A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) | Eduardo de Souza Gomes

Luciano do Valle
Luciano do Valle| Imagem: Ludopedio/Band

Apesar da inserção recente nas pesquisas historiográficas,2 o esporte vem se tornando um objeto de estudo rotineiramente utilizado pelos historiadores que visualizam neste fenômeno uma rica veia de possibilidades para compreender diversas manifestações sociais, culturais e econômicas. Esta obra resenhada, escrita pelo historiador brasileiro Dr. Eduardo de Souza Gomes se inclui nesse contexto ao utilizar o futebol para problematizar aspectos históricos ligados à profissionalização da modalidade esportiva no Rio de Janeiro (Brasil) e na Colômbia.

O livro está organizado em três capítulos, amparados por pressupostos metodológicos da história comparada.3 Neles, o autor aborda o processo de profissionalização do futebol na Colômbia e na cidade do Rio de Janeiro que, na época investigada, era a capital federal do Brasil e tinha influência na movimentação política e social ao nível nacional. Além disso, o autor ressaltou a impossibilidade de tratar a profissionalização no Brasil como um todo, visto as disparidades desse processo entre os estados brasileiros. A Colômbia, por sua vez, conforme o Gomes, possuiu um processo de profissionalização que abrangeu o país como um todo, facilitando tratar esse processo em âmbito nacional.

Para analisar, compreender e comparar os dois cenários, o autor delimita a temporalidade condizente com o fenômeno analisado em cada contexto, isto é, no Rio de Janeiro desde 1933 até 1954 e, na Colômbia, os anos de 1948 até 1954. No caso brasileiro, esse período condiz com a criação da Liga Carioca de Football (LCF) e o recorte final se refere à fundação da instituição que passaria a organizar as competições nacionalmente (o Conselho Nacional de Desportos). Na Colômbia, a primeira data se refere à criação da Dimayor, uma das federações incumbidas pela organização do futebol profissional no país, e a última data está ligada à instauração do Pacto de Lima, que tornou essa instituição a única representante coordenadora do futebol profissional colombiano.

Visto a disparidade cultural de ambas as regiões, o historiador se baseou no conceito de “culturas híbridas” do antropólogo argentino Néstor G. Canclini4 para compreender as ressignificações e formação de novos cenários culturais em cada caso, independentemente das influências centrais europeias impostas nesse período. O conceito de espetacularização do historiador britânico Timothy James Clark5 também foi acionado para aprofundar a análise sobre as diferentes facetas que o esporte assumiu nos dois países. Além desse suporte teórico, todos os capítulos foram amparados por fontes históricas do período de profissionalização do futebol de cada local, principalmente de por meio de periódicos6 com diferentes ideologias e posicionamentos. Para auxiliar na criticidade dos usos dos jornais como fontes, o autor utiliza dos preceitos metodológicos detalhados pela historiadora brasileira Tania Regina de Luca.7 Como fontes complementares, o autor utilizou autobiografias de jogadores de futebol da época, tendo o cuidado de questionar e contrapor tais materiais.8

Adentrando na obra, o amadorismo e o início do processo de profissionalização do futebol foram os temas tratados no primeiro capítulo intitulado “‘Amadorismo Marrom’ e a profissionalização do futebol no Rio de Janeiro (1933-1934) e na Colômbia (1948-1949)”. Nesta parte, Gomes busca apresentar uma série de fatores que auxiliaram na mudança de regulamentação de jogadores e destaca também as tensões ocorridas em relação ao amadorismo e profissionalismo do futebol no Rio de Janeiro e, posteriormente, na Colômbia. Esse processo é marcado inicialmente pelo momento histórico do futebol denominado usualmente de “amadorismo marrom” que, grosso modo, seria o pagamento de jogadores por partidas, resultados e títulos alcançados. Esse tipo de prática ocorreu nas duas localidades investigadas. Esses pagamentos, no entanto, não foram suficientes, ocasionando o êxodo de jogadores brasileiros – estabelecendo-se como uma das primeiras motivações para a profissionalização no país. Além disso, no caso brasileiro, o autor aponta o “dissídio esportivo” como fator importante para essa transição, que seria a mudança ocorrida no cenário político brasileiro com a entrada de Getúlio Vargas na presidência e que acarretaria nas disputas pelo poder no futebol no Rio de Janeiro, acirrando ainda mais as lutas entre os que almejavam o profissionalismo e os que defendiam o amadorismo.

Essas mudanças políticas e das formas de praticar-se a modalidade (profissionalmente ou não) ocasionaram inúmeras tensões entre federações amadoras e profissionais no Rio de Janeiro e na Colômbia. O autor evidenciou que as entidades que disputavam o poder eram a Liga Carioca de Fooball (LCF) no Rio de Janeiro, juntamente com Federação Brasileira de Football (FBF), no âmbito nacional, que defendiam a profissionalização, contra a Associação Metropolitana de Esportes Atleticos (AMEA) e Confederação Brasileira de Desporto (CBD), que eram responsáveis pelo futebol amador. Na Colômbia, os embates foram entre a Dimayor (órgão que organizava o futebol profissional) e a Asociación Colombiana de Fútbol (Adefútbol), regulamentadora do futebol amador.

