Mulheres no Mundo Antigo parte II/Mythos – Revista de História Antiga e Medieval/2022
No início de 2021, a Revista Mythos lançou o dossiê Mulheres no Mundo Antigo. Pesquisadoras dos variados rincões do Brasil e da América Latina aderiram à chamada e a coleção de artigos planejada para um número se transformou em duas, uma publicada em meados daquele ano e esta agora, em 2022. Bons frutos do trabalho acadêmico em curso, desde meados dos anos de 1990.
Nesta trajetória, as contribuições das epistemologias feministas e de gênero, formuladas tanto no Brasil como no estrangeiro, têm sido cruciais na redefinição das abordagens teórico/metodológicas das pesquisas sobre as mulheres, na grande maioria realizadas por elas, cada vez mais presentes nos espaços acadêmicos (Rawson, 1995; Dias, 2019). Com o avanço das investigações no decorrer destes anos, cada vez mais compreendemos as possibilidades inúmeras dos significados de ser mulher, identificadas nas múltiplas identidades constituídas no cotidiano de cada tempo histórico (Wyke,1998; Candido, 2012). Avançamos em relação à noção de categorias fixas, universais e apenas biologizantes de feminino e masculino, definidas por uma essência, indelével, a-histórica e atemporal. Por meio dos debates, identificamos o espaço social como um campo plural, dinâmico, de conflitos e parcerias, composto não pela mulher, mas por mulheres, diferentes em suas singularidades étnicas e regionais; em suas trajetórias culturais e vivências sexuais; marcadas pelo acesso à liberdade jurídica, à educação e aos bens materiais, ou pela falta ou limitações deles.
São esses protagonismos femininos diversos, investigados em uma gama variada de fontes e por meio dos métodos criteriosos da pesquisa histórica, que os leitores encontrarão nos artigos ora publicados. O cuidado com a construção do conhecimento acadêmico é sempre importante, mas o é ainda mais neste momento de ataque sistemático à ciência e ao saber histórico, com a disseminação de ideias negacionistas e distorcidas do passado, apregoadas como imparciais e neutras, com o propósito de ocultar sistemas de opressão, domínio e exclusão das mais variadas ordens, do passado e do presente (Pinsky, Pinsky, 2021).
Atentos a estas questões, convidamos a todas e todos a conhecerem mais a respeito dos documentos e das questões que nos aproximam das mulheres do Mundo Antigo, neste número, em especial, daquelas dos universos egípcio e romano, no período que se estende até a Antiguidade tardia, já sob a influxo do cristianismo. Um breve resumo dos artigos dos temas discutidos, apresentado a seguir, permite avaliar a variedade de fontes, abordagens e objetos de estudo.
No artigo Macabéas, glórias e cerseis do Egito Antigo: representações sociais femininas e igualdades em discussão, os autores Ana Carolina Moreira Barcelos, Fernando Cordeiro dos Santos, Keversson William Silva Moura e Rodrigo Henrique da Silva traçam um panorama dos aspectos gerais da condição feminina no Antigo Egito e uma suposta igualdade de gênero por meio de representações sociais femininas e de representações artísticas de Hatshepsut, a mulher-faraó.
Jéssica Kotrik Reis Franco, em “Cleópatra VII: Rainha Dos Reis”: A Monarquia Helenística na última Faraó do Egito (69-30 aec) investigou a Monarquia Helenística no reinado de Cleópatra VII e a incorporação tanto de elementos simbólicos e culturais das monarquias do Oriente Próximo, como da tradição assíria-babilônica de titulação real, que deu a Cleópatra o epíteto de Rainha dos Reis.
Em Templo de Dendera: o sagrado feminino e o cuidado com a vida no Egito antigo, Dandara Bonfim Leopoldo reflete sobre a mulher na História com uma abordagem relacional do mundo a partir do Templo de Dendera, do Antigo Egito, por meio de suas iconografias e musicalidade. Ao longo do tempo, no choque entre culturas, a sociedade egípcia foi distorcida e colocada em laboratório pelo conhecimento ocidental sobre o oriente. Neste artigo, busca-se compreender a sua ontologia.
