Moralidades: norma e transgressão no Brasil contemporâneo | Aedos | 2021
Patrícia Rosa, prostituta e ativista feminista | Foto: Mariana Bernardes
A proposta deste dossiê surgiu do desejo de reunirmos reflexões em torno de práticas, discursos e políticas morais elaboradas no Brasil ao longo do período republicano. Nos últimos anos, o tema das moralidades tem pautado o debate público brasileiro e dividido opiniões. Por um lado, testemunhamos o recrudescimento de discursos que visam denunciar uma alegada ameaça ao que seriam os valores tradicionais brasileiros. Por outro, observamos um movimento de reação em amplos setores da sociedade, que veem em tais discursos um arremesso contra os direitos civis.4
Apesar das particularidades do momento atual, essa é uma questão que se faz latente em diversos períodos da nossa história, como testemunham inúmeros trabalhos já consagrados que, a partir de diferentes perspectivas, se debruçaram sobre o tema das normas e transgressões morais. Referências importantes são, por exemplo, o trabalho de Jurandir Freire Costa (2004) e o de José Leopoldo Ferreira Antunes (1999), que analisam a intervenção médico-higienista na instituição familiar e nos hábitos sociais brasileiros entre os séculos XIX e XX. No que diz respeito às normas e transgressões sexuais e de gênero, são imprescindíveis os trabalhos de Sueann Caulfield (2000) e Martha Abreu Esteves (1989) que, a partir de discursos médicos, jurídicos, políticos e eclesiásticos, discutem os usos e sentidos da honra sexual e suas intersecções com raça e classe no Brasil durante a primeira metade do século XX. Igualmente importantes nesse sentido são os trabalhos de Margareth Rago (1985; 1991) e Beatriz Kushnir (1996), que investigam códigos sexuais e de gênero em torno das práticas de prostituição feminina em capitais brasileiras entre os séculos XIX e XX, assim como a pesquisa pioneira de Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2003), que analisa a construção social e histórica da virilidade nordestina.5
Embora abordem de maneira mais específica questões de natureza sexual e de gênero, estes trabalhos têm comum o fato de demonstrarem como tais normas morais se relacionam com discursos médicos, jurídicos, religiosos e políticos, além de refletirem padrões artísticos e culturais. Trata-se de uma questão instigante, uma vez que demonstra o alcance e a importância das moralidades nos mais diversos âmbitos das relações sociais, o que podemos também constatar nos trabalhos reunidos neste dossiê.
Além de discutirem normas e transgressões morais em momentos distintos da história brasileira, os quinze artigos que compõem este número ilustram de maneira exemplar a variedade de fenômenos atravessados por estes temas. Nesse sentido, são analisadas moralidades de natureza sexual e comportamental, que constroem e reforçam estereótipos e expectativas de gênero, mas também os discursos e práticas moralizantes – e eventuais resistências a eles – no âmbito político, cultural, médico e jurídico. Como não poderia deixar de ser, tal variedade temática demanda abordagens teóricas múltiplas, além de intenso diálogo interdisciplinar.
Por esta razão, optamos por dividir este dossiê em três partes. A primeira delas, intitulada Histórias das mulheres e do gênero: representações, controle e resistência, reúne trabalhos que discutem norma e transgressão moral sob a perspectiva da história das mulheres e do gênero. Os artigos nos apresentam experiências de mulheres em contextos sociais distintos ao longo do período republicano, evidenciando o controle ao qual os corpos e comportamentos destas mulheres estavam sujeitos sob a égide da moralidade.
Em Rio, uma utopia sem amor: violência de gênero e homicídio contra mulheres meretrizes nas revistas policiais do Rio de Janeiro (1892-1925), de Wellington do Rosário Oliveira, são discutidas violências infringidas às prostitutas na cidade do Rio de Janeiro, no período entre 1892 e 1925. O autor utiliza como fontes as crônicas policiais da imprensa carioca, bem como as revistas sensacionalistas Boletim Policial, Vida Policial e Revista Criminal. Assim, são discutidas as percepções de gênero presentes nas narrativas de agressão e homicídio perpetrados contra as prostitutas. Além de apresentar um panorama da prostituição feminina no Rio de Janeiro desse período, Oliveira discute as intersecções entre discursos médicos e morais no controle social das trabalhadoras sexuais, inserindo a experiência de violência contra estas mulheres no contexto das políticas higienistas e “modernizantes” que caracterizaram a belle époque brasileira.
