A experiência zapatista. Rebeldia, resistência e autonomia | Jérôme Baschet

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Jérôme Baschet | Imagem: Le Comptoir

ENTRE A PALAVRA-PENSAMENTO E A PALAVRA-AÇÃO ZAPATISTA: A BUSCA PELA AUTONOMIA

O levante zapatista tem sido uma forte experiência de luta indígena contra o esquecimento, o subjugo e a opressão colonial e capitalista, e a favor da autonomia, da memória e libertação coletiva entre os povos. A partir desta perspectiva, tem-se a proposta de construir um futuro e mundo em que todos caibam e seus próprios modos de vida em seus territórios. A insurgência zapatista, que ocupa o território mexicano desde 1994, tem como foco principal a construção de uma luta planetária a partir de um Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), hoje um movimento político de resistência e de luta comum pela causa indígena em uma organização comunitária e, por sua vez, o esforço de estabelecer redes planetárias de emancipação à dominação do capitalismo neoliberal, com uma renovada perspectiva do marxismo.

A experiência zapatista: rebeldia, resistência e autonomia, escrito pelo historiador Jérôme Baschet (2021), é também fruto de uma coletânea de obras sobre a insurgência do movimento zapatista, lançada pela N-1 Edições, cuja proposta do conjunto de obras é apresentar a experiência e a luta histórica zapatista e seu pensamento político e coletivo, a fenda que cria condições de possibilidades para um mundo justo e igualitário, uma fenda que está em permanente processo para abrir o “muro da história”, manter viva a memória e os modos de ser e estar no mundo a partir de diferentes modos de vida e temporalidades, na contramão daquelas impostas pelo capitalismo neoliberal. Por isso, como alerta Galeano (2021), “é preciso continuar sem descanso. Não apenas para aumentar a fenda, mas, sobretudo, para que ela não se feche” (Galeano, 2021, p. 31).

Assim, apresento nesta resenha o livro de Baschet (2021) no diálogo com o pensamento zapatista, desde seu surgimento como movimento armado, com o “já basta!” de 1° de janeiro de 1994, aos dias atuais, no sentido de compreender como os povos têm reescrito o seu protagonismo na História, sobretudo em contextos marcados por conflitos e lutas que procuram definir e delimitar o lugar, histórico e social, para o desenvolvimento de outras formas de vida.

O caminho para tecer uma rede planetária de lutas na perspectiva zapatista é traçado por Baschet (2021) em diálogo com os escritos do Subcomandante Insurgente Galeano, aliado ao primor de sua narrativa literária e inventiva e ao estilo de uma escrita política e analítica dos eventos e causas, caro a todo historiador, como é o caso de Baschet. O livro se divide por uma breve introdução, um generoso prólogo e seis partes, contendo capítulos e subcapítulos.

A experiência zapatista é traduzido e lançado no Brasil em um contexto em que o país vive uma de suas piores crises democráticas desde o regime militar. Traduzido por Domingos Nunez, trazer a experiência zapatista em um Brasil enlutado e devastado por uma crise social e política como fruto de um sistema neoliberal e sua lógica entreguista, e governado por um regime fascista, é também um convite a uma reflexão sobre as formas políticas e coletivas de organização das sociedades indígenas que, durante muito tempo, têm, nas palavras de Galeano (2021, p. 40), transformado “dor em raiva, raiva em rebeldia e rebeldia em amanhã”, para transformar realidades de forma autônoma e coletiva. A autonomia enquanto filosofia e modo de vida das e dos zapatistas, como descrita por Baschet (2021), logo se assemelha à sociedade sem Estado, observada e profusamente trabalhada pelo antropólogo Pierre Clastres (2017 [1974]) sobre as sociedades indígenas da América do Sul, defendendo a tese de que estas recusam o poder e a ação do Estado nas suas formas de organização social, sem a “relação de comando-obediência”, pois “a vida do grupo como projeto coletivo” não está baseada na relação comando/obediência e sem a coerção como essência do poder político (Clastres, 2017 [1974]).

