Em Brancos e pretos na Bahia, publicado em 1942, o norte-americano Donald Pierson descreve da seguinte maneira a dinâmica da “ecologia humana” urbana de Salvador e o modo como questões raciais e de classe influenciam a distribuição da população pelos espaços da cidade:
Ao longo das elevações, acompanhando os acidentes do terreno, encontram-se em geral as ruas principais, com as mais importantes linhas de transporte, isto é, bondes, ônibus e automóveis. […] Não encontrando obstáculos, a refrescante brisa marítima torna estas elevações mais confortáveis, mais saudáveis, e por consequência mais desejáveis, como lugar de moradia. Ali se encontram, em geral, os edifícios mais modernos e mais ricos, as casas das classes “superiores”. […] Os vales, em contraste, oferecem lugares e residências menos confortáveis, menos saudáveis e menos convenientes, por consequência mais baratos. […] Estas áreas em que vivem as classes “baixas” são provavelmente mais saudáveis e em geral mais agradáveis, como lugares de residência, que os “slums” das cidades industriais europeias ou norte-americanas. Embora os casebres sejam construídos de modo muito rudimentar, pobremente mobiliados, são em geral limpos e sempre se erguem num cenário atraente, de folhagem tropical, por onde filtra a luz brilhante do sol, juntamente com o ar puro (Pierson, 1971: 65-67).
Apesar de ter feito uma pesquisa sobre relações raciais e não sobre a cidade de Salvador propriamente dita — sendo esta o “cenário” de suas inquietações acerca da “convivência entre as raças” —, poderíamos considerar Pierson uma referência central para as pesquisas urbanas no Brasil. No trecho supracitado, o relevo e o clima de Salvador servem ao autor para a construção de uma diferenciação, que se faz espacialmente, entre classes “superiores” e “baixas”; elevações e infraestrutura em contraste com vales precários. Figura-chave no processo de institucionalização das ciências sociais a partir dos anos 1930, o sociólogo por aqui ficou mais de 20 anos, lecionando como professor, e não só auxiliou a consolidação da influência da Escola de Chicago em nossas universidades, como estimulou pesquisas focadas no espaço urbano, que fizessem usos de métodos e técnicas como a observação participante.
Entretanto, este é um dos variados eixos possíveis para se pensar os meandros da consolidação dos estudos sobre o urbano nas ciências sociais brasileiras. Além da Escola de Chicago, não podemos nos esquecer das influências da Escola Antropológica de Manchester e da Escola Marxista Francesa de Sociologia Urbana nessa primeira metade do século XX. Além de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo também serviram de “laboratório social” para variadas teses. Poderíamos afirmar, inclusive, que a abordagem do “fenômeno urbano” nesses espaços ajudou a sedimentar no país disciplinas científicas já consagradas em contextos internacionais, e cuja ênfase passava ao largo da preocupação teórica com as cidades, como a antropologia e a sociologia. Temos hoje, portanto, não uma história unificada e linear sobre a temática aqui em tela, mas uma caleidoscópica cena que se permite observar por diferentes prismas.
Logo, é nesse sentido de pluralizar nossas perspectivas sobre os estudos urbanos nas ciências sociais que o presente dossiê da Estudos Históricos procura reunir artigos que problematizem os caminhos e trajetórias diversificados dessas pesquisas no Brasil. Nossa proposta aqui não é meramente resgatar pioneiros(as) ou trabalhos percursores, muito menos dar conta de todas as linhagens instituidoras de tais percursos analíticos possíveis. O dossiê se volta ao exame de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, que organizaram o modo como se recortaram esses estudos no país. Os artigos aqui reunidos trazem uma visão transversal sobre tais abordagens, tendo como enfoque momentos específicos, obras, correntes, núcleos, “escolas” ou personalidades que instituíram ou ajudaram a instituir uma tradição epistemológica na academia brasileira sobre a vida citadina.
O dossiê Cidades nas ciências sociais no Brasil reúne um conjunto de textos que podem ser divididos em dois grupos: o primeiro versa sobre trajetórias (de vida e institucionais) relacionadas ao estudo sobre (e das) cidades; o segundo tem como foco narrativas sobre a vida urbana, que enfatizam uma articulação entre construções históricas e sociais da/na cidade, com dimensões mais subjetivas, relacionadas à atuação política e à vivência citadina.