Em Ser mãe e esposa: gênero e subjetividades nas cartas de Elza Bertaso para sua mãe (1925-1929), Isabel Schapuis Wendling nos apresenta uma análise da escrita epistolar de uma mulher de família de elite do oeste catarinense. A partir de cartas escritas entre 1925 e 1929, a historiadora retraça a trajetória de Elza Bertaso, com interesse particular na maneira com a qual sua escrita de si permite uma leitura da formação da subjetividade da jovem mulher, procurando desvelar nessa escrita as expressões da sua subjetividade, do seu cuidado si e da construção e efetivação de seu papel social de mulher naquele contexto. A partir de uma história individual, e de relatos íntimos e cotidianos, a autora nos mostra a moralidade da família abastada do sul do Brasil e suas expectativas em relação ao papel da mulher no seio da família e da sociedade.
Taiane Anhanha Lima assina o artigo Representações de mulheres negras torcedoras nos campos de futebol de São Paulo no início do século XX, no qual discute como eram representadas as mulheres negras que frequentavam os estádios de futebol entre 1916 e 1920 na imprensa negra de São Paulo. A autora trabalha com notas publicadas nos jornais Getulino e A Liberdade, comparando os discursos acerca das mulheres negras torcedoras com que o que era dito – ou, mais frequentemente, o que era silenciado – a respeito destas mulheres nos jornais de grande circulação do Rio de Janeiro. Lima busca assim refletir em torno do duplo estereótipo que caracterizava a presença das torcedoras negras nos estádios de futebol: eram mulheres em um espaço público associado e majoritariamente frequentado por homens e, além disso, eram negras em um contexto no qual predominava um ideal feminino branco e restrito ao ambiente doméstico.
Finalizando a primeira parte do dossiê, Paula Ribeiro Ciochetto analisa os discursos elaborados pelos grupos feministas riograndenses Ação Mulher, Liberta, Gêmina, Gênese e Germinal em torno da descriminalização do aborto durante a década de 1980 no artigo “Um problema colocado na sociedade”: a questão do aborto e a luta pela sua descriminalização (Rio Grande do Sul, década de 1980). A autora utiliza como fontes as publicações produzidas pelos próprios grupos e entidades aliadas, além das páginas do jornal santa-mariense A Razão, no qual o coletivo Germinal divulgava suas ideias e proposições. Ciochetto procura assim identificar os argumentos mobilizados pelos grupos femininos da região, assim como as estratégias de comunicação e mobilização social por eles empreendidas.
A segunda parte do dossiê intitula-se Produções discursivas da ordem moral. Os artigos reunidos nessa sessão iluminam as relações de saber/poder construídas em torno da ordem discursiva das moralidades. São trabalhos que, a partir de diferentes perspectivas, discutem os mecanismos pelos quais normas de natureza moral foram – e continuam sendo – difundidas na sociedade, o que nos permite compreender seu aspecto dinâmico ao longo da história do Brasil contemporâneo.
Em Pedido de veto: o parecer 1755/75 e a censura de uma mulher diferente, de Cassandra Rios (1970-1975), Francisca Aline Cordeiro da Silva analisa os argumentos mobilizados no veto ao livro Uma mulher diferente (1965), da escritora brasileira Cassandra Rios. Cassandra foi o pseudônimo utilizado por Odette Rios que, entre as décadas de 1960 e 1970, se destacou como uma das autoras mais lidas – e a mais censurada – do país. A grande maioria de seus romances abordava o amor e a sexualidade entre pessoas que fugiam à norma heterossexual, em especial mulheres lésbicas e, por conta disso, foram considerados atentatórios à moralidade pública. Silva concentra sua análise no veto ao livro Uma mulher diferente, publicado em 1965, que se destaca na obra de Cassandra por trazer como protagonista uma travesti. A partir do parecer jurídico n° 1755/75, que protocola o pedido de censura ao livro, a autora discute a estrutura censória da ditadura civil-militar brasileira, enfocando seus aspectos morais.
