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Brasil em projetos: História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da ilustração portuguesa à Independência do Brasil | Jurandir Malerba

Jurandir Malerba | Imagem: Café História

Num momento tão difícil da conjuntura nacional, em que a lenta construção da democracia brasileira após 1985 é ameaçada por distintas forças, a compreensão desse processo passa não somente pela análise do contexto atual, como pelo estudo dos diferentes projetos propostos para a construção do Brasil a partir de sua Independência, em 1822. Neste sentido, só podemos saudar com entusiasmo a iniciativa da Editora da Fundação Getúlio Vargas com o lançamento da coleção Uma outra história do Brasil, que pretende apresentar os projetos políticos de distintos grupos sociais que atuaram no Brasil nos últimos dois séculos.

O primeiro volume dessa ambiciosa empreitada, Brasil em projetos, é da lavra de Jurandir Malerba e abrange o período que vai do último quartel do século XVIII às duas primeiras décadas do seguinte. Trata-se, como sabemos, de um período chave da história do Brasil, marcado na economia por um significativo crescimento baseado na produção agropecuária de base escravista e, em termos sociais, pela consolidação de uma poderosa elite mercantil, responsável pelos vínculos tanto internos quanto externos da América portuguesa. É no campo político que temos algumas das principais transformações. Da chegada da família real ao Brasil até a abdicação de Dom Pedro I, temos décadas de grande agitação, abrangendo da transferência dos órgãos da corte portuguesa para a América à construção de uma nova nação e de um Estado independente. Tudo isso num ambiente intelectual marcado pelo influxo das ideias iluministas e do liberalismo.

Malerba possui, sem dúvida, as melhores credenciais para o debate sobre esses temas. Além de ter construído uma obra considerável sobre o período, dedica-se também à teoria da história e à história da historiografia. Todo esse arsenal é mobilizado para uma cuidadosa análise da história do Brasil nessa quadra tão sensível, que assiste ao nascimento de uma nação singular em diversos sentidos, entre os quais buscaremos sublinhar três: a origem portuguesa, a monarquia e a escravidão.

Esse nascimento, ou melhor dizendo, a construção da nova nação não foi, evidentemente, fruto de um projeto acabado e coerente. Pelo contrário, foi a síntese de disputas e tensões intensas, cujo amálgama resultou em algo bastante distinto do imaginado. Como diz o autor, “o início do século XIX é uma esquina onde esses dois mundos [o do Antigo Regime, por um lado, e o das novas ideias políticas e econômicas, por outro] colidem. Um choque violento de tempos históricos, a gerar as convulsões do parto da modernidade capitalista” (MALERBA, 2020, p. 29).

Para analisar essa construção, o autor parte de um recorte clássico, tomando o período pombalino como seu ponto de partida, mas se concentrando sobretudo no último quartel do setecentos. Como é sabido, esse é um momento de profundas transformações na atuação da coroa portuguesa, marcada agora por uma preocupação em conhecer as múltiplas realidades por ela governadas para melhor administrá-las. É igualmente um período definido pelo que alguns autores denominam de “inversão atlântica”: a América portuguesa transforma-se, em termos tanto demográficos, quanto econômicos, na principal parte do império português, ultrapassando o próprio reino. Nesse sentido, a vinda da família real, proposta já na década de 1730 por Dom Luís da Cunha, vinha coroar (com duplo sentido) esse processo (FRAGOSO; FLORENTINO, 2001).

Malerba, no entanto, não se limita a essa abordagem tradicional. Pelo contrário, ela funciona como pano de fundo para a discussão que realmente importa, aquela acerca dos diversos projetos que se cruzaram na formação do Brasil. Para analisá-los, ele coloca seu acento nos indivíduos que propuseram e/ou buscaram efetivamente reformar o Estado e a sociedade no período, indo do Marquês de Pombal a José Bonifácio, cujo projeto (fracassado) para o país nascente encerra o texto. O aspecto mais relevante do livro, contudo, é o questionamento acerca do que efetivamente significava o reformismo desses autores. Aqui, sua reflexão parte de uma crítica à forma como entendemos e abordamos aquele período. É nesse debate conceitual, sem dúvida, que o autor se sente mais à vontade:

não será despropositado questionar se muito do conceitual que embasou o conhecimento e o entendimento que hoje temos daqueles tempos não está condicionado às autoimagens produzidas pelos estratos hegemônicos, pelos vencedores, que narraram sua história como uma epopeia de progresso, vitórias e conquistas (MALERBA, 2020, p. 30).