A ideia para a construção desta coletânea surgiu após a realização de uma série de eventos em homenagem ao professor Gilberto Velho, idealizados pelos organizadores do dossiê ao longo dos últimos anos, e que buscavam ressaltar o legado do autor para os estudos urbanos no Brasil. Os eventos foram organizados nas próprias instituições de ensino ocupadas por Bispo (Universidade Federal de Juiz de Fora — UFJF) e Monnerat (Fundação Getúlio Vargas — Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil — FGV CPDOC) e em congressos como o 43º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e a 32ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). A partir de então, a ideia de construir um dossiê sobre o tema foi ganhando relevo e se materializou com o presente número temático, publicado no ano de 2022, marcando, portanto, a efeméride de dez anos de falecimento de Velho. Com este dossiê, esperamos possibilitar um debate mais amplo sobre cidades nas ciências sociais e ressaltar também referências, aportes teóricos, conceitos e metodologias de pesquisa deixados por Velho como legado.
Pesquisando sobre sua própria cidade, em seus trabalhos, Velho parte de uma discussão intersubjetiva para a apreensão dos fenômenos urbanos cariocas. Em um capítulo intitulado “Antropologia e cidade” (Velho, 2002a), que integra o livro Cidade: história e desafios, organizado por Lúcia Lippi de Oliveira, o autor evidencia a importância dos estudos sobre o meio de vida urbano e toma justamente como referência a Escola de Chicago, mencionada ao início deste editorial. Velho destaca neste texto que,
assim como na Chicago do final do século XIX e primeira metade do século XX, os cientistas sociais brasileiros lidam com as questões teóricas de suas disciplinas e participam, em diferentes graus e formas, da discussão dos problemas de sua cidade e de seu país (Velho, 2002a, p. 40). Para ele, “Os estudos desenvolvidos na cidade são, portanto, investigações sobre a sociedade brasileira” (Velho, 2002a, p. 40).
Suas reflexões sobre o meio de vida urbano o levaram a ter projeção acadêmica nacional e internacional, e, em seu texto “Becker, Goffman e a antropologia no Brasil”, Velho (2002b) nos conta sobre sua relação intelectual com Howard Becker, renomado sociólogo norte-americano nascido em Chicago em 1928, que desenvolveu importantes pesquisas sobre sociologia da arte e teoria da rotulação, além de ter discorrido também sobre ação coletiva, desvios e metodologias de pesquisa, se tornando um autor clássico nas ciências sociais brasileiras. Nas palavras de Velho (2002b, p. 9):
Algum tempo depois da publicação de Desvio e divergência, conheci um membro do staff da Fundação Ford no Rio de Janeiro, Richard Krasno, numa reunião social. Ele tinha lido o livro, gostara muito, contou-me ser amigo pessoal de Becker e pediu-me um exemplar, para que lho enviasse. Assim foi feito, e estabeleceu-se uma ponte entre nós. Fiquei surpreso quando recebi, meses depois, uma carta de Becker com comentários e observações elogiosas a Desvio e divergência. Conhecia espanhol e dedicara-se a estudar português para ler o livro e, depois, para ler outros trabalhos que lhe enviei. Mais tarde, aliás, ele publicaria uma estimulante resenha em Contemporary Sociology sobre Desvio e divergência e sobre Garotas de programa, de Maria Dulce Gaspar (Becker 1986).
A influência de Velho na vida e nos estudos de Becker fica explícita no texto que abre este dossiê. Com mais de 90 anos de idade atualmente, Becker aceitou o convite para participar de uma aula do curso de graduação em Ciências Sociais da FGV CPDOC, prestigiando-nos com sua presença em uma das aulas da disciplina Antropologia na cidade: a obra de Gilberto Velho, ministrada pelos professores Celso Castro e Sílvia Monnerat em novembro de 2020. Essa conversa foi gravada, e, após transcrita1 e autorizada por Becker, passou a integrar o dossiê temático como texto de abertura. A participação do intelectual foi marcada por uma conversa bastante informal, em que discorreu sobre as experiências vividas no Brasil, fundamentalmente mediadas pela sua relação acadêmica e de amizade com Velho.