Vitor Wieth Porto, em Honrados rio-grandenses: os duelos de honra por meio do jornal A Federação (1885-1910), apresenta a análise de cinco casos de duelos noticiados na imprensa do sul do Brasil. O artigo traz uma reflexão acerca dos sujeitos implicados nos duelos, sobre a maneira como estes eram noticiados pela imprensa local e também a respeito de como a prática de duelar era alinhada ao ideário burguês de honra da sociedade rio-grandense, no fim do século XIX início do XX. O Duelo era uma prática existente em diversos países do ocidente, inclusive na América, e ainda que cada país tenha suas especificidades, a grande maioria deles, segundo o autor, era motivada pela honra. O estudo dos cinco duelos contribui para o entendimento de como essa prática, que visa alcançar ou restaurar a honra – e está ligada a um código de moral tradicional que exalta o homem honrado e viril – é um valor cultural da sociedade rio-grandense no início do século XX.
Em Pelo civismo e pela moralidade: a sociedade brasileira pelas lentes da propaganda oficial da ditadura militar através da Agência Nacional (1970-1979), Julia Boor Nequete discute as representações da sociedade brasileira em quatro documentários produzidos pela Agência Nacional durante a década de 1970: Como se forja um chefe (1970); Comportamento na estrada (1970), Ministério da Previdência Social – INPS (1975) e O jovem estagiário (1975). Órgão de comunicação oficial do governo, a Agência Nacional difundia a propaganda dos governos militares em cinejornais, programas de rádio e documentários, como os que a autora analisa. A partir destes exemplos, Nequete demonstra como o regime instaurado pelo golpe civil-militar de 1964 procurou difundir a imagem de um “Brasil Grande”, no qual o civismo era apresentado como modelo de cidadania e moralidade. Como ressalta a autora, estas produções – por meio de suas imagens e narrativas – ressignificavam uma visão otimista do país, necessária à sustentação da Doutrina de Segurança Nacional, e contribuíram para a elaboração de um modelo de cidadania.
O artigo Breve história da maconha no Brasil e suas relações com a moralidade na formação da República, assinado por Luiza Lima Dias e Saulo Carneiro Pereira dos Santos, analisa os discursos morais em torno do uso recreativo de maconha no Brasil durante a primeira metade do século XX. Como demonstram os autores, a maconha começou a ser alvo de proibições entre os séculos XIX e XX e, no Brasil, esse processo foi marcado por discursos higienistas e positivistas, que associavam a planta à ideia de degeneração racial e moral. A partir destes discursos, Dias e Santos analisam os sentidos e imagens atribuídos à maconha, assim como a legislação elaborada no sentido de proibir o seu consumo, evidenciando noções de moralidade e racialização em torno da planta e seus usuários. Como demonstram os autores, os discursos médicos que vinculavam a erva à degeneração física e moral serviam para controlar os sujeitos considerados inapropriados pela moralidade da época, em especial as pessoas negras, uma vez que o consumo de maconha era então um hábito associado às populações africanas que foram escravizadas nas Américas. Nesse sentido, o combate à maconha serviu de justificativa para que grupos sociais historicamente marginalizados e perseguidos fossem alvo de políticas arbitrárias e frequentemente violentas.
Giovana Ilka Jacinto Salvaro, Ismael Gonçalves Alves Roberta e Adamoli Santin Leal assinam o artigo Produção discursiva de gênero em cursos populares mediados pela SATC (1960-1980): disciplina e controle dos corpos das mulheres, no qual discutem as produções discursivas de gênero nos cursos oferecidos pela Sociedade de Assistência aos Trabalhadores do Carvão (SATC) às esposas e filhas de mineiros em vilas operárias na região carbonífera de Criciúma, em Santa Catarina, entre 1965 e 1981. Criada em 1959 por empresários da indústria carbonífera para oferecer assistência social e formação técnica aos empregados e suas famílias, a SATC era conveniada com uma agremiação religiosa denominada Pequenas Irmãs da Divina Providência, cujas madres ministravam os cursos destinados às mulheres, o que teria contribuído para o caráter moralizante e normativo destas atividades. Como demonstram os autores, eram oferecidas às mulheres formações voltadas para o cuidado e a economia doméstica, reforçando assim estereótipos de gênero e expectativas comportamentais, legitimando atribuições e espaços compreendidos como femininos por determinada moralidade.