Estamos, assim, diante da referência que é possível discernir a partir da “palavrapensamento zapatista”, que produz conceitos e imagens para “dar conta de modo sintético das dinâmicas do mundo capitalista”, conforme destaca Baschet (2021, p. 248). Esse conceito pode sugerir uma filosofia fundamental para compreender a perspectiva e a concepção política dos modos de organização do EZLN, no entendimento da palavra como referência ao pensamento e à memória, expressando a criação de uma rede planetária de resistência e de luta. O desdobramento dado pelo autor perpassa pela “palavra-pensamento zapatista”, como fio condutor para tecer a trajetória do Zapatismo. Devemos, aqui, distinguir outro conceito que se desdobra a partir daquele: a “palavra-ação zapatista”, que é, por assim dizer, formada por uma relação de práticas e ações que têm em sua própria medida a condensação da teoria.

Dito de outro modo, é um compósito entre teoria e prática, entre o pensamentoação e o pensamento-palavra que, juntos, combinam uma prática de diferentes ações que se combinam em uma organização coletiva. Nesse sentido, como afirma Galeano (2021, p. 48), é a construção de um pensamento crítico que parte do princípio “nem teoria sem prática, nem prática sem teoria”. Assim, segundo descreve Baschet (2021), a “palavra-pensamento zapatista” procura, por um lado, romper com os fundamentos da modernidade, ao mesmo tempo em que cria uma “aliança estratégica entre passado e futuro” para reconstruir o tempo da história destruído pela “tirania da mercadoria” capitalista. Por outro, o pensamento-ação reivindica o passado e o presente desafiando a dominação neoliberal com a mobilização e a criação de redes de apoio, de modo a fortalecer de maneira progressiva a luta, a resistência e a autonomia política.

É nesse sentido que, na primeira parte do livro, A autonomia é a própria vida do povo, que o autor irá exprimir a história da construção da autonomia nos territórios zapatistas, que se fundamenta na crítica ao capitalismo neoliberal. Por sua vez, pensar em uma “comunidade politicamente autônoma”, na esteira de Clastres (2017 [1974], compele-nos a uma reflexão das implicações estruturais dessa mesma comunidade e de suas formas de organização política. A “autonomia”, escreve Baschet (2021), “é a palavra com qual as e os zapatistas sintetizam sua experiência e designam o que estão construindo nos territórios rebeldes de Chiapas” (Baschet, 2021, p. 77). Por conseguinte, o autor explora os “aspectos concretos” da construção da autonomia entre as e os zapatistas, como noção que não passa pelo Estado e que se propõe a formar uma luta anticapitalista, ou, no dizer da filosofia zapatista, contra a IV Guerra Mundial gerada pelo sistema capitalista.

É nesse sentido que se expressa a autonomia dos povos indígenas de Chiapas como maneira de potencializar as formas de vida a partir das dimensões de “comunidade, terra e território”, pois, o avanço e a dominação capitalista destroem pouco a pouco outras formas de vida, no dizer do autor, ou, conforme os estudos da virada ontológica na Antropologia, outras ontologias de vida. Um debate que passa pelos conceitos do Antropoceno e Capitaloceno. Em suma, o primeiro seria “como fundamentou a afirmação geral de que a espécie humana é agora o geo dominante e, portanto, merece sua própria idade geológica em evidências estratigráficas” (Povinelli, 2017, p. 04). Por conseguinte, o Capitaloceno é “contado no idioma do marxismo fundamentalista, com todas as suas armadilhas de Modernidade, Progresso e História”, segundo descreve Haraway (2016, p. 49), sendo um ditame do Antropos e do Capital para o aumento das escalas de destruição planetária, extinção e extermínios.

Dessa maneira, é que a luta das e dos zapatistas se fundamenta na criação de “formas de vida autodeterminadas”. Entretanto, conforme afirma Baschet (2021, p. 79), o avanço da autonomia não significa viver fora do sistema capitalista, pois se encontram “sob a constante pressão da síntese capitalista, que obstrui sua capacidade de ação, multiplica as agressões de todo e influencia suas maneiras de viver”. O que está em jogo, no entanto, é criar estratégias de se “desvencilhar da heteronomia da mercadoria e fortificar formas de vida autodeterminadas” (Baschet, 2021, p. 79). Um exemplo para essa questão trazida pelo autor é o fortalecimento das práticas agroecológicas e da agricultura campesina nos territórios zapatistas, de maneira a impedir avanços da produtividade agroindustrial. Há, entre as principais formas da autonomia, a organização própria de saúde e educação nos territórios. Uma saúde autônoma que articula medicina ocidental e medicina tradicional e um sistema educacional que integra em seu projeto pedagógico a mobilização coletiva para a construção da autonomia.

