Reclamando a liberdade: mulheres em busca de emancipação em sociedades escravistas nas Américas (séculos XVIII e XIX)/Tempo/2023

Escravidão, raça e gênero: caminhos possíveis para a historiografia brasileira

Desde a renovação historiográfica ensejada pelo centenário da abolição no fim da década de 1980 e aprofundada nas décadas seguintes, a história social da escravidão tem incorporado um conjunto diverso de temáticas e perspectivas fortemente marcadas pela consideração da participação escrava nos processos de contestação e desagregação da escravidão. Estudos sobre práticas de resistência e autonomia escravas – como o crime, a formação de quilombos e as rebeliões, o trabalho ao ganho, o financiamento de alforrias, a formação de famílias e redes de solidariedade, o recurso à Justiça e a interposição de ações de liberdade, entre outros – vêm colaborando, desde então, para enriquecer a tradição historiográfica dos estudos da escravidão.1 Mais recentemente, novas pesquisas vêm tornando ainda mais complexas as considerações sobre a escravidão e seus sujeitos ao demonstrar que os processos de emancipação, como saída individualizada do cativeiro, e abolição, como eliminação formal da instituição, redundaram em desafios à construção de vidas efetivamente autônomas por escravizados, libertos e aqueles em vias de libertação, deles demandando o empenho de investimentos e esforços de longo prazo, frequentemente coletivos.2

Não obstante, a apropriação da perspectiva teórica do gênero construída a partir das experiências e da agência femininas foi mais tardia na historiografia brasileira da escravidão e do pós-emancipação do que aquela produzida em língua inglesa.3 É fato que, desde a década de 1980, estudos pioneiros que trataram do trabalho de mulheres negras escravizadas e libertas nas cidades, como os de Maria Odila Leite da Silva Dias (1984, 1985), e pesquisas sobre alforria, que demonstraram a significativa participação de mulheres entre os sujeitos manumitidos, apontaram o papel fundamental por elas desempenhado na articulação econômica e social dos mundos em que viveram. Na esteira dessas obras fundadoras, trabalhos mais recentes vêm desenhando uma agenda de pesquisas diversificada que se vale do aporte de novas molduras teóricas, como a interseccionalidade, para colocar, em renovadas perspectivas, dimensões singulares das experiências de mulheres negras e brancas em sociedades escravistas. Dessa agenda, fazem parte a investigação da construção e circulação de concepções de gênero, raça e classe no mundo escravista atlântico; as imbricações entre escravidão e corpo feminino – consubstanciadas, por exemplo, nas experiências de gestação e parto e na interferência da medicina sobre elas, bem como na exploração e violação sexual; as implicações do cativeiro e da emancipação sobre relações comunitárias, práticas de maternidade e as possibilidades de cuidado dos filhos; as relações entre o trabalho feminino, economias e sociabilidades urbanas e a aquisição de liberdades individuais e familiares; e o engajamento de mulheres escravizadas, libertas e também livres em movimentos diversos de contestação da escravidão e na construção da abolição.4

Tais abordagens têm desvelado dimensões invisíveis da vida sob o cativeiro e a liberdade, tornando mais complexa a compreensão dos modos de existir sob a escravidão e a ela resistir. É esta a perspectiva teórico-metodológica que orienta a organização do dossiê “Reclamando a liberdade”. Investigando a participação de mulheres nos processos de emancipação e abolição em sociedades escravistas nas Américas, ele tem dupla ambição. Primeiro, ao propor observar, de uma perspectiva interseccional, as imbricações entre gênero, raça e escravidão, o dossiê estimula e reúne discussões sobre representações, atuações e práticas sociais de mulheres negras que se engajaram nas disputas em torno da desagregação da escravidão em diferentes contextos do mundo atlântico. Segundo, busca refletir sobre o papel de mulheres brancas nesse processo: enfocando, por contraste, comparação e/ou intersecção, a questão da construção e circulação de diferentes concepções do gênero feminino, busca aprofundar nossa compreensão sobre a atuação de mulheres negras como agentes da emancipação.

Dessa forma, “Reclamando a liberdade” objetiva compreender como mulheres negras construíram projetos de autonomia, próprios e de outras pessoas, e como enfrentaram desafios impostos à sua consecução e conceberam a liberdade a ser usufruída após a emancipação. Interessa-se, igualmente, por discutir, em crivo crítico, a circulação de padrões de feminilidade, raça e gênero em sociedades escravistas no decorrer dos processos de abolição – contemplando, nesse sentido, a presença ativa ou indireta de mulheres brancas nesses processos. Ao confrontar esses padrões, o dossiê pretende investigar se e em que condições mulheres brancas estiveram engajadas na emancipação de mulheres negras, questionando os significados e limites dessa participação. Ao centrar atenções na atuação feminina e na construção e circulação de diferentes concepções do gênero feminino nas sociedades escravistas das Américas, “Reclamando a liberdade” aprofunda, ao mesmo tempo, nossa compreensão sobre mulheres negras como agentes da emancipação e abolição, e gênero como campo de disputas sociais fundamentais nesse contexto.

O dossiê é composto por três instigantes artigos. Embora abracem temas diversos, as contribuições à frente apresentadas possuem um denominador comum e unem-se por um forte fio condutor: a investigação e elaboração, sob diferentes ângulos, da história de mulheres escravizadas cuja busca pela liberdade, sempre matizada pelos contextos específicos em que estiveram inseridas, é entendida como provisória e incompleta.