Júlia Souza Cabo, no artigo intitulado Releituras da Cultura Marginal nos anos 1980: o caso de Torquato Neto, investiga a memória construída em torno da chamada Cultura Marginal durante a redemocratização brasileira, tomando como exemplo o caso de Torquato Neto. Como demonstra a autora, o conjunto de manifestações artísticas e culturais elaboradas sob a égide da Cultura Marginal durante as décadas de 1960 e 1970 passaria por um processo de desvalorização na década seguinte. Embora constituísse um fenômeno transgressivo, na medida em que propunha um rompimento com os valores morais e estéticos mais amplamente difundidos durante a ditadura, a Cultura Marginal viria a ser criticada posteriormente como um arroubo individualista e despolitizado.
Em seu artigo, Cabo busca elencar os motivos que fundamentaram esta desvalorização a partir da análise das releituras então elaboradas em torno da obra e da trajetória de Torquato Neto, o “marginal referencial”. Dialogando com o conceito de mito elaborado por Roland Barthes, a autora demonstra como a vida, a obra e a morte de Torquato Neto foram mobilizadas nos diversos discursos elaborados em torno da Cultura Marginal no decorrer da década de 1980, fundamentando a crítica aos artistas e escritores marginais.
A terceira e última parte do dossiê, Sexualidades, dissidências e suas representações, agrupa artigos que analisam expressões, identidades, práticas e representações sexuais e de gênero, em especial aquelas que escapam à ordem heteronormativa determinada pelo sistema sexo/gênero/sexualidade.6 São discutidas, portanto, sexualidades dissidentes, sujeitos e grupos que criam estratégias de resistência à esta ordem e são alvos privilegiados de seus mecanismos de controle, assim como as representações do sexo e da sexualidade percebidas como pornográficas por transgredirem os limites morais mais amplamente difundidos em determina conjuntura.
Os livros do Xanxas: imprensa, política e circulação de literatura pornográfica em São João del-Rei (1889-1901), de autoria de Arthur Marinho Silva Vargas, narra a história cruzada entre as disputas de poder da política local de São João del-Rei e a um caso de vendas de brochuras pornográficas. Na primeira parte do artigo, o autor, por meio de fontes de jornais, se dedica a explicitar detalhadamente, as disputas políticas, em São João del-Rei, nos primeiros anos da República. Dois grupos disputavam o poder na cidade, um da situação, liderado por Joaquim Domingues Leite de Castro, e outro da oposição, representado pelo partido do Comércio e liderado pelo advogado, político e jornalista Carlos Sânzio de Avelar Botelho.
Na segunda parte, o historiador ilumina o caso do envolvimento de Carlos Sânzio no fomento da rede de circulação e vendas de livros ditos imorais do Rio de Janeiro para São João del-Rei. O caso foi explorado politicamente por seus inimigos e bastante noticiado pelos jornais locais. Ao unir as querelas políticas da cidade do interior de Minas Gerais e as acusações judiciais e públicas de Sanzio, Vargas tece uma trama que evidencia, ao mesmo tempo, os usos políticos da moral sexual e as redes de circulação de materiais pornográficos no início da república.
Johnatas dos Santos Costa assina o artigo Entre a norma e a transgressão: Uma história do jornal pornográfico O Rio Nu (1898-1916), no qual analisa O Rio Nu, principal representante dos jornais alegres, gênero periódico que se popularizou no Brasil entre os séculos XIX e XX. Graças ao seu humor malicioso e de fortes conotações sexuais, O Rio Nu foi percebido como pornográfico por amplos setores da imprensa e da sociedade durante o período em que circulou. Além de uma breve apresentação do jornal e de suas características, neste artigo Costa analisa o confronto entre o período e o então diretor-geral dos Correios, Joaquim Inácio Tosta, que em 1910 lançou uma circular proibindo a remessa postal do jornal sob o argumento de que ele era obsceno. O autor discute ainda os limites do caráter transgressor de O Rio Nu, lançando luz sobre seu conteúdo ambivalente no que diz respeito aos discursos morais mais amplamente difundidos no período: embora veiculasse imagens de mulheres nuas e textos de forte conotação sexual, desafiando assim os limites do moralmente tolerável na belle époque brasileira, tais imagens e textos não raramente reproduziam e reforçavam tabus e estereótipos sexuais e de gênero, entre outros.
