A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955) | Rodlpho Gauthier Cardoso dos Santos
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Esta resenha se dedica à apresentação e discussão do livro “A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955)” de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos. Como resultado da tese de doutoramento do autor, defendida em 2015, a obra se destaca pela proposta original de analisar publicações de periódicos brasileiros que versavam sobre o peronismo, movimento político argentino que chegou à presidência do país em 1946, a partir da ótica opositora, isto é, do antiperonismo. O trabalho do historiador Rodolpho dos Santos insere-se no eixo de pesquisas e publicações brasileiras que investigam o peronismo em suas mais diversas facetas. Entre elas, a formação de quadros antiperonistas em países vizinhos revela o alcance do movimento de Juan Domingo Perón nas discussões políticas internas de outras nações. Nesse caso, o papel dos meios de comunicação na divulgação do antiperonismo brasileiro liga-se, no âmago das discussões sobre a história política renovada, à importância das mídias que, por um lado, exercem influência na sociedade e, por outro, veem-se controladas ou tuteladas pelos poderes públicos e estatais (JEANNENEY, 1996).
As fontes utilizadas pelo autor foram a revista semanal ilustrada “O Cruzeiro” e o diário vespertino “Tribuna da Imprensa”, ambos publicados na cidade do Rio de Janeiro. A revista carioca pertencia ao empresário Assis Chateaubriand, dono dos “Diários Associados”, conglomerado de empresas jornalísticas que chegou a ocupar o posto de maior corporação de imprensa da América Latina. Nos primeiros anos da década de 1940, “O Cruzeiro” enfrentara uma crise que ameaçou o encerramento de suas atividades. As contratações do jornalista David Nasser e do fotógrafo Jean Mazon representaram a renovação necessária para que a revista continuasse sendo impressa. Carlos Lacerda, político brasileiro que era filiado à União Democrática Nacional (UDN), trabalhava no jornal “Correio da Manhã”, no qual assinava uma coluna intitulada “Na tribuna da imprensa”. Após afastar-se do cargo por conta de desentendimentos internos, Lacerda fundou, em setembro de 1949, o diário “Tribuna da Imprensa”. Apesar de não possuir uma tiragem tão alta quanto à da revista ilustrada, o jornal de Lacerda conquistou uma notável influência entre os simpatizantes dos ideais udenistas1.
A temporalidade percorrida no trabalho de Santos abarca os anos de 1945 a 1955. No Brasil, o período é comumente conhecido como “república populista” (1945-1964) em uma nítida referência negativa à demagogia e manipulação das massas. O autor, todavia, assume a expressão “terceira república”, cunhada pela historiadora Ângela de Castro Gomes, para caracterizar o período democrático que, mesmo passível de críticas, contou com inegáveis avanços sociais e políticos. Já na Argentina, o período corresponde ao lançamento da candidatura de Juan Perón à presidência em 1945, à sua eleição em 1946 e ao derrocamento do líder justicialista por um golpe militar em setembro de 1955.
O livro está divido em cinco capítulos, além do prefácio, da introdução e conclusão. No primeiro capítulo, o autor dedica-se à análise das publicações antiperonistas em “O Cruzeiro” entre os anos de 1945 e 1950. Nesse período, a vinculação entre Juan Perón com o nazismo foi empreendida para deslegitimar o governo justicialista ao apontar uma faceta supostamente autoritária de seu líder. Cabe lembrar que Juan Perón participou do Grupo de Oficiais Unidos (GOU), setor que agregava militares conservadores, anticomunistas e antiliberais, que assumiu o poder em junho de 1943 através de um golpe militar. O governo do GOU ficou conhecido pela profunda censura e perseguição aos opositores, além de reafirmar a neutralidade argentina2 frente ao conflito mundial que se agravava na década de 1940. Não obstante, os militares flertavam com ideais do nazi fascismo, tendo o próprio Juan Perón viajado à Itália em 1939 para participar de treinamentos militares. Alguns autores defendem, inclusive, que o líder peronista prestava serviços de inteligência ao exército argentino, observando, desde a Itália, o desenvolvimento do governo fascista e da guerra3 (MERCADO, 2013). Expressões como “führer de Buenos Aires” e “Gestapo peronista”, assinaladas por Santos em sua investigação, manifestam que quiçá uma das principais maneiras de invalidar o movimento peronista era vinculá-lo às experiências nazifascistas em um contexto em que as atrocidades cometidas por ditos governos já eram amplamente conhecidas e rechaçadas.