O segundo texto do dossiê, assinado por Isis Ribeiro Martins e Caio Gonçalves Dias — ex-orientandos de Velho e herdeiros da tradição intelectual inaugurada por ele —, recebeu o título de: “A atualidade de Gilberto Velho: perspectivas antropológicas entre história e filosofia”. O artigo resgata a trajetória acadêmica do autor, bem como suas influências teóricas no campo da filosofia e da história, refletindo também sobre seu ecletismo intelectual, sobre a variedade de temas abordados em suas pesquisas e sobre a postura interdisciplinar que marca fortemente suas obras.
Os dois textos seguintes tratam de trajetórias que, de certa forma, também contribuíram para consolidar este dossiê como uma homenagem póstuma a Velho. Nos estudos sobre Jorge Zahar e Lucio Costa aqui apresentados, Velho está muito presente, seja como personagem ou como referência teórica.
O trabalho desempenhado por Velho na editora Zahar, como responsável pela coleção Antropologia Social, assim como sua relação pessoal com o dono da editora, evidencia como as trajetórias de Velho e Zahar são intercortadas de diversas maneiras. Essa relação é enfatizada no texto “O fenômeno urbano no catálogo da Zahar Editores: política editorial, intelectuais e os estudos sobre as cidades nas ciências sociais brasileiras”, escrito por Leonardo Nobrega. Os livros da Zahar permitiram a constituição de um mercado editorial destinado aos fenômenos urbanos brasileiros, sobretudo entre as décadas de 1970 e 1980, possibilitando também o desenvolvimento e a consolidação desse tema como agenda de pesquisa em diversos programas de pós-graduação no país. Os arquivos pessoais de Velho e de Zahar (que integram o acervo de arquivos pessoais da FGV CPDOC) nos mostram como ambos circulavam pela mesma rede de relações (as cartas e documentos trocados entre eles demonstram a existência dessa relação), evidenciando como eles se tornaram responsáveis pela publicação de inúmeros títulos que acabaram por se consolidar como referências fundamentais para a discussão sobre cidade e meio urbano no Brasil, tal como enfatiza o artigo de Nobrega.
Em “A estética das cidades: Lucio Costa, traçados de vida e nação”, Edilson Pereira nos apresenta uma discussão sobre arte e estética citadina, a partir de um enquadramento das ciências humanas. O autor tem como objetivo discutir a trajetória de Lucio Costa, importante arquiteto e urbanista brasileiro. No artigo, Pereira busca articular discussões sobre trajetória de vida em confluência com o delineamento de projetos políticos e governamentais que culminaram na emergência do Estado Novo brasileiro. Para isso, o autor parte de um referencial teórico tipicamente “gilbertiano”, trazendo para o centro de análise categorias como “projeto de vida” e “metamorfose”, muito caras a Velho.
Interessante notarmos que Gilberto Velho (2006), em seu texto “Patrimônio, negociação e conflito”, refletiu sobre os impactos do plano Lucio Costa no que tange à cidade do Rio de Janeiro2, demonstrando que as discussões sobre o urbano são de cunho interdisciplinar, e que, entre citações e reflexões sobre a vida urbana brasileira, os dois, Velho e Costa, se consagraram como referências fundamentais para pensar o cotidiano citadino.
O texto sobre Lucio Costa, além de versar sobre a trajetória de uma personalidade que nos ajuda a pensar o urbano no Brasil, marca também a transição para a segunda parte do dossiê. Esta pretende discutir a memória das cidades, e, quando refletimos sobre a trajetória de Costa, nos vemos aprendendo também sobre a construção política — e, por que não, estética — de nossa capital, Brasília. O mesmo pode ser dito sobre outros três artigos que compõem esta edição temática, ao pensarem memórias, narrativas e subjetividades a partir de um olhar para as cidades. Ao analisarmos os contextos de Macapá ou do Rio de Janeiro por meio dos três textos que fecham nosso dossiê, encontramos uma discussão sobre atuações políticas e construção de narrativas (de pessoas e/ou grupos sociais e/ou instituições) preocupadas em entender as dinâmicas da cidade, seja a partir de perspectivas macro ou microssociais, diacrônicas ou sincrônicas.
No texto “A Cidade ‘imaginada’: histórias e vivências em Macapá (1943-1988)” Maura Leal resgata narrativas locais sobre o Território Federal do Amapá entre os anos de 1943 e 1988, para pensar mudanças ocorridas desde então na cidade. Ainda que Velho não apareça nas referências teóricas da autora, pensar as transformações e metamorfoses no território, além de dar destaque à dimensão subjetiva inscrita na construção de identidades, está também em consonância com a “teoria gilbertiana”. Leal nos apresenta relatos de pessoas comuns, que trazem para o centro da análise narrativas contra-hegemônicas que coexistiram na construção do território de Macapá, e demonstra como seus moradores se apropriaram de estratégias de sobrevivência e desenvolveram sentimentos de pertencimento e de identidade com a região.