Em Discutindo memória, lugar e identidades sob o prisma das sexualidades dissidentes, Rafael Chaves Vasconcelos Barreto, por meio de uma revisão teórica de conceitos e de uma observação participante, analisa a construção das identidades e da memória coletiva do grupo e dos sujeitos LGBTQI+7 em sua relação com o espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. Segundo Barreto, a exclusão social dos indivíduos LGBTQI+ tem efeitos diretos na formação de um espaço urbano que, em sua grande parte, é hostil e violento para esse grupo. Para escapar disso, eles recorrem a locais determinados onde podem socializar e vivenciar de maneira livre sua sexualidade, lugares estes que o autor chama de espaços de sociabilidade homoafetivos. A análise, por um lado, explica como as repressões da moral sexual heteronormativa afetam e reduzem a presença dos indivíduos LGBTQI+ no espaço urbano e, por outro, problematiza a criação de lugares destinados a esse público como uma maneira de se esquivar da violência, mas também como possível produtora de identidades e da formação de uma nova memória coletiva representativa das dissidências sexuais.
O artigo de Roselane Neckel, A “Ciência Sexual Moderna” e as “Verdades” sobre o sexo, analisa as relações entre dois tipos de discursos sobre a sexualidade humana: os relatórios Kinsey, Masters & Johnson e Hite, produzidos nos Estados Unidos entre as décadas de 1940 e 1970, e revistas brasileiras destinadas ao grande público, publicadas nas décadas de 1960 e 1970. Os três relatórios têm especificidades e objetivos diferentes, como nos apresenta Neckel, porém, de maneira geral, eles deslocam, dentro do universo científico, certos atos sexuais da categoria de perversão para pensá-los e analisá-los como práticas de busca de prazer e satisfação.
No contexto nacional da “revolução e liberação sexual” e do debate da “lei do divórcio”, as revistas EleEla, Nova, Pais & Filhos, Homem, Playboy e Cláudia publicavam textos com aconselhamentos e informações sobre sexo. Neckel nos apresenta como os colunistas dessas revistas de comportamento se apropriaram dos relatórios científicos para produzir um tipo de discurso mais acessível e atualizado sobre as práticas sexuais para seus leitores. A autora argumenta que as produções desses discursos, científicos e vulgarizadores, não são desprovidas de relações de saber-poder e, embora proponham rupturas com determinada moralidade, também colaboram para a criação de uma nova verdade sobre a scientia sexualis.
André Americano Malinski finaliza o dossiê com o artigo intitulado Gestos entre homens: relações masculinas delineadas por Raul Cruz como contraconduta em meio à crise da aids, no qual discute as representações masculinas na produção artística do curitibano Raul Cruz durante as décadas de 1980 e 1990, em meio à eclosão da pandemia de aids no Brasil. A hipótese levantada por Malinski é a de que a orientação sexual e a condição sorológica do artista possam ter influenciado a maneira como o artista compunha figuras masculinas. O autor discute como a culpabilização moral dos indivíduos soropositivos naquele contexto histórico refletiu na produção de Cruz, relacionando-a com a de outros artistas que expressavam a mesma preocupação em seus trabalhos. Para isso, dialoga com os conceitos foucaultianos de resistência e contraconduta e com os trabalhos de Susan Sontag em torno da crise de aids, defendendo que a atuação e a produção artística de Raul Cruz configurariam ações de resistência aos preceitos morais mais amplamente difundidos no período.
Trata-se, portanto, de um dossiê excepcionalmente plural, tanto pela variedade de temas e fenômenos analisados sob a perspectiva ampla das moralidades, suas normas e transgressões, como também pelo falo de que reúne contribuições de diversos campos do conhecido, em profundo diálogo interdisciplinar. Tal pluralidade demonstra, por um lado, a importância destas reflexões para um entendimento mais amplo de nosso passado, mas, sobretudo, para que possamos compreender e fazer frente aos desafios de um presente em que discursos morais reacionários – quando não francamente discriminatórios – ganham força no espaço público brasileiro.
