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A História Global e as fronteiras na Antiguidade | Fronteiras – Revista Catarinense de História | 2022

Detalhe da Estela de um mercenário em Pátiris (2134–2040 a.C.) | Imagem: Wikipédia

Entre as grandes rupturas culturais do final do século XX, a crise do eurocentrismo – entendido como a cosmovisão que situa a modernidade ocidental como modelo e destino da história universal – foi a que teve mais efeitos no campo historiográfico global. As diferentes áreas do campo reagiram de modos particulares: enquanto a História Econômica e comparada reviu a centralidade da Europa na história mundial (revisão exemplificada na corrente intelectual do ReOrient), a História Social buscou ressaltar a imbricação entre estruturas e agência dos grupos subalternos tanto nas sociedades, quanto nas memórias ocidentais. A História Cultural, por sua vez, ressaltou as tensões implicadas na construção de identidades e representações sociais tais como “civilizado” ou “colonial” (como nas abordagens pós- e decolonial), e a História Ambiental reelaborou as relações entre sociedade e ambiente para além do discurso da “conquista da natureza” ou do “lamento da degradação”.

Neste contexto, novas áreas emergiram, como a História Global, cuja missão de criticar o eurocentrismo e o internalismo metodológico orienta os mais diversos estudos, das macro comparações ao estudo das “micro globalizações”, das redes aos sistemas-mundo, dos impérios em contato aos viajantes, dos processos transnacionais aos fenômenos ambientais globais. Central no projeto da História Global é a crítica das fronteiras projetadas pelas sociedades contemporâneas sobre o passado, sob o efeito dos estados nacionais e suas comunidades imaginadas, o que desvinculou as sociedades de seus contextos concretos. A História Antiga dialogou com estas perspectivas, resultando na promoção de três abordagens significativas: a história dos grupos subalternos antigos, a história da recepção e usos da Antiguidade no mundo contemporâneo, e a história das conexões e contatos entre as várias sociedades antigas em seus contextos mais amplos. Nestas três abordagens, o problema das fronteiras é central e se desdobra em múltiplos aspectos, fronteiras sociais e espaciais, internas e externas, trazendo a necessidade de se revisitar conceitos e metodologias que tomavam este termo como dado. Assim, é preciso refletir como definir as fronteiras entre grupos sociais, como dominantes e subalternos, por exemplo, ou entre segmentos de grupos subalternos. De que maneira Antiguidade foi utilizada em contextos de fronteira no Ocidente, como a América Latina contemporânea? Em relação à História Global, fronteiras como “mundo romano”, “Egito”, “mundo grego”, “África”, estão além da projeção dos estados nacionais sobre o passado antigo, mas de que maneira podemos entender esses limites tendo em vista uma visão êmica de fronteira? Quais eram os contextos nos quais as sociedades se interagiam? Qual era a relação entre fronteiras internas e externas às sociedades? A integração a contextos maiores potencialmente eliminava as fronteiras? O objetivo deste dossiê é refletir sobre os problemas associados aos conceitos de fronteira na Antiguidade.

Nas últimas décadas o termo fronteira ganhou novos contornos teórico-metodológicos, discutido em diversas disciplinas das humanidades. No mundo globalizado contemporâneo, o esforço de dissolver fronteiras teve como reação o fortalecimento de muitas outras. Se as barreiras geográficas tendem a se diluir pela facilidade de deslocamento, comunicação e trocas, presenciamos também um esforço de manutenção de antigas fronteiras: linguísticas, culturais, sociais e também políticas. O presente dossiê aborda, a partir de diferentes perspectivas e recortes, a diversidade de métodos e problemas relacionados às múltiplas fronteiras geradas nos processos de integração no mundo antigo.

