Os povos indígenas na história: agenciamentos, direitos e lutas/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2019

Embora o colonialismo tenha se esgotado formalmente na América a pelo menos dois séculos, a colonialidade, como a define Quijano1, persiste. Padrão de controle e classificação hierarquizante das populações, ela afeta todos os campos da vida social e reproduz, até hoje, relações de ser, pensar, fazer e poder que ainda são coloniais. A simples escolha semântica de América e Latina, ou de Novo Mundo, não só fortalece(u) a versão ocidental de nossa história e cultura, mas, ao silenciar outras tantas semânticas, exclui(u) também de um só golpe trabalhadores pobres, afrodescendentes e povos originários dos projetos de construção das nações dessa parte do mundo. Conduzidas por elites que, se não eram, queriam ou imaginavam ser europeias, as diferentes políticas de Estado, como por exemplo as indigenistas, sempre procuraram, de uma forma ou de outra, transformar essas populações em nacionais, sejam eles argentinos, peruanos, chilenos, mexicanos, brasileiros, bolivianos etc., ou o que quer que essas coisas representem. Como se não bastasse o fardo do peso histórico do genocídio, do etnocídio, da expulsão e da segregação cometidos contra os povos indígenas, sua face perversa e monstruosa se repete no atual momento político delicado pelo qual passa todo o continente, marcado não só pelo sucessivo retrocesso nos diretos sociais (transformados em serviços pelo ultra neoliberalismo de extrema direita que nos recoloniza), como no claro discurso de que essa parcela da população é prescindível, descartável; sina igualmente compartilhada por pobres e afrodescendentes.

Mas para sermos justos com os fatos, às vezes dentro, com a conivência ou mesmo à revelia dos planos coloniais e nacionais, os povos indígenas fizeram escolhas, jogos sociais e manobras que transformaram a intervenção em possibilidades de apropriação e construção de espaços de sociabilidade e territórios étnicos. O exercício de uma política (dos) indígenas sempre acionou estratégias, negociações, movimentos e organizações que, em diferentes momentos e circunstâncias, negaram certezas e reivindicaram projetos políticos autônomos e emancipatórios. A esse fenômeno de ação conscientemente orientada a “nova história indígena” chamou de protoganismo ou agenciamento indígena.

Infelizmente não temos para cada povo nativo um Popol Vuh2 que nos coloque em face de suas ontologias e formas de pensamento próprias, mas a quase meio século esforços conjugados e pesquisas colaborativas estão conseguindo repensar os processos históricos a partir do agenciamento indígena. Etnohistória, história dos índios, história indígena e antropologia histórica são alguns nomes dados a pesquisas que têm em comum a confluência de fontes da Arqueologia, da Etnologia e da História, com amarração na Antropologia, com o objetivo de descolonizar e decoloniar as versões das histórias e culturas dos povos indígenas.

Por meio delas conhecemos múltiplas provas das adaptações e respostas ativas e criativas dos índios às diferentes relações de contato. Num misto cambiante e mutante de signos culturais e interesses pragmáticos, os processos de negação e reivindicação se deram não apenas por resistência, ressemantização, reinterpretação ou rearranjo, mas igualmente por criação, invenção e transformação. Afinal, parece já devidamente aceitável que as histórias e culturas desses povos não são regidas apenas por diferentes combinatórias de princípios estruturantes, mas também por ações concretas dos sujeitos que em suas intervenções articulam redes de cooperação externa. Isso significa que não devemos nos contentar mais com uma nefasta e caduca oposição, reafirmada por intelectuais de diferentes sociedades colonialistas, de que as análises etnográficas devem escolher entre o estudo da lógica das relações dos povos indígenas com os constrangimentos externos, ou com o estudo das lógicas dos mitos e ritos e da continuidade interna. Diacronia e sincronia não são eixos excludentes, e após algumas décadas de acúmulo de conhecimentos podemos considerar definitivamente superada uma história dos índios que se limitava a escolher entre a aculturação e a resistência; entre a permanência e a mudança; entre a tradição e a modernidade; entre continuidades e rupturas. Questionamento, negação e reelaboração de identidades indígenas sempre foram constantes.

Com base nesse contexto, o dossiê “Os povos indígenas na história: agenciamentos, direitos e lutas”, reúne e divulga estudos que discutem e analisam os povos indígenas e a temática indígena em diferentes contextos espaçotemporais. Em seu conjunto são uma amostra de quão ambíguas foram e ainda são as políticas de tratamento da diversidade e dos direitos culturais; e de quão significativas são as narrativas da ação histórica e política indígenas para denunciar e combater o colonialismo e a colonialidade que nos (in)forma(ou). Embora sejam estudos referentes a diferentes áreas e períodos, em comum eles mobilizam informações materiais, etnográficas e documentais acerca dos povos indígenas com base no esforço para reinterpretar processos históricos e, por isso, podem também se somar às lutas desses grupos por justiça social, direitos e emancipação.

O dossiê conta com oito artigos. O primeiro deles, intitulado “A ’pacificação’ de acordo com o Diretório pombalino e sua realidade nos aldeamentos de Maria I e São José De Mossâmedes”, é de autoria de Gabriel Zissi Peres Asnis. O autor discute o conceito de pacificação e como ele foi apropriado pelos Kayapó do sul aldeados no quartel final do século XVIII na capitania de Goiás: a partir de seus próprios interesses, o que gerou novas formas de relação com a alteridade, inclusive com a redefinição da prática da guerra.

