de metodológica científica.
Essas questões denotam a ausência de responsabilidade com as reflexões em torno do que seriam as correntes de pensamento nos espaços formativos, de modo que se faz necessário romper com a ideia de que se pode compreender a direita ou a esquerda apenas pela simples oposição de seus argumentos. Nesse sentido, é fundamental reconhecer as ideias como formas argumentativas independentes que precisam ser identificadas e acolhidas como tal, na medida em que chegam aos ambientes formativos, sejam escolas e universidades, sejam movimentos sociais. Somente uma atitude como essa favorece o debate e a possibilidade de fomentar o diálogo entre indivíduos com posições diferentes.
No que diz respeito ao uso de conceitos como desqualificadores, como é o caso do uso indiscriminado do termo fascismo, rompe-se com a potencialidade que esses constructos teóricos apresentam como forma de constituir parâmetros que permitam ler e compreender a realidade como fenômeno social. Caberia assim, sempre que possível, ao utilizar um termo desse tipo, apresentar os critérios estabelecidos para o seu uso, a fim de permitir que interlocutores compreendam o sentido empregado, inclusive quando esse não for usado como categoria.
Ambas as críticas foram fundamentais para que Ranqueta apresentasse as análises anteriores, feitas por autores ditos de esquerda ou filiados a esse espectro, como carentes de cientificidade e objetividade, uma vez que estariam orientadas, a seu ver, por princípios impressionistas, ideológicos e sectários
No que diz respeito a estrutura da obra, ela é dividida em duas partes não simétricas e com funções distintas. A primeira delas é maior e condensa os debates em torno de qual seria a origem da ideia de Direita e de como a mesma não deveria ser observada apenas a partir de uma única concepção, propondo assim a existência de uma polissemia em torno do conceito e estabelecendo uma diferenciação entre o que seria o que ele denomina de direita liberal e tradicional.
Essas dariam uma forma topográfica a análise política, na medida em que seriam pensadas relacionalmente, tendo outras formas de pensamento mais à esquerda ou mais à direita. Nesse caso a direita liberal é observada como uma vertente moderna, marcada por características próprias a constituição da sociedade burguesa, associando-se a aspectos como a liberdade de mercado, a livre iniciativa, a propriedade privada, governo limitado, estado de direito, meritocracia e divisão dos poderes, transversalizada pela ideia de um progressismo racional. Esse tipo de direita se ligaria a um progresso material que estaria na base da constituição de seus benefícios, de modo que toda a luta conservadora se daria na tentativa de manter privilégios.
Para Ranqueta, ao se filiar as tendências liberais modernas, essa direita estaria muito mais próxima às forças que levaram ao surgimento da esquerda e, como tal, se aproximaria de propostas intervencionistas a partir da política, rompendo com o que ele chama de laços orgânicos da sociedade
É a partir dessa desqualificação que o autor propõe a categoria de direita tradicional, como verdadeira direita. Ao contrário do conceito anterior, essa se fundamentaria em categorias pré-modernas, as quais remontariam tempos primordiais e que teriam sido geradas a partir de um movimento espontâneo da própria sociedade. Fazem parte desse rol a religião, a família, a propriedade e a pátria.
Esse também se apresentaria como diametralmente oposto à esquerda, se colocando a partir dos seguintes pares: caos e ordem, revolução e contrarrevolução, antitradicional e tradicional. Eles teriam surgido, em termos materiais, a partir da passagem de um mundo marcado por uma concepção metafísica e religiosa para uma perspectiva racionalista. Tal mudança, de acordo com o autor, teria se dado a partir de cinco eventos chaves, a saber: o Renascimento, a Reforma Protestante, a Revolução Francesa, a Revolução Bolchevique de 1917 e Maio de 1968. Seriam eventos caracterizados por seu caráter transformador, corroborando para a dissolução da sociedade de castas em termos políticos, econômicos, sociais e culturais.
É nesse ponto que o autor também apresenta uma série de características e conceitos chaves que ele considera como fundamental à direita tradicional. Destacaremos aqui apenas dois, a saber, ordem natural e homem de direita. Ao entender direita e esquerda como elementos transcendentais que organizam o universo, ele vai apontar a cosmovisão do direitista como orientada por um princípio natural que organizaria todas as coisas presentes no mundo, a qual se daria mediante a existência de uma força transcendente que teria o deus cristão como marca desse princípio. Tal aspecto justificaria a dominação política, na medida em que a partir dessa ordem determinados grupos teriam sido capacitados e escolhidos para governar.