Assim como o texto de Leal sobre Macapá, podemos também localizar o artigo seguinte, intitulado “Memória como direito à cidade: dicionário de favelas Marielle Franco” e escrito por Sonia Fleury e Palloma Menezes como uma reflexão sobre a cidade por uma perspectiva que a compreende enquanto espaço de disputas. Ao discutirem a experiência do dicionário — que se constitui como uma plataforma on-line que busca incentivar a geração de conhecimento produzido em (e sobre) favelas —, as autoras nos brindam com uma reflexão histórica e um mapeamento de iniciativas e projetos que têm como foco a memória das favelas. Esse texto também se afasta de perspectivas hegemônicas sobre a cidade, caminhando na direção da construção de narrativas colaborativas e ativistas sobre a vida urbana. Com isso, esse artigo e o seguinte dialogam com a perspectiva “gilbertiana” de pesquisas sobre (e nas) cidades em que a dimensão das subjetividades, dos pertencimentos e das construções identitárias estão em foco.
A colaboração especial de Steffen e Heritage neste dossiê, por meio do artigo “A place of seeing: People’s Palace Projects and the city of Rio de Janeiro”, versa sobre as atividades de um centro de pesquisas ligado à Universidade de Queen Mary, que desenvolve projetos na cidade do Rio de Janeiro com foco em atividades culturais e artísticas. Ao refletirem sobre iniciativas que atuam diretamente na cidade e resultam em projetos com uma dimensão prática nos territórios, o texto de Fleury e Menezes e o de Steffen e Heritage entram em contato por localizarem o território como ponto de partida para o desenvolvimento de pesquisas-ação, que buscam articular vivências e práticas culturais, estimulando a proliferação de perspectivas positivadas para pensar territórios entendidos hegemonicamente como periféricos e/ou marginais. Os dois textos se apresentam também como uma memória institucional dos projetos e evidenciam como essas iniciativas se articulam com a própria construção de uma memória da (e sobre a) cidade, ao passo que propõem também metodologias de pesquisa participativas que possibilitam construções de novas formas de entender e viver na cidade.
Agradecemos imensamente aos autores e autoras que contribuíram para a elaboração deste dossiê temático sobre cidades nas ciências sociais no Brasil, e desejamos aos leitores e leitoras de Estudos Históricos uma boa leitura!
Notas
1 Transcrição realizada por Victor Reichenheim em novembro de 2021 (victorautran@yahoo.com.br).
2 “Ainda no Rio, a Barra da Tijuca, de ocupação mais recente, tem sido palco e campo de confronto entre interesses e aspirações conflitantes. O famoso plano Lucio Costa, com sábios propósitos de garantir um ‘crescimento equilibrado’ para aquela área, respeitando e protegendo o ambiente natural, já foi diversas vezes atropelado por políticos, empresários de construção civil, condomínios de classe média e invasões promovidas por segmentos menos abonados, com crescimento acelerado de favelas. Mudanças clandestinas, à margem da lei, ou mesmo com cobertura do poder público, desfiguraram o projeto urbanístico original, sempre sob a bandeira do progresso e do desenvolvimento” (Velho, 2006, p. 245).
Referências
PIERSON, D. Brancos e pretos na Bahia: estudo de contacto cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.
VELHO, G. Antropologia e cidade. In: OLIVEIRA, L. L. (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002a. p. 37-41.
VELHO, G. Becker, Goffman e a antropologia no Brasil. Ilha, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 5-16, 2002b.
VELHO, G. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 1-262, 2006. https://doi.org/10.1590/S0104-93132006000100009
Organizadores
Silvia Monnerat – Escola de Ciências Sociais. Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro. Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: silvia.monnerat@fgv.br https://orcid.org/0000-0003-1466-6885
Raphael Bispo – Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em Antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: raphaelbispo83@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2703-9397
Referências desta apresentação
Editorial. MONNERAT, Silvia; BISPO, Raphael. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 35, n. 76, p.201-207, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]
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