No final do ano passado (2021), a Editora Fi lançou BNCC de História nos Estados: o futuro do presente, reunindo estudos de 25 autores, a maioria dos quais atua em programas de pós-graduação em História, Ensino de História e Educação. Apenas dois são professores da educação básica e os demais são formadores de professores. O livro comunica os trabalhos apresentados no “Ciclo de Debates” (de mesmo título), organizado pelas Universidades Federais de Alfenas (UNIFAL), Espírito Santo (UFES), São Paulo (UNIFESP) e a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no segundo semestre de 2021, com grande aderência de público em mais de 300 cidades de 26 entes federados (p.12).
No texto dos organizadores – “A BNCC nos estados: implantação, crítica e resistências possíveis”, há uma boa descrição dos demais, referentes aos Estados e dispostos nesta ordem: Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Acre, Roraima, Amapá, Pará, Maranhão, Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Goiás. Eles são diversos em termos político-ideológicos e epistemológicos e plurais no que diz respeito à natureza do objeto analisado e do modo de fazê-lo. (p.16).
Um exame acurado das metas de cada trabalho nos permitiu identificar essa dispersão: cerca de um quarto delas foca nos processos de elaboração e/ou implantação e mudanças nos currículos locais (RJ, MA, AP, PA, GO); outros priorizam o exame das finalidades, do conteúdo ou dos fundamentos, sobretudo do Ensino de História nos currículos locais (MG, SP, PE, PR, SC). Os demais se dispersam entre o foco na caracterização da proposta local (MS), na crítica genérica à proposta (RR, SE), nas determinações da BNCC no currículo local (BA, AL), nas estratégias de resistência à BNCC (CE) e em questões mais gerais, como os elementos de legalização e legitimação da proposta local (AC) e as crises da Educação escolar nacional (MT)
Os organizadores têm razão quando afirmam que “a maior parte dos autores faz críticas ao projeto BNCC”, embora as críticas não convirjam, dominantemente, para o questionamento da “viabilidade de um currículo nacional dar certo no país, que tem tanta diversidade e desigualdade, além de ser um currículo vinculado e voltado à avaliação” (p.16). De fato, a BNCC é o grande saco de pancadas, mas ela recebe alguns afagos. Segundo autores do próprio livro, a BNCC deixa espaços para a discussão sobre questões étnico-raciais e de gênero, apresenta coerência teórico-metodológica em algumas passagens e foi construída com a participação de amplos segmentos da sociedade.
O mesmo não acontece com os currículos locais, onde a reprovação é dominante. A maior parte da crítica é dirigida ao processo e ao resultado de produção dos dispositivos que, em geral, segundo os autores, não herda os equívocos do dispositivo nacional. No conjunto (excetuando-se o texto dos organizadores), os trabalhos comunicam a ideia de que a BNCC é ruim, mas os currículos locais também são muito ruins. Até mesmo as positividades dos documentos são, dominantemente, construídas por seu grau de distanciamento em relação à BNCC, seguindo um princípio implícito: se difere da BNCC já é sinal de que é menos ruim. O dispositivo do Ceará, por exemplo, inclui relações étnico-raciais e de gênero, os do Maranhão e Mato Grosso consideram a produção dos especialistas no Ensino de História, o da Bahia incorpora historiografia local, o de Roraima inclui perspectivas decoloniais e os de Alagoas e Pernambuco incorporam questões sociais, as experiências de “marginalizados” e de “movimentos sociais” (p.380-382).
Os organizadores do livro, contudo, endossam parte dessas críticas ao documento nacional, cometendo imprecisões conceituais e erros lógicos. Eles desenham um contexto de produção e de emergência da BNCC e dos dispositivos estaduais de caráter autoritário e neoliberal sem deixar claro de qual liberalismo estão a tratar, induzindo o leitor a pensar que o período 2014-2015 foi igual, em ideologia e formato de Estado, ao período 2017-2019.