Abrindo o dossiê, dois textos discutem a importância da reflexão teórica na constituição crítica tanto dos objetos, quanto dos próprios campos de pesquisa, sob o risco, ao não o fazer, de reificar projeções contemporâneas fortemente comprometidas com perspectivas colonialistas a respeito do passado. O problema do multiculturalismo e a (suposta) suspensão das fronteiras está no centro da discussão de Christian Langer, em Multiculturalism and the Multicultural in Ancient Egypt: A Preliminary Assessment. A partir da leitura da historiografia egiptológica contemporânea, o autor argumenta que a representação do Egito antigo (em diferentes períodos) como um estado “multicultural” e sem fronteiras está profundamente ligada à autorrepresentação das democracias liberais do Norte Global anglófono, enquanto que a análise das fontes aponta para as tensões entre os projetos egípcios autocentrados, visíveis nos discursos e na iconografia oficiais, e práticas de contato cultural que poderiam ter desfechos opostos, como revela o caso das deportações. Assim como grupos deportados para o Egito poderiam ser mantidos segregados, grupos deportados pelo Egito para outras áreas poderiam produzir sociedades multiculturais. Rodrigo Cabrera e Leila Salem, por sua vez, em Una (historio)grafía para los Estudios del Próximo Oriente antiguo desde el Sur Global, abordam a correlação entre processos de configuração de fronteiras disciplinares e geopolíticas a partir do estudo da trajetória da assiriologia e da egiptologia nos séculos XIX e XX, com foco na apropriação de tais fronteiras na Argentina e no Brasil. Se no século XIX as duas disciplinas estão intimamente ligadas à expansão do capitalismo e à construção de um “oriente” atrasado, argumentam os autores, sua apropriação por estudiosos do Sul Global não foi unívoca. Enquanto alguns estudiosos, como o argentino Abraham Rosenvasser, poderiam se manter fiéis aos parâmetros tradicionais ao mesmo passo que construíam as bases para a profissionalização dos Estudos Orientais locais, outros, como o brasileiro Ciro Flamarion Cardoso, poderiam promover leituras críticas fortemente autoconscientes dos pressupostos teóricos e metodológicos do campo.

Em seguida, três artigos discutem o problema da circulação de formas culturais para além das fronteiras étnicas, políticas ou civilizacionais. Em Gemas Mágicas Romanas e Identidade Cultural no Mediterrâneo Antigo, Ronaldo Gurgel Pereira discute o problema do sincretismo a partir da circulação de gemas mágicas, cujo movimento articulava tradições culturais e religiosas bastante distintas, como é o caso dos cultos egípcios e greco-romanos, o mitraismo e o judaísmo. Em um certo sentido, como aponta o autor, a magia, enquanto espaço de negociação, permitia uma maior tolerância em relação à diferença e aos elementos culturais “externos” a um dado grupo, construindo porosidades nas fronteiras culturais e religiosas. Já Érika Vital Pedreira, em Exército Romano: Um agente do Emaranhamento Cultural, analisa o contato e circulação cultural a partir da evidência epigráfica das dedicações a deusas femininas plurais – em especial as Matronae Aufaniae, as deusas Deae Galliae e à deusa Coventina – encontradas em regiões onde legiões romanas estiveram estacionadas. A autora argumenta que tais cultos tanto existiam nos diversos locais de origem dos soldados, quanto foram adaptados e alterados em função dos contextos religiosos locais de chegada, produzindo com isso um “emaranhamento cultural” no âmbito do império. Finalmente, Marwan Kilani discute o empréstimo de palavras entre o Egito e a região do Levante durante o Reino Novo (1550–1069 AEC) como uma maneira de compreender outros aspectos da dominação egípcia na região. A partir de documentos em acadiano, ugarítico, fenício e o hebraico bíblico, ele demonstra a complexidade das negociações sociais e políticas a partir do empréstimo de palavras. Sua metodologia é resultado de paralelos com outros períodos históricos, com estudos de caso oriundos da colonização ibero-hispânica nas Américas e a Europa medieval. Nessa linha, o autor discute a extensão da dominação egípcia no Levante a partir de critérios sociais (i.e. prestígio) e o domínio político, que articulam fronteiras distintas, mas que operam simultaneamente.