Outra comparação que também perseguia o objetivo de desmoralizar o governo de Juan Perón foi aquela feita com Juan Manoel de Rosas (1793-1877), político e militar argentino que governou a província de Buenos Aires e a Confederação Argentina, respectivamente, entre 1829 e 1832 e, depois, entre 1835 a 1852. Na interpretação de “O Cruzeiro”, Rosas foi um caudilho autoritário e imperialista que pretendia recuperar o Vice Reinado do Rio da Prata4 para estender seu poder além das fronteiras argentinas. De forma análoga, Juan Perón também possuía planos imperialistas para a região ao lançar a “Terceira Posição”, ideia de que o peronismo poderia ser uma alternativa às ideologias capitalista e comunista. A formação de blocos político-econômicos entre os países da região escondia a real intenção do presidente argentino em exercer maior controle nas decisões dos países vizinhos, algo semelhante ao intento de Rosas no século XIX.
O contexto compreendido pelo segundo capítulo abrange o período entre 1950 e 1953, no qual o autor chama atenção para a eleição de Getúlio Vargas e a posse de João Goulart no Ministério de Trabalho. Tais eventos foram divulgados, em especial por “Tribuna da Imprensa”, como resultados do aumento da influência de Juan Perón nos assuntos políticos brasileiros. Charges de Hilde Weber e demais artigos alertavam para o “candidato argentino” à presidência do Brasil, bem como para a situação dos meios de comunicação na Argentina que, de acordo com os jornalistas brasileiros ligados ao jornal de Carlos Lacerda, sofriam a censura desferida pelo Estado. Santos também analisou as cartas trocadas entre Vargas e J. Perón, destacando que, apesar das inúmeras relações feitas pelas publicações entre os dois políticos, eles nunca chegaram a se encontrar pessoalmente.
A política externa durante o governo de Getúlio Vargas é o ponto central do próximo capítulo. Nesse momento, o autor discorre e analisa alguns acontecimentos que foram interpretados pela imprensa brasileira antiperonista como sinais de imperialismo por parte de Juan Perón. A título de exemplo, acordos firmados entre a Argentina e países vizinhos, como o Chile em 1953 por meio da Acta de Santiago; a criação da Agrupación de Trabajadores Latinoamericanos Sindicalistas (ATLAS)5 ; o suposto controle da energia atômica que o país platino havia alcançado; a presença aparentemente diplomática de adidos no Brasil como indicativos de infiltração sindical; e o envio de material publicitário aos sindicatos brasileiros eram eventos denunciados nas páginas da imprensa como interferências inaceitáveis. Santos dedicou-se, também, a apresentar ao leitor alguns periódicos brasileiros simpáticos ao movimento peronista, como “O Mundo”, “O Radical”, “Última Hora” e a revista “Mundo Ilustrado”.
No quarto e último capítulo, a análise concentra-se entre os anos de 1953 e 1955. Nesse ínterim, o autor investiga denúncias mais graves, divulgadas pelos periódicos estudados, sobre o envolvimento direto do governo peronista na política brasileira. O contato entre líderes trabalhistas brasileiros e Juan Perón representava a possiblidade de se formar em território nacional uma ditadura aos moldes peronistas, ou melhor, uma “república sindicalista”. Outros dois episódios que aprofundaram a crise consistiram na divulgação de um discurso de Juan Perón, proferido em 1953 na Escola Superior de Guerra, no qual o líder teria descrito suas intenções em conformar a integração regional e suprimir fronteiras nacionais, e a publicação da “carta Brandi”, missiva supostamente redigida por um deputado peronista da província de Corrientes, que comunicava a venda de material bélico para os sindicatos brasileiros, cujo objetivo residia na formação de um movimento armado de cunho sindicalista. O discurso do líder peronista foi usado como pretexto para a abertura do processo de impeachment de Getúlio Vargas, que acabou não sendo aprovado pela maioria no Congresso. Em relação à carta atribuída a Antônio Jesus Brandi, um inquérito policial-militar foi aberto para averiguar a sua autenticidade. Após a investigação, concluiu-se que a missiva fora falsificada.