Os organizadores omitem o caráter legal e democrático da constituição do dispositivo que criou a BNCC e aplicam ao mundo real, insensatamente, o que no mundo jurídico se chama de “Doutrina dos frutos da árvore envenenada”: se a BNCC “faz parte de uma política curricular que se insere” nesse contexto, seus desdobramentos (os currículos estaduais) estão prejudicados (p.17-18). Eles também legitimam o progressivismo do “discurso pedagógico” da BNCC e, ato contínuo, denunciam o suposto “controle do Estado sobre o currículo real/efetivo/ativo da sala de aula” em dupla e explícita contradição. Ao final, ainda investem contra os moinhos de ventos que são os “códigos alfanuméricos” da BNCC, “também presentes nos livros do PNLD” (p.20).
Essas estratégias – de aprofundar os defeitos e minimizar as qualidades (no interior de uma compreensão perspectivada epistemológica e ideologicamente) – não são uma peculiaridade do texto dos cinco organizadores. Elas são um reflexo de como se pensa e se comporta a inteligentzia brasileira dedicada à pesquisa do Ensino de História escolar e à formação de professores de História. É o que podemos constatar em, aproximadamente, 85% das proposições que conseguimos isolar do discurso dos 19 textos restantes.
Em primeiro lugar, currículos locais são capitalistas ou resultantes de teses e/ou contextos nacional e transnacional capitalistas (MT, RR, SP, PR, GO). Para os autores, o sistema capitalista, seu monetarismo, privatismo e sua finalidade escolar geram currículos que preparam os alunos, precipuamente, para o mundo do trabalho.
Em segundo lugar, a construção e a publicização do currículo local são processos antidemocráticos (RJ, PR, SC, GO, AP, PA, MG e SE). Eles não incorporaram as associações científicas, os sindicatos, as críticas dos especialistas ao documento local e à BNCC, não possibilitam a participação do público no formato resposta construída (subjetivas), excluem ou limitam a participação dos professores, reais usuários da política pública, na construção do currículo.
Em terceiro lugar, os currículos locais copiam a BNCC (SP, SC, SE, MA, GO, AP e PR). Alguns textos possuem o mérito de mensurar essa cópia: em São Paulo, a experiência local não ganhou os 40% prometidos inicialmente; em Minas Gerais, esse número alcança 20%. Nos demais, a cópia é especificada: na educação infantil, nos anos iniciais, nos anos finais, na estrutura em unidades temáticas, no conteúdo (habilidades, conhecimentos), nos fins e nas justificativas da inserção do componente curricular História.
Em quarto lugar, não necessariamente por causa da BNCC, currículos locais são elitistas (RR, MS, SE), equivocados, em termos de história temática e gênero, eurocêntricos, tradicionais, factuais, nacionalistas, cronológicos e tecnicistas. Eles transformam os professores em meros executores de tarefas (MG, GO, PR, SP) e são omissos, sobretudo em relação à história local (SC, AP, RR), às ideias de aprendizagem histórica e ao conteúdo metahistórico (MG, PR, AL, GO, MT, RR).
Vemos, então, que os autores condenam os currículos locais por seus tons capitalistas, tradicionais, antidemocráticos e por sua omissão em termos de valores e determinados conteúdos substantivos e metahistóricos. As teses não são novas, mas a precariedade da crítica não está na falta de novidade das teses, e sim, na fragilidade dos argumentos, destituídos de adequadas provas, tomadas a partir das realidades nas quais (e para as quais) esses currículos foram construídos. Mais que nunca é oportuno fazer questionamentos que ajudam a explicar a ocorrência dessas mazelas, presentes nos currículos locais e nacional: qual a natureza do conteúdo que alimenta a formação dos professores nos cursos de licenciatura? Eles estão, efetivamente, muito distantes do que prescrevem os currículos para a escola? Onde os professores aprendem que o maior problema do Ensino de História reside na escolha da melhor técnica de ensino? Os professores consolidam esse aprendizado mediante a formação continuada ofertada pelas Secretarias de Educação? Se a resposta for sim, quem fornece esse tipo de capacitação, antes da entrada em cena das fundações financiadas pelo grande Capital, como denunciam as duas passagens que se seguem?