No artigo “As senhoras da casa”: um estudo sobre gênero e alimentação no Egito Antigo, Aline de Amorim Cordeiro Viana apresenta uma análise de como os conhecimentos sobre gênero se interseccionam aos estudos sobre alimentação no Egito Antigo e como a reduzida análise de fontes causaram confusões acerca da temática da alimentação, limitando-a ao universo feminino.
Lennyse Teixeira Bandeira, em Mulheres e magia: os rituais de consulta aos mortos na Grécia Antiga, analisa as formas de organização e procedimentos ritualísticos de contato com as potências sobrenaturais e as relações com o feminino na Grécia Antiga.
Isabela Pissinatti, no texto Agripina Menor em Suetônio: o olhar masculino sobre o protagonismo feminino, reflete a respeito da representação de Agripina Menor na obra As Vidas dos Doze Césares, de Suetônio, com a intenção de dialogar com as fontes antigas por meio de uma discussão de gênero.
Em As mulheres nas epístolas plinianas: exempla e ousadia, Renata Cerqueira Barbosa faz uma leitura a contrapelo da Epístolas de Plínio, o jovem, e identifica a sua ambivalência ao tratar de uma antiga matrona romana, negociadora ousada que patrocinava grupos de pantomimas e adorava jogos, também um negócio como fonte de renda e de educação de seu sobrinho.
As moedas romanas das imperatrizes Sabina, Faustina I e Faustina II são analisadas por Jaqueline Souza Veloso no texto A velificatio como um paradigma de construção de gênero em moedas romanas dedicadas a imperatrizes. A autora considera a hipótese de que nelas há um direcionamento iconográfico voltado para uma divisão de gêneros ao ter como base a representação da velificatio.
Um ato de amor, um ato cívico: Plutarco e o casamento, de Maria Aparecida de Oliveira Silva, é dedicado a uma análise dos preceitos e reflexões de Plutarco sobre a educação das crianças, a procriação, a maternidade e a relação entre os irmãos e os cônjuges, apresentadas em diversos tratados do autor.
Jéssica Honório de Oliveira Silva, em Atuações femininas no Principado de Nero: um estudo de caso, estuda as atuações femininas no Império Romano a partir da acusação de conspiração feita por Júnia Silana e Domícia contra Agripina, mãe do imperador, em um episódio do Principado de Nero encontrado nos Anais de Tácito.
Em Velhas, poderosas e assustadoras: as Anus Veneficae como fonte de medo na literatura latina, Gabriel Paredes Teixeira analisa passagens da literatura ficcional latina dos séculos I a.C. e II d.C. nas quais as anus ueneficae, velhas com poderes sobrenaturais, são representadas como responsáveis pelo medo provocado a outras personagens.
Em Agrippina the elder and her military attitude, Taís Pagoto Bélo apresenta a figura de Agripina, a Anciã, e tece uma crítica ao androcentrismo daquela época diante de suas atitudes. A autora confronta a representação feita da Anciã em fontes literárias e a sua importância naquele momento identificada por meio de moedas.
Gabriela Isbaes, em As “recatadas” e intelectuais mulheres romanas nos afrescos de Pompeia, apresenta uma discussão da educação das mulheres romanas e a sua participação na sociedade por meio da análise de pinturas do sítio arqueológico de Pompeia, fundamentada em estudos feministas e de gênero.
Luiza Batú Rubin e Semíramis Corsi Silva, em A paixão de Perpétua e Felicidade: corpo, gênero e a escrita de uma mulher cristã do século III e.c., tratam da narrativa de martírio dos cristãos convertidos Víbia Perpétua, Felicidade, Revocato, Saturnino e Secúndulo deixada em texto do início do século III EC, escrito por Perpétua, Saturo e outro autor anônimo. A partir deste registro, analisam aspectos do corpo e dos papeis de gênero atribuídos às matronas romanas e às mulheres cristãs.
