História, memória e práticas das periferias brasileiras, africanas e latino-americanas: cidadania, invisibilidade social e silêncio/Fronteiras- Revista de História/2022

Lá não tem moças douradas

Expostas, andam nus

Pelas quebradas teus exus

Não tem turistas

Não sai foto nas revistas Lá tem Jesus

E está de costas

(Chico Buarque)

Periferias (novo nome dos subúrbios, que é o título da canção de Chico Buarque, em parte transcrita acima) são, ao mesmo tempo, um campo amplo e muito pouco explorado pela historiografia brasileira, não sendo apenas lugares afastados dos grandes centros urbanos, mas também uma forma de viver, de se expressar e de se posicionar no mundo. Desse modo, é preciso pensar as periferias conjugadas com a crítica à colonialidade, uma vez que suas expressões e perspectivas de mundo estão diretamente associadas às classes populares, formadas em sua maioria pelas populações afrodescendentes e indígenas que foram relegadas aos diferentes direitos constitucionais, entre eles o direito à memória e à história. Assim, este dossiê tem uma perspectiva de pensar questões sociais e identitárias das classes trabalhadoras, considerando a imediata necessidade de revermos o eurocentrismo e a colonialidade que impôs as delimitações teóricas e metodológicas da historiografia brasileira ao longo de sua existência.

Quase sempre os trabalhos que pensam os fenômenos sociais ocorridos nesses lugares sui generis originam-se das ciências nossas irmãs, como a antropologia, o urbanismo, a geografia, a ciência política e a sociologia. Certamente que o estoque tradicional de problemas a serem tratados pelos historiadores brasileiros é imenso. Por outro lado, periferias enxergadas como lugares idílicos ou infernais, data de muito pouco tempo. Por assim dizer, as periferias, enquanto perspectivas decoloniais da historiografia, passam pelo diálogo com outras disciplinas, buscando não apenas novos métodos, fontes e problemas, mas sobretudo, novos saberes que estão presentes no modo de viver, que remete às histórias indígenas e africanas da América Latina e do Brasil, subjugadas pelas perspectivas que fizeram de nossa história uma espécie de “trajetória do herói” protagonizada pelo colonizador europeu.

Assim, o presente dossiê tem um conjunto de histórias e métodos marcados pelas perspectivas das periferias e não apenas pelo recorte do lugar ou do território, embora essa referência também tenha suas marcas nos artigos apresentados. Como se poderá perceber, as histórias aqui contadas tem se tornado costumeiras há muito pouco tempo na historiografia, sobretudo se considerarmos as formas como elas foram forjadas e como elas são contadas.

O par campo versus cidade reinou inconteste na historiografia brasileira até pelo menos os anos finais da década de 1970, tempo em que as grandes explosões demográficas das metrópoles do Sudeste tornaram impossível a invisibilidade dos subúrbios e das favelas encravadas, primeiramente, nos centros das maiores cidades dessa região e tidas como “mundo rural na cidade” (VALLADARES, 2005, p. 22).

Intenta este dossiê da Fronteiras: Revista de História constituir-se como espaço para apresentação e debate de pesquisas concluídas e em construção sobre o tema periferias urbanas. Em boa medida, os artigos constituem-se em exemplos que constituíram a crescente chegada ao ambiente acadêmico de habitantes das áreas periféricas – algo raro em um passado recente no Brasil – trouxe consigo o surgimento de um conjunto de pesquisadores preocupados com a problematização de temas relacionados com questões típicas das suas regiões de origem, em um esforço legítimo de compreensão das realidades possibilitadoras das dinâmicas próprias das áreas marginalmente localizadas sobre as quais uma série de estereótipos foram construídos ao longo do tempo, algo que inviabilizou, muitas vezes, a ocorrência de estudos mais aprofundados.

O artigo que abre este dossiê é do professor Paul E. Lovejoy, um dos mais reconhecidos historiadores africanistas. Seu artigo, Olaudah Equiano ou Gustavus Vassa: o que há em um nome?, nos leva ao mundo do escritor Gustavus Vassa, ou Olaudah Equiano, nos apresentando a polêmica sobre os significados do nome do autor de The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, the African (Londres, 1789). A polêmica reside nas formas como Equiano ou Vassa, em parte se relacionava com o seu local de nascimento. A escolha do nome que ele cotidianamente usava provoca questões sobre o modo como os estudiosos querem compreender o autor, mas também como o próprio homem se representava na época em que viveu e escreveu sua autobiografia.