A extensão dessa rede coletiva conjuga a transformação e as relações de gênero nos territórios. Conforme descreve o autor, “a transformação da vida das mulheres não é um aspecto secundário da luta zapatista, mas uma de suas dimensões essenciais” (Baschet, 2021, p. 92), ou seja, dá-se uma extrema importância da participação das mulheres na luta zapatista, desde o surgimento do EZLN, e como elemento significativo para o fortalecimento da autonomia. Ao final desta parte do livro, Baschet (2021), apresenta a lógica do autogoverno, que é o “mandar obedecendo”, sem a definição do mando/obediência que rege as relações entre governo/povo. Essa formulação, que parte de uma leitura não horizontal da autonomia zapatista, não se compara ao poder do Estado que, nas palavras do autor, “é um mecanismo de separação que priva a coletividade de sua capacidade de organização e decisão para concentrá-la em um aparelho e um grupo agindo em função de interesses próprios” (Baschet, 2021, p. 114). É, desse modo, a busca por uma potência coletiva para que outras formas de vida sejam desenvolvidas fora do âmago da destruição capitalista.

A segunda parte do livro, Podemos governar a nós mesmos¸ segue o argumento da autonomia zapatista, refletindo sobre a força coletiva que há entre os e as zapatistas como expressão de outra forma de fazer política: “uma política de baixo que luta para construir outros mundos, distanciando-se da forma-Estado e das lógicas da hegemonia” (Baschet, 2021, p. 135). A partir dessa concepção, o autor desdobrará os efeitos da “palavra-ação zapatista” na luta anticapitalista para a construção de uma auto-organização. Contudo, é preciso distinguir das lógicas da política clássica, “que pensa a partir de cima”, das propostas zapatistas, “que buscam dar corpo a uma “política de baixo” (Baschet, 2021, p.135). Na leitura do pensamento do EZLN, o autor faz a distinção entre poder sobre e poder fazer. O primeiro é uma relação de dominação, enquanto que o segundo concerne a uma capacidade de ação e criação de forma coletiva ou individual. Baschet (2021) argumenta que essa perspectiva rejeita o argumento segundo o qual a renúncia da tomada de poder “implicaria ser condenado à impotência”.

Trata-se, nesse caso, não tomar o poder, mas criar condições para uma organização da sociedade, o que nos remete à já citada antropologia política de Clastres: “o poder mantém uma relação privilegiada com os elementos cujo movimento recíproco funda a própria estrutura da sociedade” (Clastres, 2017 [1974], p. 52), ou seja, é a premissa da impotência da chefia. Assim, a outra política ou, na “palavra-pensamento” zapatista, o rompimento da lógica hegemônica das relações, viável com a arte da escuta e com o respeito aos espaços dos demais. Os dois eixos da “política de baixo”, assim, é a “capacidade de organização da gente comum” e a “construção de espaços autônomos”, repensando a política com base na ética e na dignidade compartilhada (Baschet, 2021, p. 160), para pensar, conforme aponta o subtítulo dessa segunda parte do livro, “uma política completamente outra, de baixo e à esquerda”.

Essa perspectiva permite ao autor introduzir como as e os zapatistas compreendem a construção territorializada da autonomia. Nesse sentido, a terceira parte de A experiência zapatista, intitulada Pela humanidade e contra o capitalismo, permite-nos acessar às dimensões da luta em seu sentido pleno, em uma escala que reúne todos os povos diante de um inimigo comum: o neoliberalismo, forma do capitalismo globalizado. Podemos, com efeito, entender que as lutas, ainda que distintamente localizadas, “devem ser situadas nesse horizonte planetário”, em dinâmicas que são entendidas como uma guerra, que é, na compreensão zapatista, a IV Guerra Mundial mobilizada entre o “capitalismo e a humanidade”, conforme descreve Baschet (2021). Parte, daí, o esforço de explicar, nessa terceira parte, a guerra como característica do capitalismo, ocupando uma centralidade na palavra-pensamento zapatista. Para isso, o autor considera algumas metáforas nas quais se apoiam determinada abordagem, que é a metáfora da Hidra, da tormenta e da fenda. A primeira remete ao mito grego, mas, diferente deste em que quem vence a Hidra é uma figura individual, Hércules, na perspectiva zapatista para vencer a Hidra Capitalista é preciso um esforço coletivo. Nesse sentido, “a metáfora da Hidra permite visualizar ao mesmo tempo a multiplicidade dos aspectos da dominação capitalista e seu caráter unitário e sistêmico” (Baschet, 2021, pp. 221-222), definindo a relação entre o sistema dominante capitalista e quem o combate como em uma guerra.