Por fim, três textos exploram o problema da determinação das fronteiras entre os grupos sociais em contextos concretos. A historicidade das fronteiras culturais é o centro do texto de Pedro de Toledo Piza, em Cristãos e judeus: Questionamentos teórico-metodológicos sobre fronteiras de identidade na Antiguidade. A partir da análise das principais fontes utilizadas pela bibliografia para sustentar uma oposição radical entre judeus e cristãos desde a fundação do último, o autor demonstra como os recentes desenvolvimentos historiográficos – em particular a elaboração acadêmica do Holocausto, a incorporação dos Manuscritos de Qumram e a consideração da importância da oralidade – levaram a uma reavaliação desta oposição. Se por um lado, os manuscritos documentam a grande diversidade religiosa própria do judaísmo, por outro a relativização da centralidade dos textos bíblicos na definição das comunidades judaicas aponta para uma indefinição estruturante, ligada ao carácter relacional e contextual das marcações das diferenças entre judeus e cristãos, pensados seja como parte de um mesmo grupo em certas circunstâncias (como na celebração da Páscoa), seja como grupos distintos ou opostos em outras (como nos textos de João). Por sua vez, Lena Tambs propõe a análise de 16 arquivos familiares de Pathyris, localizada ao sul do Egito, entre 186-88 AEC, a partir dos aportes teórico-metodológicos da Teoria de Redes (Social Network Analyses, SNA). A autora explora diferentes níveis e aspectos dessas redes familiares e da comunidade, incluindo variáveis como status social, etnia e gênero, identificando a porosidade de fronteiras sociais e simbólicas na comunidade em Pathyris. A partir dos gráficos gerados pelo software Gephi, é possível visualizar tendências de comportamento de indivíduos e grupos no estabelecimento de vínculos sociais, que se desdobram em diversos tipos de relações. Esse tipo de abordagem permite repensar a noção de fronteira a partir de seu aspecto relacional num contexto multiétnico como o do Egito Ptolomaico. Finalmente, o problema das fronteiras internas à sociedade é discutido por Matias Alderete, em El antiguo Egipto como artefacto histórico: fantasías y distinción social en los avisos publicitarios de la prensa porteña de inicios del siglo XX, a partir de fontes publicitárias que se referiam ao Egito Antigo, veiculadas em Buenos Aires no início do século XX. Segundo o autor, a construção publicitária da imagem do Egito como um espaço quase mítico, a um passo do exótico e sensual, ocorreu através do reforço das fronteiras entre homens e mulheres, brancos e não brancos, e cidade e campo: aos consumidores era sugerido que produtos associados ao Egito Antigo – feminino, urbano e branco – trariam sofisticação e, consequentemente, seriam marcadores de distinção social.

Ainda compondo o dossiê se encontra a resenha da obra Global Classics, de Jacques Bromberg, escrita por Fábio Morales. O resenhista explicita a proposta do autor de construção de um novo campo de Estudos Clássicos a partir de três conceitos – transfronteiridade, transhistoricidade e transdisciplinaridade – apontando suas contribuições e limites para a crítica do eurocentrismo, do internalismo, e das injustiças sociais.

Os textos apresentados no dossiê, de pesquisadores de diversas partes do mundo e com diferentes áreas de pesquisa, demonstram que o tema é necessário também para se repensar a colaboração acadêmica. Apesar das fronteiras que dificultam uma cooperação mais efetiva, como a barreira linguística, o acesso às fontes e boas bibliotecas, esperamos que os trabalhos aqui reunidos possam inspirar futuras pesquisas e reflexões sobre as fronteiras no mundo antigo e sobretudo, também sobre a nossa prática acadêmica. Os estudos sobre a Antiguidade e suas fronteiras, incluindo as de ordem epistemológica, devem ser um convite para repensar modelos teóricos, metodologias e práticas, dentro e fora do nosso meio. Discutir fronteiras deve ser uma oportunidade para refletir não sobre o que nos separa. Ao contrário, em tempos difíceis em tantas partes do mundo, precisamos ter clareza do que nos aproxima. A história do mundo antigo pode ser um bom caminho para esse exercício.

