As formas como povos distintos conceberam e interagiam com a existência de potências sobrenaturais constitui um problema historiográfico dos mais interessantes. Ao longo do século XX, principalmente, pesquisas que versam sobre o tema ganharam mais espaço: desde a primeira geração dos Annales até o estabelecimento da chamada História das Mentalidades, estudos sobre a coletividade na longa duração e de suas estruturas mentais foram angariando cada vez mais espaço na academia. Oposições como sagrado/profano, mágico/religioso, legítimo/ilícito constituíram-se como categorias de análise mobilizadas pelos historiadores nesse esforço, em diálogo constante com outras áreas do conhecimento, como a Antropologia, rendendo trabalhos historiográficos inovadores, mais interdisciplinares e disruptivos em seu tempo.
Desde os anos 1980, porém, temos visto nesse campo de pesquisa uma renovação que busca conjugar tais esforços a novos olhares, visando a recuperação da agência individual, da pluralidade e da complexidade das expressões desses sistemas de crenças na vida cotidiana e considerando a sua relação com outros campos que constituem tal vivência, como os planos social, econômico, político, dentre outros. No que tange aos estudos sobre a Antiguidade, por exemplo, temos obras como a de Paul Veyne, Os gregos acreditavam em seus Mitos?1, que buscou refletir acerca das diferentes maneiras pelas quais os sujeitos poderiam mobilizar elementos presentes em seus sistemas simbólicos e desenvolver maneiras próprias e distintas de crenças nas potências sobrenaturais e de interação com estas, considerando, inclusive, como tais crenças e atitudes podem mudar de um contexto para outro. Tal movimento, que estava a par das críticas e propostas elaboradas nos âmbitos das Ciências Sociais e da Antropologia, se mostrou uma tentativa de contemplar o fato de que religiosidades, crenças e rituais dos mais variados têm origens e implicações extremamente complexas.
Uma conciliação entre os diferentes campos – cultural, econômico, político e social – começou a ser engendrada tanto na teoria, quanto na prática: Roger Chartier, por exemplo, propõe uma nova História Cultural, entre práticas e representações, na qual ele sugere uma nova articulação entre esses campos, não pelo viés de um espelhamento, ou compreendendo cada campo como parte de uma engrenagem que constitui a totalidade da realidade, ou, ainda, em algum tipo de relação hierarquizante; mas, antes, investigando como os diferentes campos se relacionam e se imbricam nas realidades históricas2. Dessa forma, uma vasta gama de possibilidades foi aberta para os estudos das relações entre os seres humanos e o “sobrenatural” na História, sobretudo no que concerne à História Antiga e Medieval.
Especialmente no caso dos mundos antigos, uma pluralidade efervescente saltou aos olhos dos historiadores: a vasta documentação literária e material produzida no período revela relações ambíguas e complexas dos sujeitos com as esferas sobrenaturais. Crenças, rituais e práticas sagradas/profanas muitas vezes se confundiam, dificultando o encaixe nas categorias anteriormente estipuladas: o contexto das práticas, os agentes envolvidos ou a tradição intelectual e teológica – no caso do cristianismo – às quais os agentes e os documentos se vinculavam promoviam diferenças significativas no tratamento dessas interações com o divino. Desse modo, somos confrontados pela necessidade de uma análise cuidadosa da documentação antiga, levando em conta o emaranhado de variáveis envolvidas na construção dos sentidos de práticas, representações e discursos acerca do plano divino e das potências sobrenaturais.
Contudo, é evidente que uma abordagem que abarque todas as variáveis e todos os campos que constituem a realidade é inviável, seja pela quantidade de material a ser analisada, seja pelo risco de comprometer a inteligibilidade da construção do saber histórico. O estabelecimento de recortes – cronológicos, espaciais, sociais – e de categorias de análise é o que torna nosso trabalho possível. Além disso, considerar as “intenções” individuais, como contraponto às estruturas mentais é perder-se na atomização do ser, ignorando que todo indivíduo é duplo, constituído, simultaneamente, por um ser social e um ser psicológico, este último nos escapando quase por completo. Entre as mentalidades e a fenomenologia, está o cotidiano dos homens em um mundo permeado pelo invisível, o sensível e o divino.
A partir desse movimento, temos observado nas últimas décadas uma expansão das possibilidades de pesquisa, o nascimento de novos problemas e novas abordagens no estudo de mundos antigos, inclusive no Brasil: relações entre centro e periferia, estudos de gênero, estudos das classes sociais subalternas e a “história vista de baixo” são apenas alguns exemplos. O próprio termo que empregamos – mundos antigos – reflete uma abertura cada vez maior para o enfoque em civilizações fora do contexto clássico greco-romano, com a promoção de sobre Egito, Mesopotâmia, Pérsia, Índia, bem como sobre os povos habitantes da Europa Ocidental. Por fim, os estudos decoloniais têm sido peça fundamental no processo de autocompreensão e de construção de uma historiografia dos mundos antigos brasileira, sul-americana, periférica e através de uma episteme própria.