É nesse ponto que surge o seu conceito de homem, através do qual essa ordem também se manifestaria na aceitabilidade de sua condição, sendo as lutas adversas da vida e, por sua vez, as desigualdades sociais, formas de garantir a partir da concorrência, o desenvolvimento de uma inteligência e de seu caráter. O homem aparece aqui como um ser imperfeito que precisa controlar seus impulsos e que prefere se situar a partir daquilo que já existe, do que propor a construir outra forma de homem ou sociedade. Ele reconhece a ideia de liberdade, no entanto, essa é precedida por uma ordem social com peso moral que precisa ser respeitada, sendo ele o centro de onde partem as decisões e não um resultado do meio social em que está inserido.
Esse indivíduo não partilha de uma perspectiva evolucionista da sociedade, entendendo que suas mudanças teriam sido resultado de movimentos espontâneos que por intervenções dirigistas. Dessa forma, ele se coloca como aquele que é avesso ao diferente, ao desconhecido, ao estranho. Esse anseia pela estabilidade e se vincula ao que é previsível e já foi testado e comprovado, se opondo a aspectos utópicos, sejam de futuro ou de passados. Ele é conservador não de todas as estruturas do passado, mas as tradições, valores e instituições essenciais e permanentes para a existência de uma comunidade civilizada, das quais ele é herdeiro
É contra essas transformações que esse homem é um reacionário contra a “desordem moderna” e é um contra revolucionário ante a destruição revolucionária das instituições e valores tradicionais. Esse difere do direitista conservador que, de acordo com Ranqueta, está muito mais preocupado na conservação como uma postura defensiva a revide da esquerda que com uma dinâmica combativa, a qual deveria romper com as concessões do stabilishment para reafirmar valores pré-modernos, ligados à tradição. Não se trataria de dar manutenção a instituições anacrônicas, mas a princípios universais, imutáveis e eternos, opostos ao liberalismo, a democracia e as mitologias socialistas.
O passado aparece nesse constructo como uma bussola orientadora para o presente, detentor das tradições e valores, do eterno, do transcendental. O respeito a esse passado está voltado para a reverência aos antepassados, se constituindo com um culto aos ancestrais que doaram seus valores e instituições, os quais precisam ser mantidos em sua essência. As comunidades, segundo Ranqueta, seriam compostas pelos mortos, pelos vivos e pelos ainda não nascidos.
Ranqueta também apresenta um lugar para o Estado e para a educação em sua relação com esses indivíduos. Para o autor, caberia a esse primeiro o papel de proteger a ordem social, não devendo estimular conflitos ou paixões, mas educá-las. Esse deveria se colocar contra a colonização da vida social, zelando pelos valores morais, sociais, culturais e religiosos da comunidade, em vez de buscar alterá-los.
No que diz respeito à educação, esse campo seria primordial para a constituição de uma sociedade conservadora, na medida em que se configuraria como reprodutor da cultura. A educação deveria ser formada por hábitos, disciplinas, exemplos e paradigmas, uma nítida resposta a espoliação que esses elementos tiveram em detrimento de padrões vagos como justiça social, inclusão, democracia, eficiência técnica e serviço social. Ranqueta aponta a universidade como o espaço que mais sofreu essas transformações, saindo de um lugar de aperfeiçoamento humano, responsável pela formação das elites intelectuais e políticas, situada na relação entre ações e coerência, para a instauração de um dogma democrático.
A segunda parte do texto é diminuta e conclusiva. Ela diz respeito a relação entre a direita e o Brasil, surgida como resposta à hegemonia da esquerda política e cultural no Brasil, manifesta nos protestos contra o PT, em 2015 e 2016. Essa seria multifacetada e heterogênea, carente de um ponto de vista ideológico e doutrinário, de modo a combinar ideias da escola Austríaca de economia ao conservadorismo anglo-americano, o que resultaria na formula: liberal na economia e conservador no comportamento social
Essa direita apontaria na direção de um hiper criticismo com postura negativista e anticomunista que beira a irracionalidade, o qual se manifestaria no antipetismo que chega a ser apontado pelo autor como quase uma obsessão. Para ele, seria necessário a constituição de uma postura afirmativa, construtivista e propositiva, rompendo com a ideia de que vale tudo contra a esquerda.