A BNCC traz em seu conteúdo a ideologia de classe hegemônica e a legitimação do neoliberalismo em uma homogeneização curricular em uma conjuntura marcada por injustiças sociais e pela crise estrutural do capital a partir de orientações educacionais voltadas para a “formação dos filhos das classes trabalhadoras para o mercado de trabalho informal e precarizado, compatível com as novas demandas do capital deste novo século, voltadas para a acumulação flexível” (LAGOA, 2019, p. 12). Isso ocorre por meio do prevalecimento de competências e habilidades demandadas pelo mercado de trabalho e pelos interesses das classes burguesas. […]
Assim como na BNCC, o Currículo de Sergipe segue a lógica de reprodução da ideologia dominante ao se basear no estabelecimento de competências que, travestidas de termos como conhecimento, ciência, criticidade, cultura, entre outros, vislumbra preparar os alunos para a flexibilização e a modelagem exigidas pelo mercado de trabalho atual, que “descorporifica” os sujeitos, forçando-os a darem conta de super demandas em condições de trabalho desumanas e às custas do terror e do medo que lhes são impostos em um cenário no qual os vínculos empregatícios tornam-se cada vez mais efêmeros, incertos e vulneráveis, colocando o valor da força de trabalho em permanente liquidação (GALVÃO, 2015). (MODESTO, 2021, p.344-345).
Como vemos acima, em lugar de responder àquelas questões, os autores privilegiam o emprego do discurso da autoridade científica personificada na fala dos pares destacados. Não nos referimos, por exemplo, às referências de categorização, a exemplo dessa passagem: “…que Arroyo (2013) define como território de disputa” (p.340). Miramos, sobretudo, argumentos, como: “o distanciamento do currículo em relação aos objetivos e reflexões propriamente da História” faz com que o currículo local não contemple “a possibilidade de construção de habilidades e competências voltadas [a] uma reflexão propriamente histórica ou contribuidora da formação de uma consciência histórica de tipos mais sofisticados”. Na sequência, a autoria afirma: “Segundo Rüsen, ‘a consciência histórica tem uma função prática…’” (p.284). Se a crítica quer cobrar a adoção das habilidades mentais rüsenianas no dispositivo local, a autoria deve deixar claro os pressupostos da sua crítica e, também, as metas do dispositivo criticado. Omitindo esse procedimento, passa ao leitor que Rüsen é “A” autoridade pecaminosamente desconsiderada pelo dispositivo.
Há inclusive citação de citação para replicar uma autoridade, sem a devida demonstração do exame da cor local: “Luís Carlos de Freitas (2012) indica que essa lógica ultraneoliberal […] Nicodemos (2019), apoiada em Freitas (2012), afirma [que os] defensores das reformas educacionais asseveram que podem resolver os problemas das escolas propondo uma política que procura gerar a responsabilização dos agentes das mesmas” (p.305). Para bom proveito dos pares, a autoria da crítica deveria demonstrar, no currículo local, os exemplos (ou os efeitos) da “privatização”, da “responsabilização” e da “meritocracia” no currículo local.