Assim, a proposta desse dossiê é congregar os estudos de jovens pesquisadores sobre os mundos antigos que destacam justamente a pluralidade de regiões, povos e culturas na construção deste cenário de religiosidades, de ritualísticas e de crenças diversificadas. E que, além disso, o fazem considerando questões comerciais e financeiras, disputas jurídicas, relações amorosas, práticas mortuárias e outros aspectos da vida cotidiana, explicitando como as relações entre os sujeitos e as potências cósmicas que constituem também um campo propício para investigações em História Social, Jurídica, Econômica e outras áreas da historiografia.
A fim de atingir uma reflexão através de uma proposta heurística e não como segmentações ou polos opostos de uma mesma área, buscamos trabalhos que mobilizaram fontes de diferentes naturezas: textuais, imagéticas, epigráficas e arqueológicas, além de campos distintos do saber e diversos pressupostos teórico-metodológicos. Tal alargamento de fontes é crucial nesta empreitada, uma vez que a vida vivida, a vida sentida e a vida pensada são temas extremamente complexos de serem trabalhados – sobretudo quando envolvem as manifestações não-materiais da realidade. Mas são esses desafios nos convidam a praticar a alteridade e a desenvolver a sensibilidade historiográfica diante de nossos objetos de estudo.
Primeiramente, temos o trabalho Magia na Roma antiga: Apuleio de Madaura e o Asno de Ouro sob o conceito de memória e identidade social de Michael Pollak, de autoria de Albertino da Silva Lima. Valendo-se dos conceitos cunhados por Pollak, o autor propõe uma investigação que considere as próprias experiências de Apuleio – em grande parte relatadas no discurso Apologia – para investigar aspectos da magia por ele apresentados em seu romance O Asno de Ouro. Dessa maneira, o artigo é capaz de lançar novas luzes às questões das representações literárias da magia n’O Asno de Ouro e da participação do autor do texto, como indivíduo portador de um conjunto de experiências e memórias únicas, em suas elaborações.
A seguir, Beatriz da Silva Ronca analisa o desenvolvimento do culto à deusa Sulis Minerva – amalgama de crenças religiosas celta-bretãs e romanas – na Bretanha-romana, a partir do século I D.E.C. partindo do conceito de Hibridismo Cultural, no artigo intitulado DEAE SVLI MINERVAE: considerações sobre o templo da deusa das águas medicinais. A partir do santuário dedicado à deusa, descoberto na região da atual cidade inglesa de Bath, Beatriz observou elementos importantes da religiosidade celta-bretã presentes em altares, oferendas e características atribuída à divindade nas inscrições, como sua relação com as águas e a cura, bem como o protagonismo característico às divindades femininas destas religiões. A argumentação demonstra que os imaginários religiosos nas colônias romanas não estiveram reduzidos à simples relação “dominante x dominado”, mas configuraram cenários dinâmicos de desenvolvimento a partir de influências e contribuições distintas.
Já Amanda Martins Rodrigues, com sua contribuição Mulheres, Rituais e Dioniso: autoridade e autenticidade, propõe uma análise da participação das mulheres nos rituais religiosos relacionados a Dioniso por meio da análise da peça As Bacantes, de Eurípides, considerando em que medida – e se – esses rituais podem ser vistos como possibilidade de libertação feminina e subversão da autoridade masculina.
No artigo Religiosidade Emaranhada: Os Cultos às Divindades Femininas Plurais nas Províncias Ocidentais do Império Romano, Érika Vital Pedreira lança um olhar renovado sobre as múltiplas origens das “divindades femininas plurais” a partir de evidências arqueológicas atualizadas. O artigo demonstra as origens plurais e o processo de emaranhamento dessas figuras por meio do estudo de caso de quatro relevos originários de províncias ocidentais distintas do Império Romano dedicados a tais entidades. Oferece, assim, importante colaboração para a compreensão do surgimento de religiosidades emaranhadas, com a presença de inovações conforme necessidades e particularidades locais, demonstrando processos notáveis de transformações e modificações das ideias que se faziam a respeito dos seres que eles consideravam habitavar a esfera do “invisível”.
Elis Barroso e Jerrison Patu, por sua vez, trazem o trabalho Reciprocidade, redistribuição e troca através da imagem de Dioniso na Ática durante o período arcaico 540-530 a.C., que traz a história econômica e, especialmente, as trocas comerciais para o centro do debate entre religiosidade e identidade. Eles demonstram como as redes de trocas comerciais, ao mesmo tempo, constituem redes de trocas e contatos culturais e como, especialmente no caso do culto a Dioniso, abrem a possibilidade para novos tipos de interações entre locais e estrangeiros por meio de manifestações religiosas.
O artigo Funções Cômicas da Superstitio em Plauto, de Fellipe Duarte da Silva Alves de Souza, demonstra que a sensibilidade dos sujeitos antigos às esferas invisíveis da realidade não esteve limitada apenas a espaços de práticas religiosas. O autor aborda as maneiras como Plauto, ilustre comediógrafo latino, utilizou-se de mecanismos literários típicos de sua produção para atrelar comicidade à figura do superstitiosus, em três de suas peças. Nos textos, a superstitio é atrelada à linguagem do seruus, um tipo recorrente à comédia plautina, conferindo a tal personagem rigidez e excesso religiosos perceptíveis ao público, transformando-a em motivo de riso da plateia.
