Apresentação
A escrita da História da Antiguidade tem buscado superar barreiras contíguas às do campo do conhecimento científico da História. Superar categorias eurocêntricas que buscavam justificar os nacionalismos e legitimar a empreitada racionalista da modernidade, no século XVIII à primeira metade do século XX. Desde a década de oitenta do século passado foi proposto um recorte que busca analisar as conexões e ressignificações a partir do Mediterrâneo. Entretanto, essa nova postura tem gerado amplo debate acadêmico e ainda não repercutiu no ambiente acadêmico e escolar. Nesse sentido esse dossiê tem o objetivo de analisar as diversas manifestações religiosas no mediterrâneo. Para isso é importante descontruir perspectivas atuais que turvaram a análise dessas sociedades, sobretudo dentro dos estudos históricos sobre religião e a começar pela substituição de “religião” por “religiosidades”. Deste modo, partimos de G.W Bowersock (Hellenism in Late Antiquity, 1990, p. 15) e sua afirmação de que nem cristãos ou judeus detiveram o monopólio da crença no sagrado durante a antiguidade: existiam devoções diferentes. Nesse sentido, compartilhamos com Daniel Boyarin (Border lines, 2007, p. 30-56), que à noção de religião atual, é uma categoria que surge com o cristianismo, o que não implica a inexistência de elementos religiosos nas culturas. Para se firmar como religião, os Cristianismos precisaram demarcar as diferenças religiosas, criando assim as falsas religiões. Mark Humphries para o Blackwell’s Companion to Ancient History (2012, p. 309-311), argumenta que: devemos evitar a racionalização pejorativa e preconceituosamente moderna que simplifica as performances e os rituais religiosos entre os antigos como supersticiosos, infantis ou manipulações das elites de uma época. Ela também ressalta a diversidade da experiência religiosa entre os antigos, sua pluralidade e seu sincretismo característicos. Nos interessa compreender como as memórias e as experiências diversamente documentadas desse passado histórico são vividas, significadas, de quais maneiras podem se vincular às formas como o poder é exercido, seja em cidades-estados, impérios, comunidades provinciais, regiões de fronteira ou em todos esses loci ao mesmo tempo. Esses múltiplos contatos, permitidos por uma rede de conectividade presente desde a Idade do Bronze, também designou novos sentidos a traços culturais já consagrados em determinadas culturas.
Neste sentido, os artigos apresentados nesse dossiê visam nos oferecer diferentes aspectos das manifestações religiosas na Antiguidade. Inicialmente, a análise perpassará as relações entre o mito, a religiosidade e o papel político da religião nas estruturas de poder e sobre os indivíduos na sociedade grega. No que tange a religiosidade, a presença de rituais privados e públicos era uma das principais características de suas manifestações entre os helenos, e a afirmação de uma identidade políade um de seus elementos mais representativos. Em contrapartida, em uma sociedade eminentemente patriarcal no plano da vida pública, a participação das mulheres não deixava de ser expressiva nos dois ambientes. A via religiosa era o caminho pelo qual as mulheres exerciam certo grau de intervenção política, sobretudo nos casos históricos os quais nós temos melhor conhecimento documental. Em seu artigo, Giselle Moreira da Matta expõe a atuação das esposas atenienses (gynaikes) e sua relação com o mito fundador de Atenas, demonstrando sua atuação na comunidade cívica e política, mesmo que de forma indireta. Enquanto autoridades cívicas, as mulheres atuavam em um contexto de integração de Atenas com outras Cidades-estados gregas no período em que a primeira exerceu sua hegemonia econômica na porção continental da Hélade. Ao romper com as fronteiras hierárquicas e os tradicionais espaços de competências femininas e masculinas presentes na historiografia, observa-se que as atividades femininas funcionavam em processos comunicacionais gerados pela atuação em grupos; a dinâmica de grupos na qual as esposas se encontravam inclusas – tanto na esfera pública quanto privada – proporcionava a elas convivência, partilha, modificações nos agentes sociais e a formação de identidade e de laços de amizade.