Em “Cultura política indígena na Câmara Municipal da Vila de Índios em Messejana no Ceará”, João Paulo Peixoto Costa contribui com uma análise, ainda incipiente na historiografia, sobre as municipalidades no âmbito da administração camarária no Brasil. Suas reflexões buscam compreender a dinâmica e a cultura política dos indígenas na Câmara Municipal da Vila de Messejana, demonstrando seu desejo de autonomia a partir de prerrogativas políticas e do reconhecimento como súditos do rei.

“O lugar dos povos indígenas e a história oficial do Pará nos livros didáticos no início do século XX (1900-1910)”, escrito em coautoria por Vinícius Machado Ferreira e Geraldo Magella de Menezes Neto, conta com uma análise sobre o livros didáticos paraenses produzidos na primeira década do século XX. Para os autores, a partir da influência do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), foi possível perceber a escrita de uma história que ressaltou a ação dos europeus em detrimento do protagonismo indígena.

“Iniciativas Kaingang de decolonização da cidade”, de Ernesto Pereira Bastos Neto e Luís Fernando da Silva Laroque, analisa, em uma perspectiva decolonial, uma festa realizada pelos Kaingang Foxá, do município de Lajeado, no Rio Grande do Sul. Os autores, a partir do exame da participação de estudantes do ensino básico em um ritual Kaingang, buscaram compreender o evento como uma prática educacional decolonial, que permitiu a vivência de relações étnico-raciais importantes para a compreensão de um ensino que leve em consideração a agência indígena a partir dos princípios constantes na Lei 11.645/08.

“A linguagem audiovisual e a desconstrução de uma pessoalidade”, de Alexandre Moroso Guilhão, analisa, de forma interessante, o documentário Hakani, uma obra que acaba por contribuir com uma certa visão distorcida do genocídio indígena. O autor se preocupou em compreender as noções de vida, corpo e pessoa a partir do filme, cuja produção de imagens aliadas a diversas estratégias impactou o imaginário social e os debates dele decorrentes.

Em “Subalternização indígena: as condições de vida dos índios no Peru republicano (1885-1904)”, de Ruth Cavalcante, é possível perceber os aspectos sociais, políticos e econômicos em que estavam inseridos os indígenas peruanos entre o fim do século XIX e início do século XX. A análise da autora se apoia em quatro obras que denunciavam os mecanismos sociais que permitiram aos indígenas ocupar um lugar de submissão e subordinação na sociedade peruana.

“História, espaços e resistências: a territorialidade indígena a partir da experiência zapatista”, de autoria de Rodrigo de Morais Guerra, busca, a partir dos conceitos de lugar, território social e cosmografia, entender o espaço como um aspecto importante para a construção da história, cultura e identidade indígenas. Segundo o autor, a resistência ao colonialismo sempre foi presente por diversos vieses e, uma das estratégias para garantir a preservação da história zapatista é a configuração sócio-espacial autônoma, já que eles defendem o poder horizontal e a organização por vias autônomas, o que resulta no enfraquecimento da ação do poder estatal mexicano.

Em “A transição chilena e a questão mapuche: uma análise do Informe da Comisión Chilena por la Verdad y Reconciliación (1990-1991)”, Lays Correa da Silva propõe uma reflexão a partir de um importante documento produzido logo após o fim da ditadura militar no Chile. Ela analisa a ação da repressão do Estado chileno contra os mapuche e o papel da Justiça de Transição, buscando demonstrar a participação ativa dos indígenas no processo de redemocratização do país.

Cada artigo que compõe este dossiê demonstra não só a pluralidade das reflexões de seus respectivos autores, como constroem novas abordagens e diálogos interdisciplinares que são importantes para a (re)escrita de uma história que leve em consideração o protagonismo indígena. Devemos compreendê-lo também como um ato político frente aos diversos ataques que os povos indígenas vêm sofrendo pela (in)ação dos Estados. Esperamos que o presente número da Revista Cadernos de Pesquisa do CDHIS – o primeiro na história do periódico a abordar essa temática –, suscite novos olhares e interpretações.

Boa leitura! Uberlândia, dezembro de 2019


Notas

1 QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In; SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do sul. Coimbra: edições Almedina, 2009, p. 73 – 118,

2 Popol Vuh, ou Livro do Conselho, é o texto indígena mais antigo dos povos desse continente. Escrito em quiché no século XVI, a versão mais antiga hoje disponível, conhecida como Manuscrito de Chichicastenago, é um documento bilíngue quiche-espanhol do século XVIII. O Popol Vuh é um documento político-poético que contém a cosmogonia, o surgimento da natureza e da humanidade, a mitologia heroica, a história e a genealogia dos grupos indígenas que habitavam a região da atual Guatemala durante o fim do Império Maia.


Organizadores

Marcel Mano – Grupo de Estudos e Pesquisas em Arqueologia, Etnologia e História Indígena.

Robert Mori – Grupo de Estudos e Pesquisas em Arqueologia, Etnologia e História Indígena.


Referências desta apresentação

MANO, Marcel; MORI, Robert. Apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 32, n. 2, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

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