De modo geral, esse tipo de operação representa um desserviço à formação inicial e continuada de professores: autores desconsideram a ideia de uma Base Nacional Curricular, resultado de um acordo político abonado pela Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e as conferências locais e nacionais da Educação. A meta que dá origem ao dispositivo não é homogeneizar, mas construir um mínimo patamar de qualidade sobre fins, conteúdos e meios de aprendizagem da educação escolar nacional. Autores precarizam o emprego das suas próprias categorias (a exemplo de “classe” e “trabalho”) e do modelo explicativo do qual são originárias (a exemplo do materialismo histórico); desconsideram o potencial ou excluem o real protagonismo dos sujeitos envolvidos na construção do currículo local (em nome do qual tanto se fala) e, o pior (em termos acadêmicos): alimentam a ideia de que não estavam, suficientemente, preparados para ler e constatar, com o emprego da sua própria razão (para não falar em seus próprios conhecimentos, habilidades e valores), as ameaças disseminadas na BNCC e no currículo local e de dialogar com a literatura especializada sobre as consequências de uma provável incorporação.
Agindo dessa forma, autores dão motivos aos colegas “especialistas” que afirmam: pesquisadores do Ensino de História “não sabem história”, ou seja, desmerecem os contextos históricos em nome da mágica palavra “neoliberalismo”. Por essa razão, insistimos que ainda é oportuno perguntar: o que efetivamente aconteceu em cada Estado? Quais universidades, sindicatos, associações profissionais, núcleos de pesquisa especializados em Ensino de História se disponibilizaram a contribuir? Qual foi a posição inicial das instituições do gênero quando os governos iniciaram os preparativos para a construção dos documentos? Comparando-se as finalidades dessas instituições, podemos concluir que as suas posições sobre os currículos locais e nacional são, efetivamente, de lamento ou de comemoração?
Os autores podem afirmar que nós também incorremos no discurso esquizofrênico, lendo o livro a partir da ideia de que se trata de obra ruim. Mas, uma das vantagens das práticas racionais da academia é abrir a possibilidade de os colegas também denunciarem o viés de confirmação dos autores dessa resenha, contribuindo, dessa forma, para o avanço das ideias de todos os pesquisadores em benefício da melhoria das políticas públicas para o Ensino de História. Com esse jogo de teses, críticas e autocríticas, acalentamos a esperança de que o próximo texto – a síntese – será bem mais racional que esta resenha e, obviamente, o seu objeto: BNCC de História nos Estados: o futuro do presente
Assim, reiteramos a importância de publicações desse tipo. Contudo, na condição de formadores de professores e sujeitos chamados a emitir avaliações em benefício do aperfeiçoamento das políticas públicas, torcemos para que as nossas críticas sirvam aos nossos públicos preferenciais: os professores em formação e os colegas da educação básica.
Se não definimos e esmiuçamos cada crítica que fazemos, nosso discurso não serve à formação dos primeiros e não apresenta alternativas aos segundos. O cotidiano da vida escolar é muito poderoso e ele requer um leque de possibilidades que dê chance à comunidade a construir suas alternativas, mantendo-se coerente com seus propósitos, mas sem desconhecer que os posicionamentos desse tipo – expresso no “isso não nos serve” (desacompanhados das possibilidades de ação) – resulta na imobilidade e na ilusão de que já fazíamos o que era perfeito (E nada é pior a uma instituição escolar do que perder a esperança). Como afirmava Paulo Freire (2003, p.19), “a História é tempo de possibilidade e não de determinismo”, e “o futuro é problemático e não inexorável”. Aí está, pelo menos, um argumento para lutar por futuros possíveis (principalmente) nos momentos de crise.
Sumário de BNCC de História nos Estados: o futuro do presente
Sobre os autores
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Resenhistas
Para citar esta resenha
FERREIRA, Ângela R.; ALMEIDA NETO, Antonio S. de; ADAN, Caio F. F.; FERREIRA, Carlos A. L.; MELLO, PaulO E. D. de; e SOARES, Olavo P. (org.). BNCC de História nos Estados: o futuro do presente. Porto Alegre: Editora Fi, 2021. 462p. Resenha de: OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de; FREITAS, Itamar. Na zona de conforto. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, jul./ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/?p=2715>
Crítica Historiográfica. Natal, v.2,n6, jul./ago. 2022 | ISSN 2764-2666
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