Trazendo o cristianismo para o debate, Francimagda Almeida Avelino apresenta o texto Identidade e memória cultural cristã em espaços funerários na antiguidade tardia (séc. III-IV), o qual versa sobre a complexa relação da religião com a cultura romana por meio do estudo das práticas funerárias. Por meio do conceito de memória cultural, a autora demonstra como os cristãos constituíram seus espaços funerários como forma de demarcação de uma identidade cristã comunitária, no entanto, sempre em diálogo com o mundo greco-romano em um processo constante de ressignificação.
No campo dos estudos de gênero, Gisele Moreira da Mata compôs o artigo Identidade e alteridade nos discursos mitológicos na Atenas Clássica: política, gênero e poder, tendo em vista demonstrar a complexidade da relação entre os discursos mitológicos e a sociedade: ao mesmo tempo que o discurso mitológico designa a mulher ao papel de outro – “outra raça” – as leis de Péricles confeririam à mulher um papel central na constituição da cidadania Ateniense. Assim, o artigo questiona as concepções tradicionais a respeito do modelo Mélissa e reconsidera seu papel na sociedade Ateniense.
Partindo do questionamento da utilização do termo “demônio” – historicamente construído e ressignificado – para a designação de um conjunto amplo de entidades malignas que foram elaboradas e representadas por diferentes culturas presentes na antiguidade, Pedro Augusto Gomes revela nuances relacionadas às suas representações em textos hebraicos, no artigo Espíritos Malignos no Judaísmo Antigo. Através de tal esforço, o autor propõe modelos para avaliar as formas através das quais os escribas do Antigo Testamento foram capazes de atrelar um conjunto de características negativas a deidades antagonistas a Javé no texto.
O artigo Corpos Poluentes e Poluídos: Crenças sobre morte na Roma Antiga, de autoria de Yuri Augusto de Oliveira, trabalha a morte como um fenômeno histórico-social, demonstrando a relevância da poluição e da purificação dos cadáveres na sociedade romana antiga, que sistematizava uma série de rituais para afastar o perigo que a poluição dos corpos poderia representar para indivíduos, locais e objetos. Seguindo uma lógica própria, para os antigos romanos, tais rituais tinham como objetivos satisfazer a alma do morto e integrá-la às legiões dos manes, de tal forma a evitar que ela se tornasse um espírito vagante, preso ao plano dos vivos e os aterrorizando. Com tal artigo, o autor demonstra que os ritos funerários eram culturalmente percebidos como uma atividade necessária, e que sua correta realização era essencial na separação dos mortos – e sua consequente poluição – com relação aos vivos.
O artigo de Ruan Kleberson Pereira da Silva, Símbolos religiosos e realeza assíria: análise do relevo 23 da sala do trono do palácio noroeste de Assurnasirpal II, traz uma análise fora do escopo da antiguidade clássica, demonstrando como poder, política e religião podem estar imbricados no contexto da sociedade mesopotâmica e, especialmente, no mundo assírio.
Por último, temos a resenha Entre a sensibilidade e a invisibilidade: uma compreensão do Jesus de Nazaré, de Douglas de Castro Carneiro, que apresenta o livro do professor André Leonardo Chevitarese Jesus de Nazaré: o que a História tem a dizer sobre ele. O texto apresenta um breve panorama da constituição da obra, seus principais argumentos e pontos de discussão. Para além da relevância temática para nosso dossiê, consideramos muito simbólico ter em nosso trabalho uma menção à obra do professor André Chevitarese, um dos pilares no desenvolvimento dos estudos acadêmicos do Cristianismo antigo no Brasil e expoente da discussão sobre a pluralidade das experiências religiosas, de forma geral.
Esperamos que esse dossiê possa colaborar para a difusão do saber científico acerca do tema e que possa suscitar novos diálogos, discussões e sínteses, a fim de continuarmos investigando as religiosidades antigas, bem como refletindo, nesse processo, sobre a nossa própria sociedade e nossas próprias religiosidades. Agrademos à Revista Mythos e a seu corpo editorial pela oportunidade de organização desse material, de grande relevância para os estudos antigos. Agrademos, igualmente, aos autores, que compartilharam conosco suas pesquisas, apresentando múltiplas e preciosas colaborações sem as quais não haveria esse dossiê.
Notas
1 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos?. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
2 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2ª ed. Portugal: DIFEL, 2002.
Organizadores
Deivid Valério Gaia – Professor de História Antiga – UFRJ.
Gabriel Paredes Teixeira – Doutorando do PPGHC – UFRJ.
Vanessa de Mendonça Rodrigues dos Santos – Doutoranda do PPGHC – UFRJ.
Referências desta apresentação
GAIA, Deivid Valério; TEIXEIRA, Gabriel Paredes; SANTOS, Vanessa de Mendonça Rodrigues dos. Editorial. Mythos – Revista de História Antiga e Medieval, ano 6, n. 3, p. 6-14, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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