Por sua vez, a metáfora da tormenta seria a catástrofe como consequências da Hidra capitalista. Aparece, então, mais uma vez a relação com o conceito do Antropoceno, como descrito acima. Mais precisamente, a tormenta está vindo para devastar o futuro, diferente do Antropoceno, que destrói o presente e que, ainda assim, as condições de possibilidade de futuro. A tormenta é, assim, sintoma de uma crise estrutural do capitalismo, e não uma crise terminal e tampouco cíclica (que periodicamente dá lugar a novos ciclos de acumulação). Trata-se, outrossim, de “uma dinâmica de crise que se torna tendencialmente permanente, integrada às mesmas formas de acumulação” (Baschet, 2021, pp. 227-228), não sendo uma crise somente do ponto de vista econômico, mas que afeta diretamente as “estruturas do sistema-mundo capitalista”, ainda segundo descreve o autor.

A fenda, como terceira metáfora para a luta contra o sistema capitalista, é o gesto de ir “raspando, mordendo, chutando, golpeando com as mãos e com a cabeça, com o corpo o todo”, segundo Galeano (2021, p. 28), “até causar na história a exata ferida que somos”. Como chama atenção Galeano (2021), é um muro que não se regenera sozinho e é preciso muita luta para que a fenda não se feche, pois com “perseverança e obstinação, pode abrir um caminho”, como completa Baschet (2021, p. 233), na materialização de outros mundos possíveis e com espaços autônomos sem as “dinâmicas destrutivas do capitalismo”. É partir da palavra-pensamento zapatista, que produz conceitos e imagens, que a luta tem sido pela humanidade e contra o capitalismo.

UM MUNDO ONDE CAIBAM MUITOS MUNDOS

Essa quarta parte do livro apresenta o estilo de unidade do levante indígena nos territórios de Chiapas, para levantar a constituição e a formação do movimento, refletindo sobre o modo como a ação política e potência coletiva adentra as redes com outros povos, no entrelaçamento do indígena, do nacional e do planetário, sem falar na mobilização de aliados. O autor argumenta, nesse sentido, a concepção política de luta indígena, a multiplicidade de mundos e a construção de uma comunidade que não seja somente territorializada, mas planetária, e, por fim, sair do sistema capitalista e da modernidade de forma a constituir um plano de igualdade e superar a oposição entre o individual e o coletivo.

Como instrumento que encoraja e engaja a luta, a autonomia, como vimos, se dá na rearticulação de diferentes forças coletivas, humanas e não-humanas, no esforço de construir e sonhar “um mundo onde caibam muitos mundos”. Nesse ponto baseia-se a concepção de luta indígena, em uma perspectiva de transformação que envolve a todas as formas de vida, e que “não quer ser somente indígena”, como destaca Baschet (2021, p. 261)2. O autor debate a importância de se considerar uma equivalência entre diferentes povos, como elemento principal entre as e os zapatistas, e evitar os perigos do etnicismo. “A luta zapatista é indígena, mas não apenas indígena. Ela sempre se propôs a ser uma luta nacional que não estabelece uma divisão intransponível entre indígenas e não indígenas” (Baschet, 2021, p. 262). Nessa direção, os aspectos étnicos não se sobrepõem a uma posição dentro do conflito pela busca da dignidade indígena. Essa conversão implica uma apropriação e aliança política com as causas dos povos. Em outros termos, podemos relacionar com a afirmação feita por Viveiros de Castro de que, no Brasil, “todo mundo é índio, exceto quem não é”.