Nessa perspectiva, ao longo do capítulo, o autor evidenciou as disputas ocorridas entre essas federações para a preparação do selecionado nacional brasileiro para a disputa da Copa do Mundo de 1936 e da seleção colombiana para o Campeonato Sul-Americano de 1949. Observou-se, nesse ponto, a partir da leitura, que devido aos conflitos entre federações, a organização dos selecionados foi prejudicada, culminando em campanhas ruins nos respectivos campeonatos e, consequentemente, em representações nacionais frágeis – levando o processo de profissionalização ao novos e mais consolidados rumos que são melhor explicitados nos demais capítulos.

O segundo capítulo intitulado “O desenvolvimento de um campo profissional no futebol: relações com a mídia e a política” visa discorrer sobre o avanço do profissionalismo nos dois locais investigados e como esse processo se relacionou com as questões políticas e midiáticas no período de 1934- 1937 no caso brasileiro, e de 1949-1951, no colombiano. Comparativamente, o profissionalismo no cenário carioca, conforme o autor, estabeleceu-se mais em decorrência das disputas travadas entre entidades que buscavam o poder sobre o futebol —e não necessariamente pela intencionalidade de ser uma modalidade profissional—. Ainda, aprofundando seu olhar sobre as fontes cariocas e cumprindo seu objetivo de analisar as opiniões da mídia, Gomes apresenta as disputas e relações entre apoiadores do amadorismo e do profissionalismo com a imprensa a partir da análise de discursos divergentes publicados entre os jornais analisados. Dessarte, no Rio de Janeiro, mostrou-se evidente a intenção de disputa de poder entre aqueles que aspiravam pelo profissionalismo e aqueles que defendiam o amadorismo como sistema organizador do futebol, cada qual com apoio da mídia que mantinha relação e ideologias próximas.

Na Colômbia, diferentemente, se viu um cenário de necessidade e de interesse por parte dos vinculados ao futebol em desenvolver essa modalidade rentável e espetacularizada, visto que esse processo ocorreu tardiamente no país em relação ao caso brasileiro e outros países da região. Quanto à análise da ligação dos jornais de diferentes ideologias com discursos em prol ou contra o amadorismo/profissionalismo, Gomes explicitou que, nesses meios de comunicação reforçava-se, de forma uníssona, a necessidade de profissionalizar o futebol na Colômbia. Nessa conjuntura, o futebol comparecia de forma benéfica tanto para os interesses dos liberais quanto dos conservadores, seja por considerarem uma prática moderna ou por ser compreendida como uma maneira de atingir uma unidade nacional que ainda estava em construção. Em síntese, nota-se que o futebol e o esporte como um todo, em ambas as localidades, foi se configurando como uma via para se construir políticas e uma noção de identidade nacional —muitas vezes repercutida pela imprensa—, constituindo-se uma manifestação social útil para os agentes políticos da época.

“O futebol após a profissionalização: a construção de um novo cenário híbrido do esporte no Rio Janeiro e na Colômbia” é o título do terceiro e último capítulo. Nesse momento da obra, o historiador discorre sobre a popularização e espetacularização do futebol em ambas as localidades —visto que a modalidade passou a ser considerada símbolo de identidade após, como coloca Gomes, passar por “um processo híbrido de ressignificação” (2019, p. 144). No Brasil, com a criação do Conselho Nacional de Desportos em 1941 que organizaria o futebol e demais modalidades, consolidou-se o processo de profissionalização iniciado em 1937 e inseriu a prática em uma lógica de mercado, de espetacularização e popularização. Mais tarde, o futebol da Colômbia, que enfrentava um cenário de entrada de jogadores estrangeiros famosos na liga da Dimayor —amparada em sua clandestinidade— passou por um período de reconfiguração necessária para adentrar no contexto profissional reconhecido pela Federação Internacional de Futebol a partir do Pacto de Lima em 1951.

Assim, em suas respectivas temporalidades, o autor demarcou iniciativas para que o futebol fosse espetacularizado e alcançasse diferentes públicos. No Rio de Janeiro, por meio da construção (principalmente advindo de rádios e da imprensa) do futebol como um símbolo nacional. Enquanto na Colômbia, a lógica do espetáculo nasce com a profissionalização e com a presença de jogadores estrangeiros. Não obstante, pudemos compreender com a obra que, e em ambas as localidades, a popularização se acelerou após a consolidação da profissionalização, mas de maneiras diferentes em que, no Brasil, ocorreu através de discursos nacionalistas e de uma compreensão teórica da “democracia racial” e, na Colômbia, por meio da contratação de grandes jogadores estrangeiros que viabilizaram a formação de identidade clubista e, posteriormente, mesmo com a saída desses jogadores, construiu uma relação entre o futebol com os colombianos.