No artigo A representação do feminino em Agostinho de Hipona, Daniel Ferreira Dias reflete como o discurso de Agostinho de Hipona instituiu um controle sobre o corpo feminino ao considerar o debate teológico travado com outras vertentes do cristianismo antigo.
Amanda Reis dos Santos, em Uma comunidade cristã não se faz apenas de preces e boa vontade, examina as possibilidades de administração patrimonial de ricas matronas, virgens e viúvas entre os séculos IV e V, lançando mão da História Cruzada como aporte metodológico para fazê-lo.
Suzana Chwarts e Quéfren de Moura, no artigo Ergue-te e pisoteia, bat tsion”: um estudo sobre a expressão “filha de Sião” na literatura profética da Bíblia Hebraica, analisam a expressão “filha de Sião” (bat tsion) no discurso dos profetas na Bíblia Hebraica, usada ora em oráculos de destruição e representação do juízo divino, ora em profecias de restauração e reafirmação do amor divino.
No artigo “Mãe, irmã, mestra…”: aspectos devocionais da relação entre Sinésio de Cirene e Hipátia de Alexandria, Sheila Adriana Von Graffen e Moisés Antiqueira dedicam-se à relação devocional estabelecida entre Hipátia de Alexandria e Sinésio de Cirene, a partir de três cartas escritas em 413 d.C. pelo discípulo Sinésio à sua mestra e filósofa Hipátia.
Por fim, no artigo de temática livre Reflexões acerca do corpo na Idade Média castelhana: uma breve análise do poema de Mio Cid, Lívia Maria Albuquerque Couto dedica-se ao estudo dos corpos de homens e mulheres do medievo castelhano apresentados no Poema de Mio Cid a fim de analisar como os preceitos da Igreja Cristã afetaram suas representações.
Ao final da leitura, sai-se com a constatação do quanto o estudo da temática feminina e das relações de gênero se desenvolveu, nas últimas décadas. Espalhou-se, também, a reflexão crítica e bem fundamentada à diversas regiões. Com a sua publicação, buscamos não só contribuir para o convívio e o respeito à diversidade, como para a inspiração de outras tantas e tantos jovens nessa senda: a liberdade das mulheres indica a liberdade de toda a sociedade (Rosa Luxemburgo em Gindin 2018).
Desejamos uma boa leitura!
Referências
CANDIDO, Maria R. (Org.) Mulheres na Antiguidade. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2012.
DIAS, Maria O. L. S. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças. In: HOLLANDA, Heloísa B. (Org). Pensamento feminista brasileiro. Rio de janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
GINDIN, Matthew. Rosa Luxemburg: the fearless radical who stood up to fascism everywhere. https://thewisdomdaily.com/rosa-luxemburg-thefearless-radical-who-stood-up-to-fascism-anywhere/, 2018. Acesso em 08 abril 2022.
HAWLEY, Richard; LEVICK, Barbara. Women in Antiquity. London/New York: Routledge, 1995.
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. (Orgs). Novos combates pela história. Desafios e ensino. São Paulo: Contexto, 2021.
RABINOWITZ, Nancy, S; RICHLIN, Amy (Ed). Feminist theory and the classics. London/New York: Routledge, 1993.
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana M; GROSSI, Miriam P. (Orgs.) Masculino, feminino, plural: gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998.
Organizadores
Lourdes Conde Feitosa
Pedro Paulo Funari
Referências desta apresentação
FEITOSA, Lourdes Conde; FUNARI, Pedro Paulo. Editorial. Mythos – Revista de História Antiga e Medieval, ano 6, n. 1, p. 7-13, marc. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]