Notas
4. Trata-se de uma questão que não escapa à análise de especialistas, como Lilia Moritz Schwarcz, que publicou recentemente o livro Sobre o autoritarismo brasileiro (2019), no qual analisa o momento político atual sob a luz de suas origens históricas e principais características. Um dos capítulos desta obra dedica-se justamente aos temas raça e sexo, marcadores sociais da diferença cujas construções e percepções são, historicamente, atravessadas por noções de moralidade. Desse modo, a autora discute temas como violência e desigualdade de gênero, cultura do estupro, homofobia, transfobia e suas intersecções com o racismo no projeto político autoritário brasileiro.
5. Estes são apenas alguns dos trabalhos mais importantes que se dedicaram à questão das moralidades na história brasileira e escapam a esta seleção sucinta outros tantos, assim como escapa o trabalho de autoras e autores estrangeiros que são referenciais teóricos incontornáveis quando o assunto são normas e transgressões morais. O exemplo mais notório nesse sentido é seguramente o de Michel Foucault, que dedicou inúmeras pesquisas aos mecanismos de vigilância e coerção normativa, inclusive no campo das sexualidades (2017; 2020), mas também o de Michelle Perrot (1988; 2005; 2007), referência inestimável no campo da história das mulheres; Alain Corbain, Georges Vigarello e Jean-Jacques Courtine, que organizaram as coletâneas História do Corpo (2008), História da Virilidade (2013) e História das Emoções (2020), além de terem assinado individualmente trabalhos importantes sobre estes temas; e de Peter Gay (1988; 1990), que investigou o amor e a sexualidade nas sociedades vitorianas, entre muitos outros.
6. Uma das autoras que discute estes conceitos e as implicações de tal ordem é Guacira Louro (2018ª; 2018b).
7. Lésbicas; gays; bissexuais; transexuais, travestis e transgêneres; queers, intersexuais e “mais”, que engloba as demais identidades e orientações sexuais e de gênero que escapam à norma heterossexual e cisgênera.
Referências
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: UNICAMP, 2000.
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (org.). História do corpo: da Renascença às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. História do corpo: da Revolução à Grande Guerra. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. História do corpo: as mutações do olhar: o século XX. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. História da Virilidade: da Antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2013.
_______. História da Virilidade: O triunfo da virilidade – O século XIX. Petrópolis: Vozes, 2013.
_______. História da Virilidade: A virilidade em crise? Os séculos XX-XXI. Petrópolis: Vozes, 2013.
_______. História das Emoções: da Antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2020.
______. História das Emoções: Das Luzes ao final do séc. XIX. Petrópolis: Vozes, 2020.
______. História das Emoções: Do final do séc. XIX aos dias atuais. Petrópolis: Vozes, 2020.
COSTA, Jurandir. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino – A invenção do “falo”: Uma história do gênero masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2003.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FERREIRA, José Leopoldo. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: UNESP, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 4:As confissões da carne. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
_______. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
______. História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
______. História da Sexualidade 3: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: A educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
______. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: A paixão terna. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
KUSHNIR, Beatriz. Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a.
______. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018b.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
______. Mulheres ou os silêncios da História. Florianópolis: EDUSC, 2005.
______. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil, 1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
______. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Organizadores
Marina Duarte – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC/UFF), editora e colunista do site historiadaditadura.com.br. Contato: erikacardoso@id.uff.br.
Erika Cardoso – Doutora em História pela Universidade Sorbonne Paris Cité em cotutela pela UNESP. Pesquisadora de Pós-Doutorado na Universidade Paris 8 vinculada ao Laboratório de Estudos de Gênero e Sexualidade (LEGS). Contato: marina.silva.duartee@gmail.com
Paulo César Gomes – Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF), pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC/UFF), fundador e editor-chefe do site historiadaditadura.com.br. Contato: pcgomesb@gmail.com.
Referências desta apresentação
DUARTE, Marina; CARDOSO, Erika; GOMES, Paulo César. Moralidades: norma e transgressão no Brasil contemporâneo: apresentação do dossiê temático da Revista Aedos. Aedos. Porto Alegre, v.13, n.28, out. 2021. Acessar publicação original [IF].