De autoria de Victor Nakanishi, o artigo “Gênero, escravidão e religião: a liberdade de Flora Blumer sob a perspectiva da missionária norte-americana Martha Watts (1881-1892)” abre o dossiê. Nakanishi discute os desafios de reconstituir a vida de uma mulher escravizada cuja liberdade esteve condicionada às ações e visões de mundo de uma missionária, residente no interior da província de São Paulo, que trafegavam entre a filantropia, a crença na missão civilizatória e a conversão religiosa. Como aponta o autor, filtrada pelo olhar civilizatório de uma mulher branca, estrangeira e religiosa, a vida de Flora Blumer se apresenta como um quebra-cabeça no qual, embora seja possível vislumbrar importantes dimensões da agência histórica, destaca-se a marca da opacidade histórica a que mulheres negras foram submetidas. Flora notabilizou-se por ser a primeira mulher negra a fazer sua profissão de fé, sendo aceita na comunidade religiosa protestante, estratégia que, certamente, abriu novos espaços sociais para sua autonomia, proporcionando-lhe, inclusive, a rara oportunidade de viajar para os Estados Unidos e ser vista e ouvida pelo grupo religioso. Ao mesmo tempo, os registros a respeito dela nada dizem sobre sua vida como indivíduo e como mulher negra. Como demonstra o autor, munido de instrumentos teórico-metodológicos aguçados, o historiador pode adentrar territórios silenciados pelos arquivos da escravidão.

O artigo seguinte, “Família, maternidade e escravidão na Martinica (1845-1847)” enfoca a questão do acesso feminino à liberdade na Martinica dos últimos anos de vigência da escravidão. De autoria de Letícia Gregório Canelas, discute aspectos estratégicos da construção de uma renovada história das mulheres escravizadas – isto é, a maternidade, os laços familiares e o trabalho. Seguindo a trilha dos múltiplos e significativos estudos de alforria realizados no Brasil, a pesquisadora vislumbra o protagonismo de mulheres na aquisição de formas específicas de acesso à liberdade. Ressaltando a existência de grupos familiares nas requisições de alforria, sobretudo de mães de filhos menores, Canelas reflete sobre os caminhos enveredados por mulheres escravizadas na formação de famílias e constituição de pecúlios com os quais adquiriam a sua liberdade e a dos seus rebentos. O artigo sugere, assim, que as escravizadas martinicanas construíram acessos legais à liberdade por meio de suas agências, atuando como comerciantes, jornaleiras ou mesmo trabalhadoras do campo, contando, por vezes, com a ajuda de maridos ou companheiros. Nesse cenário, a autora aponta para a necessidade de superarmos de vez a ideia do acesso à liberdade como desdobramento de relações com homens brancos dominantes. A agência e criatividade de mulheres escravizadas ficam, assim, alçadas ao centro do palco histórico, no qual trabalho, ajuda mútua e laços familiares delineiam as possibilidades de alforria. Ressalta igualmente o palco jurídico como espaço decisivo para a atuação de escravizadas na luta pela liberdade.

Finalmente, apresentamos o artigo de Iamara Viana, “Tríplice utilização dos corpos negros femininos: gênero, raça, sevícias e escravidão, Rio de Janeiro, século XIX”, centrado na problemática das intervenções médicas e senhoriais nos corpos, e, sobretudo, no sistema reprodutivo de mulheres escravizadas no Vale do Paraíba após o fechamento do tráfico. A autora se dedica especialmente a discutir os manuais médicos que circularam na região na segunda metade do século XIX, analisando com maior vagar a conhecida obra de J. B. A. Imbert, Manual do fazendeiro, ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Ao propor uma reflexão sobre as políticas de melhorias na escravidão no período final de vigência do regime, o artigo mostra o impacto desses manuais no tratamento da saúde reprodutiva, no parto de mulheres escravizadas e na puericultura. Ao mesmo tempo em que descreve as políticas senhoriais e médicas de invasão e controle dos corpos de mulheres escravizadas, o artigo propõe um olhar para além das políticas reprodutivas, estabelecendo um campo de disputas no qual essas mulheres instituíram marcos de resistência e autonomia. Dessa maneira, Iamara Viana aventa a possibilidade de estabelecimento da reprodução demográfica positiva, o que certamente contou com a colaboração das escravizadas.

Esperamos que o dossiê “Reclamando a liberdade” possa colaborar com as importantes discussões sobre a intersecção entre gênero, escravidão e raça que ganham força nos últimos anos. Apontando caminhos de leitura e interpretação historiográficas no contexto da dificultosa e incompleta aquisição da liberdade por mulheres escravizadas e seus filhos, colocamos o trabalho à disposição dos leitores e leitoras desta revista.


Notas

1 São exemplos da produção pioneira sobre o tema, entre outros: Chalhoub (1990); Machado (1994); Reis, Gomes (1996); Reis (2003); Gomes (2006); Grinberg (1994); Slenes (1999).

2 Exemplos da produção das últimas décadas sobre o tema são: Machado, Castilho (2015); Guimarães (2006); Lima (2005); Ariza (2014).

3 As referências são diversas. Ver, entre outros estudos pioneiros e mais recentes: Gaspar, Hine (1996); Bush (1996); Morgan (2004); Schwartz (2009); Turner (2017); Roth (2013); Cowling (2013); Paton (2022).

4 Exemplos dessa produção em anos recentes são: Machado (2010, 2012); Machado, Cardoso (no prelo); Ariza (2020); Telles (2014, 2019); Carula, Ariza (2022); Martins (2006).


Referências

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Organizadores

Maria Helena Pereira Toledo Machado – Professora titular do Departamento de História. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP), Brasil. E-mail: hmachado@usp.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8030-1705

Marília B. A. Ariza – Professora do Departamento de História. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP), Brasil. E-mail: mbaariza@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6199-2344


Referências desta apresentação

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo; ARIZA Marília B. A. Apresentação. Tempo. Niterói, v. 29, n. 1, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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