O autor, por fim, declara a urgência de uma cultura de direita, baseada em valores como hierarquia, justiça, religião, tradição, família, pátria, liberdades concretas e responsabilidade individual e social. Ela deve se afastar dos elementos capitalistas liberais se aproximando de aspectos como o heroísmo, sacrifício, generosidade, austeridade, franqueza e honradez. Segundo o autor, o caminho seria uma reaproximação aos laços espirituais e históricos com a cristandade hispânica, mediante o contato com a tradição direitista ibérica.
Em uma visão geral, o valor de Da direita Moderna a Direita Tradicional pode ser destacado em dois pontos. O primeiro deles está nas críticas que estabelece aos espaços de debates especializados a respeito da Direita. É a falta de conhecimento e a ignorância do desenvolvimento de tais ideias e sua difusão nos mais diversos meios que, hoje, uma grande parcela do mundo ocidental padece com a onda conservadora e a sua adesão entre pessoas de todos os gêneros e idades. Agora, cabe a nós gerar um espaço de acolhimento que ressalve a necessidade de disputar o mundo através de argumentos e acreditar que esse tipo de ação seja uma reabertura a outras formas de pensar.
O segundo ponto está no fato de a obra favorecer ensaiar uma tentativa de constituição de parâmetros que possibilitem orientar uma forma de recorte no campo político, demonstrando como dentro de uma mesma orientação política existem tendências variadas que precisam ser elucidadas, a fim de fazer sentido diante da complexidade do mundo social. Então, não se trata de uma esquerda ou de uma direita, mas de esquerdas e direitas que precisam ser observadas a partir de suas especificidades e recortes.
Contudo, é importante afirmar que apesar de ele acusar a esquerda de sectarismo, sua obra não dialoga com a tradição da esquerda intelectual e política, redesenhando um reduto em que é possível evocar bibliograficamente os seus autores, além de se valer de estratégias de desqualificação similares as que ele tenta denunciar, como é o caso de apresentar etimologicamente a palavra esquerda como sempre ligado ao negativo, tendo passado por um processo ritualístico que a levou a sua positivação.
Ainda é importante aferir que essa obra excede no tom ensaístico, uma vez que se configura em um compilado de autores, associados entre si por ideias e argumentos, legitimados pelos seus lugares na produção do conhecimento. Práticas como essa não são incomuns nas produções acadêmicas e revelam a nossa falha ao separar teoria e prática na confecção de nossas pesquisas. O resultado são trabalhos que não fornecem base material para os argumentos defendidos.
Sumário de Da direita moderna à direita tradicional
- Introdução
- 1. A caricatura da Direita pela sinistra
- 2. Direita: origem histórica, tipologias e definições
- Os traços característicos da Direita
- 3. Simbolismo universal da Direita e da Esquerda
- Etimologia e semântica
- Tradições metafísicas à Direita e a Esquerda
- Inversão dos sentidos
- 4. A grande tentação da Direita Moderna: O liberalismo
- A crítica de Mises ao marxismo e à estatolatria
- O liberalismo conservador de Hayek
- Os erros e as fraquezas do liberalismo
- O liberalismo é de Direita ou de Esquerda?
- 5. A Direita Conservadora: os guardiões da civilização
- A sabedoria dos ancestrais
- O conservadorismo e a sociedade humana
- O conservadorismo, a esfera da política e o problema das ideologias
- O conservadorismo e a economia de mercado
- O conservadorismo e a esfera da educação e da cultura
- O conservadorismo e a religião
- A Direita Conservadora e a Esquerda Revolucionária
- 6. Os limites do conservadorismo e a Direita Tradicional
- A Direita Tradicional
- A revolução Antitradicional
- Reacionários, contra reacionários e a restauração tradicional
- 7. A nova Direita brasileira: um falso despertar?
- Os equívocos e debilidades da nova Direita
- Por uma cultura de Direita
- Cultura Hispânica ou cultura anglo-americana
- Considerações Finais
- Referências
Resenhista
Jandson Bernardo Soares – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasil e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. ID: http: orcid.org/0000-0001-8195-5113. E-mail: jandson_ze@hotmail.com.
Para citar esta resenha
RANQUETAT JR., Cesar. Da direita moderna à direita tradicional. 2 ed. Curitiba: Editora Danúbio, 2019. 292p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Por uma direita legítima. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, número especial (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/por-uma-direita-legitima-resenha-de-da-direita-moderna-a-direita-tradicional/>.