É dessa maneira que a perspectiva de “um mundo onde caibam muitos mundos” se torna importante para a compreensão do pensamento zapatista, no entrelaçar da luta (ontológica) nacional e do planetário, para que outras formas de existência também sejam reconhecidas. Assim, não é (somente) uma questão que está estrita ao território, mas a outras formas de espacialidade em redes de relações que se exprimem de múltiplas maneiras. Um conceito que se aproxima dessa noção é o da multiplicidade das formas de vida humana e não-humana, uma pluralidade, em certo sentido, ligada ao conceito de cosmos. Na esteira do pensamento deleuziano, Viveiros de Castro (2018) descreve a multiplicidade como um constructo complexo na qual “não são as relações que variam, são as variações que relacionam: são as diferenças que diferem” (Viveiros de Castro, 2018, p. 123). Em suma, a multiplicidade, assim, é a pluralidade e a variedade, como das culturas, citando o exemplo dado pelo autor, e, para o zapatismo, é o pluriverso que considera as experiências humanas e não-humanas para articular um mundo onde todos caibam e uma construção do comum, “que adquire consistência através da multiplicidade das experiências, não a partir do postulado da unidade do humano” (Baschet, 2021, p. 286).

Para expandir a multiplicidade de mundos, contudo, é preciso deixar a “hegemonia do pensamento ocidental”, mais especificamente, os sistemas de representações construídas pela “modernidade”, segundo Baschet (2021), que são forjados pelos sistema-mundo capitalista. É preciso superar a combinação dos pilares da modernidade, conforme descreve o autor, entre os quais a concepção de História Universal, como um processo que se identifica com a ideia de progresso; o “individualismo possessivo e competitivo” e a separação entre o homem e a natureza. São proposições pós-modernas fortemente contrastadas pela palavrapensamento zapatista. No dizer de Baschet (2021, p. 294), “é necessário insistir apenas na importância do coletivo no pensamento zapatista”, pois é uma experiência constitutiva das comunidades indígenas em suas “condições concretas de vida”.

Decerto, não se trata de seguir o mesmo caminho do pensamento ocidental quanto à manutenção da história e da importância que é dada à memória. Assim, na quinta e última parte do livro, Nossa luta é pela história e contra o esquecimento, é que o autor faz uma reflexão sobre uma espécie de nova gramática dos tempos históricos construída pelo levante zapatista, de “reinvindicação da história, seu enraizamento em um tempo profundo carregado de múltiplas memórias” (Baschet, 2021, p. 319), para criar outras imagens do tempo e da história. O movimento zapatista é, com efeito, a própria rebelião da memória (“Somos o resultado de quinhentos anos de luta”). Nas palavras de Galeano (2021, p. 27), é convocar a história e uma memória que “foi forjada em séculos de silêncio e abandono, na solidão, no lugar do agredido por cores distintas, por diferentes bandeiras, por línguas diversas”.

Considerando o esquecimento como um dos aspectos da dominação e do subjugo colonial, o movimento zapatista entende que “lutar pela história e contra o esquecimento está estreitamente relacionado com a dimensão indígena de uma resistência de longa duração” (Baschet, 2021, p. 337), para desviar do padecimento da memória como gesto da dominação neoliberal, que destrói a consciência histórica e memória do passado, sobretudo com o seu presente perpétuo. Nesse sentido é que o esforço zapatista está em justamente recuperar a ação conjunta do passado e do futuro.

Nota

2 Grifos do autor.

Referencias

BASCHET, Jérôme. A experiência zapatista. Rebeldia, resistência e autonomia. Tradução Domingos Nunes. São Paulo, N-1 Edições, 2021

Clastres, Pierre. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. Tradução Theo Santiago. São Paulo: Ebu Editora, 2020 [1974].

GALEANO, Subcomandante Insurgente. Contra a Hidra Capitalista. Tradução Camila de Moura. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

HARAWAY, Donna. Tentacular Thinking Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene. In Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Duke University Press. 2016.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora, 2018.

POVINELLI, Elizabeth. The ends of humans. Anthropocene, autonomism, antagonism, and the illusions of our epoch. The South Atlantic Quarterly 116 (2): 293-310. 2017.


Resenhista

Iago Oliveira Porfirio da Silva – Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas, na linha de pesquisa Culturas da Imagem e do Som, pela Universidade Federal da Bahía (UFBA). E-mail: iagoporfiriojor@gmail.com  https://orcid.org/0000-0003-1902-1891


Referências desta Resenha

BASCHET, Jérôme. A experiência zapatista. Rebeldia, resistência e autonomia. Trad. Domingos Nunes. São Paulo: N-1 Edições, 2021. Resenha de: SILVA, Iago Oliveira Porfirio. A construção de um mundo onde caibam muitos mundos: a experiência zapatista. Revista Eletrônica Trilhas da História. Três Lagoas, v. 11, n. 22, p. 222-229, 2022. Acessar publicação original [DR]

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