A religiosidade antiga manifesta-se sobremaneira mediante os ritos e as festividades. No ambiente romano do início do Principado, suas manifestações dividiam-se entre as referências ao ciclo agrário, festas cívicas e celebrações de cunho bélico. No artigo de Thiago Eustáquio Araújo Motta e João Wictor Medrado Silva, encontramos nas elegias de Ovídio as descrições poéticas que fornecem ao leitor uma leitura quase que didática das festas, templos e rituais romanos. Os Fastos expõem elementos do calendário cívico-religioso, a marcação do tempo e a relação dos romanos com os deuses e as res divinae. O calendário guiava a sociedade romana pelos dias, estações e as datas da realização de ritos e festas na cidade. A ênfase sobre o ciclo bélico proposta pelo autor tem como objetivo trazer ao leitor a maneira como os romanos esperavam cooptar a atenção e o favorecimento divinos por meio das festividades, e provavelmente amparadas pela experiência e observação do próprio poeta. Assim, as Equirrías realizadas no Campo de Marte consistiam em jogos de exercitação e preparação dos cavalos de guerra, em proximidade à primavera e o início das campanhas militares. Já as Tubilústrias buscavam purificar as tubae, bucinae e corni, uma vez que elas guiavam as cohortes e centúrias de uma legião, em proximidade às festas dedicadas à Minerva – pela sua relação com a estratégia militar – e Vulcano, que tutelava os ofícios relacionados aos metais. Em outubro, o Armilustrium e o Equus October inseriam-se no fim do ciclo de hostilidades e a proximidade do inverno.
Posteriormente, observamos que a difusão da religiosidade judaico-cristã se espelha profundamente na produção intelectual da sociedade romana, e com esse fenômeno o aparecimento de leituras sobre os acontecimentos políticos, militares e visões de mundo e hegemonia desde então. O artigo de Victor Passuello aponta a transição do poder político romano centrado no Imperador e na Cidade de Roma para as legiões romanas e seus generais. Flávio Josefo em A Guerra dos Judeus traz à luz o modo como o exército romano nas províncias passa a definir os aspectos geográficos e até religiosos, do império. Em meio a esta transformação, à ausência de um poder fixo e a movimentação legionária, reflete-se uma concepção religiosa pagã e judaica, definida como quietista e de matrizes gregas vinculadas à deusa Fortuna. Sob o discurso do Rei Agrippa II, Josefo explica a hegemonia romana pelo prisma religioso, cujos responsáveis são Fortuna e Yahweh: guerras e batalhas no Mediterrâneo e o Além-mar são vencidas e conquistadas pela piedade dos seus combatentes e a ação divina na história, não obstante com críticas à dominação romana da Era Flaviana. A influência do contexto intelectual do Judaísmo do Segundo Templo permite o autor atestar o discurso religioso de Josefo como um discurso quietista colocada na boca do Rei Agrippa II.
Paralelamente, Pedro Luís de Toledo Piza analisa as cartas de Inácio de Antioquia e a defesa da hierarquia cristã e sua supervisão no âmbito das relações sociais nas comunidades eclesiásticas às quais se dirige. É neste ambiente de transformações contextualizado ao início do século II da era comum que emerge a caracterização paternalista do supervisor cristão presente no discurso inaciano. No seio de sua comunidade, o supervisor é representado como o próprio Deus pai, transcendendo o papel de administrador e relacionando-se paternalisticamente com os membros da comunidade cristã, em um sentido que pode ser considerado como “monárquico”. Contudo, para além da superfície do discurso, na imagem inaciana de uma comunidade local ideal, este padre espera uma comunhão por parte dos fiéis com o supervisor em conjunto com os anciãos e servidores do grupo, embora não desconhecesse os limites deste ideal nas realidades cotidianas destas comunidades. De todo modo, para o autor, a habilidade retórica de Inácio de Antioquia permitiu-lhe exortar com maestria que o nível de precedência básico que se pode inferir que os supervisores tivessem em suas comunidades deveria ser análogo à própria divindade patriarcal adorada pelos cristãos locais.
A partir destas quatro reflexões, esperamos que o leitor possa desfrutar de uma análise que permita compreender a miríade de manifestações religiosas e a complexidade das relações sociais e políticas inscritas dentro de um contexto integrador regional circunscrito ao ambiente do Mediterrâneo Antigo, esmiuçados pelo exame da poesia e da prosa grega e romana nos autores selecionados pelos pesquisadores que contribuíram para o dossiê.
Referências
BOWERSOCK, G. W. Hellenism in Late Antiquity. Ann Arbor: University of Michigan, 1990.
BOYARIN, D. Border lines: the partition of Judaeo-Christianity. Phialdelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.
HUMPFRIES, Mark. Religion. ERSKINE, Andrew (org). A Companion to Ancient History. London: Wiley-Blackwell, 2009. pp. 299-311.
Organizadores
Rafael da Costa Campos -Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); docente da Universidade Federal do Pampa, Campus Jaguarão (UNIPAMPA). E-mail: rafaeldacostacampos@gmail.com
Edson Arantes Junior – Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG); docente da Universidade Estadual de Goiás, Campus Uruaçu (UEG). E-mail: edson.arantes@ueg.br
Referências desta apresentação
CAMPOS, Rafael da Costa; ARANTES JUNIOR, Edson. Editorial. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.12, n.1, e-212300, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]
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