A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero | Oyèrónke Oyëwümí
Oyèrónkẹ´ Oyěwùmí | Imagem: Facebook
A obra “A invenção das mulheres – Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero” foi publicada no Brasil pela Editora Bazar do Tempo no primeiro semestre de 2021. Tal publicação é derivada de seu original em inglês “The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourse” (1997) sob autoria da professora e socióloga nigeriana de origem iorubá, Oyèrónkẹ´ Oyěwùmí. A autora busca compreender a maneira pela qual o gênero foi construído na sociedade iorubá, levando em consideração toda a interferência ocidental nas produções de conhecimento africanas sob histórico de dominação europeia naquele continente, investigando principalmente o contexto da pré-colonização na iorubalândia.
Um dos apontamentos da autora em relação aos Estudos Africanos foi a de que diversos esquemas, teorias e conhecimentos acadêmicos de origem ocidental foram apropriados e utilizados como maneira de compreender o continente africano. Tais compreensões foram comumente impostas pelo domínio estrangeiro (nos processos colonizatórios e tráficos escravagistas do atlântico, por exemplo) às sociedades africanas.
Assim, Oyěwùmí entende que é necessário uma revisão da utilização e aplicabilidade de tais estudos por não se adequarem e/ou distorcerem os contextos e singularidades daquele continente. O livro, resultado da tese de doutorado em Sociologia de Oyěwùmí pela Universidade de Berkeley, não só procura documentar a maneira como o gênero foi construído na iorubalândia, mas como “o corpo humano não precisa ser constituído como genereficado ou ser percebido como evidência para a classificação social em todos os tempos” (Oyèrónkẹ´ OYĚWÙMÍ, 2021, p. 19). A autora em diferentes capítulos procura expor que, no período no período anterior ao contato europeu, as distinções corporais na cultura iorubá eram superficiais e não objetivavam propor hierarquias sociais, como é de praxe no Ocidente.
Tal obra está dividida em cinco partes, no primeiro capítulo “Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos”, Oyěwùmí está preocupada em analisar como o pensamento ocidental está centrado na biologização dentro de uma ordem social. Ela também demonstra as implicações da aceitação acadêmica acrítica em relação às pesquisas de sociedades africanas e as incoerências nas transferências de categorias para lógicas culturais distintas. No segundo capítulo, “(Re)constituindo a cosmologia e as instituições socioculturais Oyó-Iorubás”, a autora introduz as características e as concepções em relação ao mundo iorubá sob ótica do pensamento próprio desta sociedade. No terceiro capítulo, “Fazendo história, criando gênero: a invenção de homens e reis na escrita das tradições orais de Oyó”, ela aborda os processos de invenção de tradições generificadas no contexto africano mediadas por um saber europeu. Em “Colonizando corpos e mentes: gênero e colonialismo”, quarto capítulo do livro, Oyěwùmí parte para a análise do processo multifacetado da colonização e em como este determinou a institucionalização das categorias de gênero. Por fim, no último capítulo intitulado “A tradução das culturas: generificando a linguagem, a oralitura e a cosmopercepção iorubás”, a autora explora o impacto de traduções da língua inglesa sobre os valores culturais iorubás.
Preocupada em não generalizar o estudo para todo o continente africano, Oyěwùmí frisa que sua pesquisa está centrada na cultura Oyo-Iorubá e que as características levantadas por ela estão datadas em um período anterior às mudanças ocasionadas pelo período colonial.1 A intenção inicial da autora era a de estudar a sociedade iorubá atual, mas conforme avançava, percebeu que muitas teorias e estudos empreendidos no meio universitário não davam conta do contexto da localidade, uma vez que a maioria destes eram frutos de reflexões europeias/norte atlânticas sobre a cultura da região.