Tomemos como exemplo a questão do Iluminismo, conceito central para entendermos o reformismo “ilustrado” que predomina no império português a partir de 1750. Malerba sublinha, como outros autores (NEVES, 2003), a adoção pelos reformistas portugueses dos aspectos pragmáticos e utilitários do Iluminismo, empregados por eles como ferramentas para reformar o Estado e a sociedade. No entanto, não considera que isso defina um Iluminismo especificamente lusitano, mas tão somente a apropriação de certos conceitos e abordagens numa perspectiva essencialmente conservadora, já que buscava garantir a manutenção do status quo, evitando qualquer mudança mais radical. Após a Revolução Francesa, esse caráter conservador tornou-se ainda mais evidente com a censura e repressão aos “abomináveis ideais franceses”. Mais difícil ainda falar em ilustração na então América portuguesa, marcada pela escravidão e pela exclusão social: “autonomia, emancipação e liberdade individual por meio da razão estão na base do ‘esclarecimento’, da ‘ilustração’” (MALERBA, 2020, p. 65), o que não era o caso seja no reino de Portugal, seja no seu império. A partir dessa “limpeza de terreno” no campo dos conceitos, o autor se dedica a uma análise cuidadosa do reformismo português. Esse não é entendido, entretanto, como um “movimento” coerente, mas fundamentalmente como um processo tocado por indivíduos com propostas frequentemente díspares, porém marcadas por um caráter aristocrático que definia seus limites. Evidentemente, ninguém é obrigado a concordar com as proposições do autor, mas a forma clara como ele coloca questões como essas é a melhor contribuição do livro para que o leitor compreenda as discussões historiográficas que cercam o objeto.

Dada a inegável qualidade do texto, é curioso que, em certos momentos, o autor se deixe envolver por simplificações cuja origem parece estar na tentativa de apresentar grandes contextos ao leitor de forma didática. Assim é, por exemplo, quando se refere aos indígenas,

tidos pelos colonizadores como ineptos às formas de trabalho agrícola europeias, desde as primeiras décadas da colonização, mas potencialmente tábulas rasas, verdadeiros serafins piíssimos decaídos na floresta tropical prontos para a conversão à fé cristã, sem prejuízo do apetite sexual insaciável do colonizador, inclusive religiosos, protagonistas de um dos mais longos e extensos estupros coletivos da história, esse que forjou a formação do povo brasileiro (MALERBA, 2020, p.73).

Após essa vívida descrição, somos informados de que a carência de mão de obra foi suprida pelo tráfico atlântico. Chegam a ser surpreendentes tais afirmações. Os indígenas nem de longe foram essas vítimas inertes, como nos aponta uma já longa historiografia indigenista (OLIVEIRA, 2016). Em contextos diversos, eles foram capazes de resistir e (por que não?) se aliaram aos conquistadores quando o consideraram mais vantajoso. A escravidão africana, por outro lado, só se tornou majoritária no século XVII, graças exatamente a uma extensa escravização dos indígenas.

Outro ponto que merece ser destacado é a relação metrópole-colônia. A princípio, essa ideia foi em si mesma ultrapassada pela historiografia especializada (por exemplo: HESPANHA, 2019). Baseado principalmente em Russell-Wood (1998), Malerba retoma a antiga ideia de uma colônia subjugada à metrópole, típica dos anos 1970, no que pese a crítica que faz a Fernando Novais. Embora Malerba saiba de tudo isso, a impressão é que, ao tentar resumir um quadro complexo, acabou por simplificá-lo demais.

Apesar desses pontos discutíveis, não há como negar a qualidade e a atualidade do texto. O debate conceitual, ancorado por uma bibliografia pertinente e atualizada, define um eixo do qual o autor não se afasta. Ao final, a apresentação dos frustrados projetos reformistas de José Bonifácio para o nascente império mostra, de forma didática, que, se o projeto vencedor foi o mais conservador, baseado na manutenção de uma poderosa exclusão social, isso não nega a existência de outras alternativas – que, mesmo não vencendo, apresentavam novos caminhos e possibilidades. Afinal, “fazer diagnóstico de nossas mazelas e pensar soluções talvez nunca tenha sido tão urgente” (MALERBA, 2020, p. 315).

Referências

FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

HESPANHA, Antonio M.. Filhos da terra: Identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019.

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: REVAN, 2003.

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

RUSSELL-WOOD, A. J. R.. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, p. 187-250, 1998.


Resenhista

Antonio Carlos Jucá de Sampaio – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Instituto de História Largo São Francisco de Paula. E-mail: acjuca@gmail.com  https://orcid.org/0000-0003-1719-0245


Referências desta Resenha

MALERBA, Jurandir. Brasil em projetos: História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da ilustração portuguesa à Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2020. Resenha de: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Outros Brasis: possíveis Pensando a construção da nação. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 38, n. 77, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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