O autor finaliza a obra ressaltando que a ressignificação diversificada de um esporte “original” bretão é resultante desse cenário híbrido que, mesmo possuindo traços históricos e culturais próximos, é possível observar suas peculiaridades e similaridades. A profissionalização, espetacularização e popularização do futebol, dessa forma, pôde ser comparativamente analisada com a utilização de fontes e apoio teórico por Gomes, evidenciando a importância e o ineditismo de realizar-se o tipo de abordagem metodológica empregada em seu livro. Entretanto, um dos pontos que poderia ser ampliado na obra é o diálogo com trabalhos que trataram especificamente sobre a espetacularização do esporte.9 Além disso, ressalta-se que a comparação entre uma cidade e um país pode se constituir como uma limitação da pesquisa, mesmo com o cuidado por parte do autor ao trata-la. Isso decorre devida as diferenças territoriais, temporais e contextuais, sendo necessário considerar que se pode levar a um aprofundamento maior e, mais detalhada, em uma conjuntura do que em outra ao ler a obra. Por fim, se reconhece a dificuldade de acesso às diversificadas fontes de locais diferentes e distantes, porém, salienta-se que o uso de outros tipos fontes poderia enriquecer ainda mais o detalhamento das realidades investigadas.

Ao embarcar nesse percurso complexo de comparação entre as diferenças, semelhanças e particularidades do futebol no Rio de Janeiro e na Colômbia, podemos identificar na obra de Gomes a caracterização de um estudo original e que, por sua complexidade, ressaltamos que nessas poucas palavras, pouco pôde ser detalhado quando se comparada à grandiosidade tomada nas páginas lidas. Assim, consideramos que esse livro se apresenta como essencial àqueles que desejam explorar e comparar a história do futebol e dos esportes em distintas localidades

Notas

  1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (capes) – Código de Financiamento 001.
  2. A história do esporte é uma subdisciplina consolidada da História que inclusive possui associações internacionais, revistas e congressos específicos. Para mais informações sobre a formação e o desenvolvimento dessa área ver Victor Andrade de Melo e Rafael Fortes, “História do esporte: panoramas e perspectivas”, Fronteiras 12.22 (2021): 11-35; e Letícia Cristina Lima Moraes, Leonardo do Couto Gomes e Wanderley Marchi Júnior, “Recorde: Revista de História do Esporte — An Overview of its Publications (2008-2020)”, The International Journal of the History of Sport 38.4 (2021): 412-427. https://doi.org/10.1080/09523367.2021.1918113.
  3. O autor se baseia em José D’Assunção Barros, História Comparada (Rio de Janeiro: Vozes, 2014).
  4. Néstor Garcia Canclini, Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade (São Paulo: edusp, 2015).
  5. Timothy James Clark, A pintura da vida moderna (São Paulo: Companhia das Letras, 2004).
  6. Periódicos colombianos selecionados: El Colombiano, El Tiempo, El Espectador. Periódicos cariocas: Jornal dos Sports e Jornal do Brasil.
  7. Tânia Regina de Luca, “Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos”, Fontes históricas, org. Carla Bassanezi Pinsky (São Paulo: Contexto, 2008) 111-154.
  8. Baseou-se em Vavy Pacheco Borges, “Fontes biográficas: grandezas e misérias da biografia”, Fontes históricas, org. Carla Bassanezi Pinsky (São Paulo: Contexto, 2008) 203-234.
  9. Ver José Maria Cagigal, Deporte: espectáculo y acción (Madrid: Salvat Editores, 1985); Luis Antezana, “Fútbol: espetáculo e identidade”, Futbologías, comp. Pablo Alabarces (Buenos Aires: clacso, 2003); Alfonso Mañas Bastidas, “Munera Gladiatora: origen del deporte espetáculo de massas”, tese de doutorado em História Antiga (Granada: Universidad de Granada, 2011); Wanderley Marchi Júnior, “Sacando o voleibol: do amadorismo à espetacularização da modalidade no Brasil”, tese de doutorado em Educação Física (Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001).

Resenhistas

Letícia Cristina Lima Moraes – Universidade Federal do Paraná, Brasil https://orcid.org/0000-0001-9444-8735 E-mail: letsmoraes96@gmail.com

Wanderley Marchi Júnior – Universidade Federal do Paraná, Brasil.  https://orcid.org/0000-0002-4911-9702 E-mail: wmarchijr@gmail.com


Referências desta Resenha

GOMES, Eduardo de Souza. A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954).1 Curitiba: Appris, 2019. Resenha de: MORAES, Letícia Cristina Lima; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura. Colombia, v. 49, n.2, p. 439-444, jul./dic. 2022. Acessar publicação original [DR]

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