A pesquisadora identificou que a categoria “mulher”, comum dentro dos estudos feministas e de gênero, nem sempre esteve presente no mundo iorubá, mas foi introduzida a partir do contato daquela população com os ocidentais. Oyěwùmí enfatiza que a biologização dos corpos e a determinação social ligada a este, comum ao Ocidente, não possuía o mesmo efeito para a iorubalândia e por isso, esta não teria sido uma sociedade em que as frequentes distinções binárias do Ocidente se aplicaram, pois ali um outro sentido de organização social esteve presente. A binarização, conforme a autora, deu-se a partir da colonização com o processo de interiorização das anafêmeas que foram paulatinamente inferiorizadas e excluídas dentro daquela sociedade.2 É possível identificar dois eixos principais que orientam a obra, o primeiro diz respeito à contestação do gênero como primordial para a organização social do mundo iorubá e um segundo envolve a crítica em relação às compreensões euro-americanas do feminismo aplicadas não somente para o estudo da comunidade, como também de uma África total. Oyěwùmí salienta que na sociedade iorubá, antes do século XIX, o caráter físico masculino e feminino não se constituíam como categorias sociais. A maneira com que as relações se estabeleciam eram por meio do que a autora denomina como senioridade e esta estava baseada na idade cronológica, por isso, até mesmo graus de parentesco na língua não detinham as especificidades de gênero – como o caso de “tias”, “tios”, “primas” e “primos”.3 Se as características de gênero que comumente estão expressas em diferentes idiomas europeus não apareciam na língua iorubá, é esta última a ser utilizada pela autora para identificar o elemento fundante de investigação das ordens sociais na iorubalândia. A fluência de Oyěwùmí sobre a língua inglesa e a língua iorubá, permitiram uma análise sobre as distinções de gênero, ou melhor, a constatação de uma inexistência de atribuições sexuais dentro dos vocábulos iorubás, como Ọmọ – comumente entendida como prole e não filha ou filho – e àbúrò – usado tanto para meninas quanto para meninos que nasceram depois de um primogênito (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 81).
Se nas sociedades ocidentais a distinção do gênero no vocabulário é entendida como tão relevante, no caso iorubá a organização linguística e social se deu pela diferenciação etária. Nas relações sociais, as pessoas se distinguiam pela utilização de pronomes que marcavam diferenças entre uma pessoa mais idosa e uma outra mais jovem, por isso tem-se a utilização do pronome wóṇ para se referir a uma pessoa de mais idade, sem distinção entre uma mulher ou um homem. A questão etária detinha tamanha importância que no âmbito familiar, por exemplo, os primogênitos possuíam uma relação hierárquica superior aos mais novos – estes inclusive, poderiam assumir atividades divinadoras-sacerdotisas por conta de sua ordem do nascimento (OYĚWÙMÍ, 2021, p.
129). Em relação ao matrimônio, os que recém chegavam às famílias, como as noras e os genros, estavam automaticamente em um posto mais baixo e por isso tal hierarquia estava sempre em uma perspectiva relacional. Conforme a autora, o sistema de senioridade foi deslocado da iorubalândia a partir da introdução do sistema europeu de hierarquia sexual em que as mulheres foram postas como inferiores e subordinadas aos homens daquela sociedade.
É necessário destacar uma clara contribuição de Oyěwùmí em seu trabalho envolvendo a crítica de universalidades das dinâmicas culturais e sociais. Muitas produções envolvendo o mundo africano não levavam em consideração as especificidades de cada região, tornando muitas pesquisas como um amontoado de teorias ocidentais aplicadas em contextos totalmente díspares. A autora consegue demonstrar que aplicar compreensões ocidentais de gênero em uma sociedade iorubá, movida pelo sistema de senioridade, não é nada proveitoso – bem como generalizar tal sistema como sendo próprio de toda uma África pré-colonial, é negligenciar a amplitude cultural do continente. Uma das observações de Oyěwùmí é que se ela partisse da abordagem de pesquisa com o pressuposto da mulher como categoria social, isso a impediria de fazer certos questionamentos sobre a sociedade iorubá, pois as perguntas já carregariam conceitos ocidentalizados pré-estabelecidos. Temse aí a necessidade de desenvolver questionamentos de pesquisa que partam das evidências particulares dessas sociedades e por isso “não se trata de quais perguntas são feitas, mas de quem as faz e por que as faz.” (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 258) Ainda que a pesquisadora tenha contribuído de forma significativa para os estudos de gênero e estudos africanos, diferentes críticas sobre seu trabalho foram elencadas ao longo dos anos posteriores à publicação inglesa. Wanderson Nascimento, tradutor da edição brasileira da obra, preocupado em apontar as potencialidades filosóficas do trabalho de Oyěwùmí, menciona que a antropóloga e pesquisadora argentina Rita Segato, ao estudar o gênero na tradição iorubá dentro de uma dimensão religiosa, percebeu que os estudos da autora nigeriana não ofertavam evidências para as descrições de seres sem gênero e sem características humanas no que concerne as divindades. Segato (2003) pensa que é necessário investigar não só a língua e as instituições que são comumente abordadas por Oyěwùmí, mas também as projeções e as manutenções dos sistemas de crenças na iorubalândia. Além disso, a autora critica a falta de fontes etnográficas, um problema envolvendo a dimensão biológica do dimorfismo na mitologia iorubá apontado por Oyěwùmí e uma exclusividade das anafêmeas na execução do papel de aya dentro de linhagens familiares que teria passado despercebido pela autora.
