As ciências e as independências do Brasil | Revista Brasileira de História da Ciência | 2022
Detalhe do cartaz do Seminário Internacional “Ciências, saúde, ambiente: independências do Brasil?” | Imagem: Agência FIOCRUZ de Notícias
No bicentenário da independência do Brasil, a Revista Brasileira de História da Ciência pretende contribuir com interpretações sobre as influências das ciências e da tecnologia nos processos de construção histórica do Brasil independente e de suas identidades nacionais através da publicação deste dossiê temático. Em processo de longa duração, delimitamos as interpretações sobre as “independências’’ do Brasil desde a reforma pombalina da Universidade de Coimbra e a fundação da Academia das Ciências de Lisboa, na década de 1770, até fins do Império brasileiro, quando algumas práticas e instituições científicas se fortaleceram.
A busca de novos sentidos sobre as ciências no Brasil encontra respaldo em recentes abordagens historiográficas. Antigos temas já muito explorados, como as viagens científicas, têm sido ressignificados nos últimos anos. Este é o caso da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, que percorreu vasto território colonial entre Belém e Cuiabá de 1783 a 1792. Apesar do reconhecimento de historiadores desde o século XIX sobre a vasta produção de coleções e relatos, as práticas e o cotidiano da viagem foram negligenciados ou questionados por muito tempo devido à ausência de publicações dos resultados da viagem. A extrema valorização acadêmica sobre as publicações científicas se coaduna com uma dissociação anacrônica entre teoria e prática, o que teria levado à construção de um imaginário de uma ciência puramente utilitarista, e por isso, foi considerada de menor relevância em grande parte da historiografia que reforçou constantemente as ausências de atividade científica no período colonial e a situação de atraso em relação ao norte global. No artigo “Vidas e saberes em trânsito: os indígenas preparadores Cipriano de Souza e José da Silva e a Viagem Filosófica na Amazônia colonial portuguesa (1783-1798)”, Gabriela Berthou de Almeida traz novos significados sobre as práticas em viagem, especialmente através da atuação dos “práticos”, denominação concernente à participação dos indígenas na preparação de coleções.
A autora mapeou as referências na documentação da viagem sobre a atuação dos indígenas José da Silva e Cipriano de Souza na preparação de coleções, buscando compreender como eles assumiram funções como “práticos” nas investigações científicas. Interpretando as aproximações culturais entre colonizadores e povos indígenas, a autora traça os trânsitos de produtos entre a colônia e a metrópole, ampliando os significados sobre os saberes. Rosiléia Oliveira de Almeida e Benjamim de Almeida Mendes contribuem com abordagens interculturais sobre várias operações na produção artesanal do açúcar e da cachaça no interior da Bahia. Muitos métodos tradicionais, provavelmente de origem árabe, introduzidos no Brasil no período colonial, foram investigados pelos autores através da utilização do termo ajofe por professores e estudantes de escolas de uma cidade baiana. O emprego do termo na educação conduziu a uma pesquisa histórica com análise documental na Revista da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), para o entendimento da contraposição entre os preceitos modernizadores construídos no Brasil independente e a permanência de testes indiciários construídos através da interpretação dos sinais, na produção da cachaça. Essas análises demonstraram um esforço para a substituição dos processos e testagens artesanais por técnicas europeias, num esforço de modernização através da superação de uma cultura técnico-científica considerada arcaica. A constatação desses embates numa cultura escolar contemporânea abre possibilidades da formulação de propostas de uma educação decolonial, inspirada em processos e linguagens construídos historicamente em âmbito local, possibilitando o rompimento da hierarquização de saberes. Um dos desafios mais relevantes para as ciências no século XIX foi a capacidade de institucionalização de certas áreas. A medicina foi a primeira disciplina a ter periódicos próprios e a organizar instâncias específicas de assessoria ao Estado quanto a questões de saúde e salubridade, ainda no período colonial. As áreas mais exatas, próximas das engenharias e da agronomia encontraram na SAIN um locus de atração para aqueles que se engajavam em prol de uma ciência útil, de aplicação imediata. O artigo de David Francisco de Moura Penteado, intitulado “Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: a ambiguidade de uma associação civil a serviço do Estado brasileiro (1825 – 1904)”, analisa a cooperação entre a agremiação e o Estado brasileiro, entre 1825 e 1904. Diante da escassez de especialistas em problemas técnico-científicos, a SAIN, que reunia um grupo heterogêneo de filiados, cumpria a função de consultor para políticas públicas, ao longo de todo o Império.
O artigo “Os manuais de medicina doméstica e a circulação do conhecimento no século XIX: o caso da Guia Médica das Mãis de Família”, de Cássia Regina da S. Rodrigues de Souza, investiga as formas de divulgação das ciências médicas veiculadas por um manual médico, em meados do século XIX. O contexto era o de institucionalização da medicina no pós-Independência e o da deslegitimação dos curadores que não fossem diplomados oficialmente. O manual teve uma repercussão considerável e demonstra que o interesse por obras para um público mais amplo cresceu e se fortaleceu na época, inicialmente com a participação de médicos estrangeiros, como o francês Jean-Baptiste Imbert, autor do livro.
Enfim, a variedade de temas e propostas metodológicas do dossiê revela um processo de amadurecimento da História das Ciências no Brasil e das múltiplas interpretações sobre os sentidos das ciências e tecnologias, expressos por muitos atores na construção de práticas, teorias e representações entre o final do período colonial e a formação do Brasil independente. Os múltiplos contextos históricos locais mostram a complexidade e a riqueza da história de um Brasil que ainda hoje busca sua independência política, cultural, econômica e intelectual.
Organizadoras
Ermelinda Moutinho Pataca – Universidade de São Paulo
Lorelay Kury – Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Casa Oswaldo Cruz/Fiocruz
Referências desta apresentação
PATACA, Ermelinda Moutinho Pataca; KURY Lorelay (Org d). As ciências e as independências do Brasil | Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.15, n.1, p.2- 3, jan./jun. 2021. Acessar publicação original.