As contribuições do trabalho de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos para os campos de estudo de História da América Latina e da Argentina são inúmeras. Entre elas, destaca-se a constatação da heterogeneidade do antiperonismo que, assim como o peronismo, se configura como um caleidoscópio de ideias, isto é, não eram e ainda não são categoriais nitidamente delineadas e encerradas. Através dos meios de comunicação, as representações criadas do governo peronista visavam impactar para convencer e para isso não precisavam estar integralmente coesas entre si. A comparação do peronismo ora com o nazismo e ora com o comunismo, mesmo mostrando-se contraditória aos olhos dos pesquisadores, objetivavam deslegitimar o governo argentino a qualquer custo. Outrossim, a obra revela, também, a influência que o movimento desferiu na política brasileira, interpretada e divulgada nos meios de comunicação com objetivos estabelecidos. A importância da análise feita por Rodolpho reside, ao mesmo tempo, no entendimento da porosidade das fronteiras nacionais em relação à circulação de ideias, e à particularidade de cada contexto no tratamento das informações e ideias. “A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955)” reafirma que o papel do historiador no século XXI, ao voltar-se para as fontes, consiste em afastarse de determinismos que, na tentativa de descrever minuciosamente um período, um personagem ou um acontecimento histórico, esvaziam a riqueza dos fluxos e refluxos de poder formados por ideias nem sempre análogas entre si, mas que, por isso mesmo, marcam indelevelmente as sociedades.
Notas
1 É digno de nota o fato de Tribuna da Imprensa não ter se configurado um meio de difusão da UDN. De acordo com Lacerda, citado por Santos (2021, p. 69), “[…] a UDN não podia ter um órgão – a UDN era uma maçaroca de tendências, as mais diversas, impossíveis de exprimir num só jornal”.
2 A questão da neutralidade argentina frente aos conflitos e questões internacionais não surgiu durante a Segunda Guerra Mundial. Discussões anteriores sobre intervenções diplomáticas, por exemplo, foram realizadas pelos juristas e escritores Carlos Calvo (1824-1906) e Luis María Drago (1859-1921).
3 A viagem à Itália certamente marcou a visão política do futuro líder justicialista, principalmente no que diz respeito aos meios de comunicação. Em Roma, J. Perón pôde observar como que a imagem do Duce era divulgada, por exemplo, em programas de rádio, filmes e monumentos (MERCADO, 2013).
4 Durante a colonização espanhola, o Vice-reinado do Rio da Preta era formado pelos territórios que correspondem atualmente à Argentina, ao Paraguai, Uruguai e algumas porções de terras da Bolívia e do Brasil.
5 A ATLAS foi criada pela Confederación General del Trabajo (CGT) em 1952. O seu objetivo era de construir uma central sindical independente das propostas estadunidenses e soviéticas. Com efeito, a agrupação foi empreendida mais como uma estratégia de comunicação da política exterior peronista.
Referências
JEANNENEY, Jean. A mídia. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
MERCADO, Silva. El inventor del peronismo: Raúl Apold, el cerebro oculto que cambió la política argentina. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2013.
Resenhista
Raquel Fernandes Lanzoni – UNESP/Assis.
Referências desta Resenha
SANTOS, Rodolpho Gauthier Cardoso dos. A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955). São Paulo: Intermeios, 2021. Resenha de: LANZONI, Raquel Fernandes. História e Cultura, v.11, n.1, p. 534-538, jul. 2022. Acessar publicação original [DR]