Patrimônio Cultural, lugares de memória e usos do passado/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2020
As políticas patrimoniais no Brasil, por muito tempo, priorizaram a preservação de bens imóveis e objetos que representavam as elites e as instituições públicas e religiosas. Tal ação excluiu uma parcela significativa da população da nossa memória histórica. O que preservar e o que esquecer não é uma ação pacífica e, tão pouco, objetiva ou neutra. Nesse espaço de disputas, a história dos vencedores ditou as normas, assim, museus e outras instituições de memória priorizaram objetos que fortaleceram a representação de grupos que dominavam o cenário político. Negros, indígenas, mulheres, sertanejos, ribeirinhos, seringueiros, moradores de periferias e outros grupos foram deixados à margem da memória nacional e da preservação patrimonial.
Embora Mário de Andrade, desde 1936, já havia proposto um conceito amplo de Patrimônio Cultural que reuniria manifestações humanas das mais diversas, sua idealização não se converteu em prática durante a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937. Foram necessárias algumas décadas para que o atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconhecesse a importância da imaterialidade. Ainda assim, é perceptível a ausência de interação entre a preservação da memória e as populações que vivenciam tais experiências cotidianamente. Mesmo com as mudanças institucionais na definição do Patrimônio Cultural ainda carecemos de uma compreensão menos rígida e que consiga alcançar a dinâmica da cultura.
É nessa problemática que o dossiê Patrimônio Cultural, lugares de memória e usos do passado pretende contribuir. Os artigos reunidos nesta edição estão voltados, exclusivamente, ao debate que tangencia as questões sobre Patrimônio Cultural e memória, a partir de diferentes abordagens, como: memória em instituições educacionais (como escolas, museus e centros de documentação), políticas patrimoniais e de preservação, resistências e disputas pela memória e dinâmica cultural.
Apresentamos 14 textos divididos em 5 seções. A seção Arquivos, Documentos e Memória abre a revista e é composta pelo artigo Fontes documentais de acervos escolares e o ensino de História do Distrito Federal: relato sobre o Centro de Memória(s) do Elefante Branco. Neste texto, Cristiane Portela demonstra a importância da construção e manutenção de acervos escolares para o desenvolvimento de projetos de ensino de história relacionados com a memória. Sua análise é inovadora e se afasta de uma concepção generalizante de educação patrimonial. Inclusive, demonstrando como esses acervos podem ser problematizados em sala de aula.
Na seção reservada especificamente para o dossiê Patrimônio Cultural, lugares de memória e usos do passado foram selecionados 5 artigos: Patrimônio cultural imaterial: a atuação do IPHAN e do IEPHA/MG dos autores Paulo Sérgio Silva e Ana Paula da Silva; Patrimônio Cultural: diálogos com a memória e a história escrito por Francilene Ramos; Tambores da resistência: o Maracatu de Baque Virado como patrimônio cosmológico de Walter Lowande e Camila Bueno; A Memória e a Experiência no Museu da Maré: Uma Narrativa de Resistência de Luciana Mendes dos Santos e Patrimônio arqueológico indígena no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba-MG: ações de preservação e proteção de acervos no ambiente da Universidade Federal de Uberlândia de Marcel Mano et al. Nos dois primeiros textos, os leitores(as) terão reflexões que envolvem a questão institucional, jurídica e conceitual acerca da definição de Patrimônio Cultural. No terceiro artigo, perceberão a crítica a esse conceito e sua incapacidade de alcançar a dinâmica de movimentos culturais. No quarto texto, a autora utiliza a experiência do museu da Maré como forma de tematizar as disputas pela memória em locais periféricos. No último artigo dessa seção, os autores apresentam o papel fundamental da arqueologia na narrativa de uma memória indígena em Minas Gerais, por meio da elaboração de um museu específico para esse tema.
Na seção organizada como Artigos Livres constam 3 artigos: A transmissão de memórias e o espaço público: a paisagem cívica da FEB em Juiz de Fora; O museu da cidade de Governador Valadares: entre a celebração do passado e o mito do pioneirismo e Para além das portas e janelas: o caso do Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara (SP). O debate entre cultura material e imaterial são preocupações presentes em todos esses textos. Enquanto que Rodrigo Musto faz uma discussão sobre a memória por meio dos monumentos em homenagem aos soldados que lutaram na Segunda Guerra Mundial presentes na paisagem urbana de Juiz de Fora; as autoras Lucinei Pereira da Silva e Lana Mara de Castro Siman problematizam o conceito de Museu da Cidade e a exaltação de um determinado tipo de memória vinculada às elites em Governador Valadares. No artigo de Josiane Kunzler et al são apresentadas as experiências do Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara (MAPA) e os desafios para “repensar” o lugar do museu a partir dos conceitos e práticas da museologia social e na “defesa de um museu voltado para a preservação, pesquisa e socialização do patrimônio arqueológico e paleontológico”.
Na seção intitulada Notas de Pesquisa dois artigos focalizam as relações entre poder institucional e memória, porém, em momentos históricos distintos. No primeiro, intitulado O poder eclesiástico em Campanha (MG) e a persistência do patrimônio edificado religioso (1739-1825), os autores Weigson F. R. Lopes e Márcio E. R. de Carvalho apontam para a possibilidade de interpretação das relações do poder eclesiástico a partir da leitura do patrimônio arquitetônico das igrejas edificadas no município de Campanha, Minas Gerais. No segundo artigo, A memória como ferramenta política: (re)discutindo as cotas, Régis Rodrigues analisa a implementação da Lei Federal 12.771/12 que institui a política de ações afirmativas nas universidades federais e instituições de ensino técnico de nível médio e defende o conceito de memória como central para os discursos sobre cotas raciais no Brasil.
Na última seção da revista, sob o título Relatos de Experiência, três artigos abordam experiências de pesquisa envolvendo a temática do patrimônio em perspectivas distintas: na produção audiovisual, na educação para o turismo e na criação de centros de documentação. No primeiro artigo, intitulado: Documentação audiovisual de um Patrimônio Imaterial ainda não inventariado: a resistência caiçara em Paraty, Karina Passos de Abreu relata a experiência da produção de um documentário sobre uma comunidade caiçara na região de Paraty na luta pela manutenção do seu território. No artigo Projeto Conhecendo Itabirito: turismo educacional para a educação patrimonial, Marcelle Rodrigues Silva, Carlos Alberto Antunes do Carmo e Luan Barbosa Ribeiro apresentam possibilidades para a educação patrimonial a partir de um projeto para o desenvolvimento turístico em Itabirito, Minas Gerais. E, no artigo Lugares de Memória: relatos de experiência de criação de espaços carregados de História, de Valéria Regina Zanetti et al., os autores relatam as experiências na criação de três centros de memória e documentação histórica, apoiados pela Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em cidades do interior paulista.
Os artigos aqui reunidos demonstram a riqueza da temática e a relevância desse debate, principalmente, no atual momento histórico, uma vez que as disputas pelas memórias estão sendo travadas em campos de lutas muito diversos, marcados pela profusão de narrativas negacionistas e produzidas a partir apropriações do passado. Esperamos que essa edição contribua com uma discussão séria e comprometida com a análise histórica.
Boa leitura!
Uberlândia, 10 de junho de 2020.
Organizadores
Iara Toscano Correia
Gustavo de Souza Oliveira
Referências desta apresentação
CORREIA, Iara Toscano; OLIVEIRA, Gustavo de Souza. Apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 33, n. 1, p. 2-5, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR/JF]