Completando a presente edição, a Fronteiras: Revista Catarinense de História traz mais quatro artigos e uma entrevista. O primeiro deles é o texto de Vinícius Silveira Luz, Memórias do mar: modernização e segregação em Florianópolis, Santa Catarina, que analisou o desenvolvimento e a modernização da cidade de Florianópolis, através das memórias de um pescador da comunidade periférica da Tapera, no sul da Ilha de Santa Catarina. A partir dos relatos fornecidos foi apresentado o processo de modernização da cidade como sendo responsável pela elitização dos espaços da cidade e a marginalização espacial das populações trabalhadoras e pobres.

No artigo O ‘Comitê Intergovernamental para a Promoção de Retorno de Bens Culturais aos Países de Origem ou sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita’ da UNESCO durante os anos 1980: constituição e pedidos de restituição de bens culturais de autoria de Vinícius José Mira, Fernando Cesar Sossai e Diego Finder Machado discutiu a constituição e os pedidos de restituição de bens culturais interpostos ao “Comitê Intergovernamental para a Promoção de Retorno de Bens Culturais aos Países de Origem ou sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita” (ICPRCP) na sua primeira década de funcionamento (1980-1989). O texto trouxe importantes reflexões a respeito dos posicionamentos do Comitê, assim como problematiza o seu papel em pedidos de restituição interpostos ao ICPRCP no transcurso dos anos 1980.

Na sequência temos o texto de Claudio de Majo e Claiton Marcio da Silva. No texto intitulado como Para um estudo dos bens comuns no Brasil: História, Percursos Disciplinares e Oportunidades Presentes, os autores apontam possíveis percursos disciplinares e metodologias para o estudo dos bens comuns no contexto acadêmico brasileiro, apontando uma perspectiva ambiental ao presente, tecendo uma análise crítica sobre as relações entre bens comuns naturais e Ecologia Política.

Rubens Arantes Correa foi autor do texto Américo de Campos: jornalismo e política na São Paulo da segunda metade do século XIX, que abordou a trajetória de Américo Brasílio de Campos (1835-1900), jornalista paulista que teve atuação em importantes veículos da imprensa escrita na capital de São Paulo. O texto mostra o engajamento intelectual e político dos chamados homens de letras no contexto de crise do sistema político monárquico: suas formas de atuação, suas redes de sociabilidade, seus pertencimentos geracionais e suas filiações ideológicas.

Finalizando a edição, temos a instigante entrevista do professor e pesquisador Fernando Seffner cedida a Robson Ferreira Fernandes. Na entrevista, temas latentes são abordados, como a “ideologia de gênero”, que se pauta nas narrativas e discursos religiosos, conservadores e reacionários, travando embates com os estudos de gênero, o ensino e a História. A entrevista foi realizada no dia 15 de outubro, data representativa por ser “o dia do professor”. O fato é rememorado por Seffner, que diz fazer questão de celebrar a data compartilhando a história de Antonieta de Barros, a parlamentar negra pioneira que fundou o chamado “dia do professor”. Antonieta de Barros é lembrada por ele na entrevista por acreditar ser necessário “fincar uma memória que tem um dado de reparação histórica que atribui o protagonismo para dessa mulher”. As discussões da entrevista são profundas e atuais, assim com o dossiê e os textos do presente número da revista.

Boa a leitura!


Organizadores

Alex Degan

Fabio Morales – Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: fabio.morales@ufsc.br https://orcid.org/0000-0002- 9942-5011

Thais Rocha da Silva

Samira Peruchi Moretto – Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História.


Referências desta apresentação

DEGAN, Alex; MORALES, Fabio; SILVA, Thais Rocha da; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras – Revista Catarinense de História, n. 40, p. 4-9, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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