Bibi Bakare-Yusuf (2003), pesquisadora nigeriana, assim como Oyěwùmí, defende que o feminismo ocidental foi responsável por impor experiências e estruturas para sociedades não ocidentais. O patriarcado, por exemplo, ignoraria toda a organização de mulheres e desconsideraria toda a autoridade feminina nos mais diferentes âmbitos de sociedades pré- coloniais. Todavia, Bakare-Yusuf também criticou Oyěwùmí no que concerne a língua em sua relação com o processo de significação e principalmente a compreensão desta última em relação às dinâmicas de poder, pois para Bakare-Yusuf, a senioridade não era a única relação de poder em funcionamento nas hierarquias iorubás.
Seria a linguagem, um demonstrativo fiel da realidade social na iorubalândia? De qualquer modo, “A invenção das mulheres” é uma leitura instigante de uma autora nigeriana sobre sua região de origem na África, produzida em uma conjuntura que comumente se desconsiderava produções e teorizações próprias do continente. Não há dúvidas de que a obra de Oyèrónkẹ´ Oyěwùmí propicia importantes debates e reflexões acerca das consequências do colonialismo que não só afetaram diversas instâncias políticas e econômicas, como as de cunho social e cultural também. A autora, destaque na sociologia africana contemporânea e nos estudos de gênero, propõe importantes reflexões sobre os impactos dos processos modernos impostos pela colonialidade, como a genereficação e a racialização constitutivas de hierarquias sociais. Dessa forma, Oyěwùmí consegue com êxito discutir análises específicas sobre sua comunidade, distanciando-se de argumentações ocidentais e discutindo a subordinação das mulheres a partir do contato destes povos com europeus em uma comunidade que até então não detinha um sistema de gênero institucionalizado.
Notas
1 Oyěwùmí menciona que culturas africanas foram desprezadas de diversas maneiras e uma delas, é o que aautora denomina por teoria amalgamada da África – responsável por homogeneizar de maneiradesenfreada diferentes sociedades do continente.
2 A autora pontua que não há vocábulo para homem e mulher na língua iorubá, mas há os termos “obìnrin”e “ọkùnrin” que não são binariamente contrários, somente expressam uma variação anatômica. Por umaquestão de adequação e tradução, Oyěwùmí optou pela utilização dos termos “anafêmeas” e”anamachos”.
3 A autora compreende a senioridade a partir da maioridade como eixo articulador da hierarquia social.
Referências
BAKARE-YUSUF, Bibi. ‘Yorubas don’t do gender’: a critical review of OyeronkeOyewumi’s The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. In: VVAA. African Gender Scholarship: Concepts, Methodologies andParadigms. CODESRIA Gender Series. Dakar: CODESRIA, 2004, p. 61-81.
NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí: potências filosóficas de umareflexão. Problemata – Revista Internacional de Filosofia, v. 10, p. 8-28, 2019.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano paraos discursos ocidentais de gênero. tradução wanderson flor do nascimento. – 1. ed. – Riode Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
SEGATO, Rita. Género, política e hibridismo en la transnacionalización de la culturaYoruba.
Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, no 2, 2003, p. 333-363.
Resenhista
Nathan Lermen – Mestrando em História Global pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UniversidadeFederal de Santa Catarina (UFSC). E-Mail: lermen.nathan@gmail.com
Referências desta resenha
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano paraos discursos ocidentais de gênero. tradução wanderson flor do nascimento. – 1. ed. – Riode Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. Resenha de: LERMEN, Nathan. Oyèrónke’ oyëmí e a construção do gênero na uorubalândia. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.19, n.1, Janeiro / Junho de 2022. Acessar publicação original.