Não é nada fácil construir um dossiê, principalmente quando a temática ainda é muito pontual na historiografia brasileira. De fato, os estudos nacionais tendem a considerar o surgimento da propriedade como um dado, sublimando, muitas vezes, não somente os conflitos que a envolvem, como também o elemento-base da reflexão: a própria noção propriedade. Essa, queiramos ou não, é uma ficção jurídica, fundada e expressa como um contrato, sobre uma história da ocupação inventada.
Os textos aqui reunidos nos ensinam muito e vale dar a conhecer os argumentos aqui registrados. É digno de registro o artigo A Liga: resistência e organização política dos trabalhadores rurais (1962-64). Ao enfocar um período emblemático da política brasileira, Max Fellipe Cezario Porphirio aborda a atuação das Ligas Camponesas naquele período a partir de uma cuidadosa análise da publicação semanal A Liga. A reflexão de Porphirio descortina os discursos ali veiculados acerca dos problemas do campo, em especial sobre posse e propriedade da terra, suas nuances e contradições.
Não menos impactante é o artigo Terras nacionais e devolutas como fonte de receita para o Estado, de José Antônio Moraes do Nascimento. Com base em leis, atos e decretos do governo daquele estado e dos documentos produzidos por órgãos, como a Secretaria da Agricultura e Obras, Nascimento desvela os projetos do Estado, no alvorecer da República, que visavam comercializar terras devolutas no norte da região e seus trágicos desdobramentos: conflitos entre indígenas, caboclos e posseiros.
Queremos espaço verde: o Parque Municipal Henrique Luiz Roessler como parte da história da cidade de Novo Hamburgo (RS, Brasil), enfoca o processo de criação do parque na década de 1980. Para tanto, Fabiano Quadros Rückert e Elenita Malta Pereira apresentam uma análise do Jornal NH e os argumentos que visam justificar a fundação do parque. Ao fazer isso, os autores salientam os “inconfessáveis” interesses de um grupo imobiliário que objetivava a comercialização da área no entorno daquele espaço verde e público.
Karine Lima da Costa se pergunta “A quem pertence o patrimônio cultural? Propriedade em debate”. Em busca de respostas, da Costa nos apresenta uma reflexão acerca da noção de propriedade envolvendo, especialmente, os memoráveis artefatos egípcios sob a guarda de instituições de outros países. Ao utilizar como chave de análise as reflexões de Foucault, a autora analisa os discursos, que abrangem noções como de territorialidade e patrimônio universal, que visam (des)legitimar as reivindicações sobre a propriedade de bens culturais.
Das terras do Ceará, Mário Martins Viana Júnior e Samuel Carvalheira de Maupeou nos apresentam: Da produção camponesa familiar ao capitalismo: o Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas no Ceará (1988-2008). Neste texto, eles investigam a construção do Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas (PITR), pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), na região do Baixo Vale do Jaguaribe cearense. Tendo como base os dados do cadastro das pessoas atingidas diretamente e indiretamente pela obra, os autores analisam as transformações das relações de trabalho e as mudanças sobre a noção de propriedade da terra ocasionados pelo empreendimento.
Sob o título A ideia de autoria na industrialização do cinema: o caso ‘Doyen’ e a disputa com a Pathé (1898-1910), Luiz Felipe Cezar Mundim trata da lógica empresarial ligada à expansão do cinema. Tomando como foco a disputa judicial entre o médico Doyen, o cinegrafista Parnaland e a Sociedade dos Fonógrafos e Cinematógrafos, registro jurídico da Pathé, Mundim nos brinda com uma análise acerca da constituição jurídica da propriedade intelectual sobre a produção e expansão cinematográfica.
Em O Barão de Nova Friburgo e a formação da Fazenda Aldeia: sociabilidades e ampliação do complexo cafeeiro. 1849-1874, Rodrigo Marins Marretto esquadrinha o inventário post-mortem do Barão de Nova Friburgo, falecido em 1869, e nos apresenta uma análise da constituição das redes de sociabilidade – em especial com o francês João Paulo Troubat. Marretto nos fornece ainda os mecanismos de administração e ampliação da área de sua fazenda de café, após o falecimento do Barão.
Em Regime de propriedade de minas e jazidas na Primeira República brasileira: revisitando o caso das minas de Itabira e os interesses em disputa, Maria Letícia Corrêa assume o desafio de destrinchar as normas jurídicas acerca da exploração de minérios e os emblemáticos embates travados pelos deputados encarregados de elaborar a Constituição 1891. Além disso, para além da análise das iniciativas de regulamentação estatal da atividade implementadas na Primeira República (1889-1930), Corrêa destrincha também a polêmica relacionada à exploração de minério de ferro pela empresa inglesa Itabira Iron Ore Company Ltd, instalada em Itabira.
Em suma, o leitor mais atento há de reconhecer a importância dos textos aqui reunidos. Eles não nos contam agradáveis histórias. Ao contrário, eles trazem à luz facetas menos conhecidas sobre as propriedades, os direitos de acesso e – infelizmente – os conflitos. Boa Leitura, valerá a pena!
Organizadores
Márcia Maria Menendes Motta – Docente do Departamento de História e do PPGH da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do INCT História Social das Propriedades e Direito de Acesso e da Rede Proprietas
Marcos Nestor Stein – Docente do Colegiado de História e do PPGH da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Pesquisador do INCT História Social das Propriedades e Direito de Acesso e da Rede Proprietas.
Referências desta apresentação
MOTTA, Márcia Maria Menendes; STEIN, Marcos Nestor. Introdução. Tempos Históricos, v. 22, n.1, p. 14-16, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]
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