Em seguida, Clairí Zaleski e Luiz Rufino, no artigo Fala a mulher da rua: narrativas do feminino e saber periférico com as pombagiras, ressaltam as múltiplas faces do feminino e suas batalhas cotidianas em um texto que aborda diálogos com narrativas sobre as pombagiras, suas presenças, saberes e trânsitos, propondo uma reflexão sobre o ser mulher a partir dos diversos aspectos do feminino que as inscrições do signo pombagira revela.

Ainda no terreno das religiosidades periféricas, no artigo Saci-Pererê e São Benedito: entidades negras, religiosidade e memórias da escravidão, Elaine Pereira Rocha trabalha com o mito do Saci-Pererê e a devoção a São Benedito, identificando-os como parte da tradição cultural brasileira que se estabeleceu, principalmente, a partir do século XIX. Fundamentalmente, o que a autora procura explorar é a oposição entre a imposição de um santo católico negro com características dóceis e o mito do Saci-Pererê, que ao contrário da docilidade e submissão, representa resistência e revolta ante a dura realidade da escravidão brasileira.

Thamires Guimarães de Oliveira segue no seu artigo, Em nome de Allah e de Orixá: conexões entre Lagos e Rio de Janeiro nos anos de 1890-1930, os passos de uma figura central para o grupo mina da cidade, no início do século XX. Trata-se de Emanuel Ojô, que liderava e financiava as viagens de seus conterrâneos da cidade de Lagos para a capital da República brasileira do período, ensinando a religião muçulmana e a inserção no mercado de “feitiços”, levando em consideração as questões políticas tanto de Lagos, que passava pelo chamado “Renascimento/Nacionalismo Yorubá”, quanto do Rio de Janeiro com as transformações sociais da Belle Époque e a perseguição às religiosidades de origem africanas.

Em Indígenas, caboclos e africanos: as periferias e o imaginário da independência do Brasil, Nielson Rosa Bezerra e Andrea Mendes analisam o processo de formação do imaginário da independência do Brasil nas periferias da sociedade brasileira. Eles demonstram que a inserção de caboclos, indígenas e africanos nas imagens representativas da independência do Brasil é fundamental para que as classes populares, na maioria das vezes concentradas nas periferias das grandes cidades, tenham sentido de pertencimento nos quadros políticos e sociais da nação brasileira, elaborando sentido popular orgânico para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil.

Erasmo Peixoto de Lacerda nos apresenta no artigo O cordel de Leandro Gomes de Barros: um retirante na capital pernambucana, um poeta entre dois mundos, uma análise da obra do poeta Leandro Gomes de Barros, que publicou seus cordéis em folhetos a partir da cidade de Recife, no início do século XX. Marginalizado e pensado como de menor importância entre os cânones literários, a obra do poeta é observada pelo autor do artigo como de alguém transitando entre o antigo e o moderno, entre o interior e a capital, entre o oral e o escrito, entre os ricos e os pobres, os letrados e iletrados.

O artigo População e ocupação de escravos, homens livres e libertos no Recôncavo da Guanabara, Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX, escrito por Moisés Peixoto Soares, nos apresenta as mudanças demográficas ocorridas em Jacutinga e Iguaçu, freguesias localizadas no Recôncavo da Guanabara, Rio de Janeiro, da virada do século XVIII às primeiras décadas do XIX. O autor mostra que tais mudanças se deram também em razão do achamento de metais nobres no interior do Brasil e, consequentemente, das estradas que foram abertas ligando o Rio de Janeiro à região das minas. Uma das transformações foi no perfil da população, já que houve incremento da entrada de estrangeiros, especialmente africanos e portugueses. E que, do intercurso sexual entre eles, originou-se uma sociedade mestiça, que se ocupou e, (sobre) viveu, mormente, da produção de alimentos.

O último artigo do dossiê, escrito por Adriano José de Sousa, tem como título Os transportes na formação urbana das periferias: a luta dos moradores de São Mateus pela circulação na cidade de São Paulo e trata das relações que ocorreram em São Mateus, atualmente Subprefeitura do extremo leste da cidade de São Paulo, entre os anos de 1950 e 1980, demonstrando como as mobilizações sociais pensaram e construíram parcela significativa do município em suas periferias.

Assim, o presente dossiê foi construído numa abordagem marcada por ser uma produção sobre periferias, sendo a maioria dos autores e autoras também periféricos. O desejo sincero dos editores é de que as características deste dossiê sejam cada vez mais importantes nos debates acadêmicos e no nosso cotidiano.


Referência

VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da Favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.


Organizadores

Nielson Rosa Bezerra – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: bezerranielson@hotmail.com https://orcid.org/0000-0003-2211-5389

Linderval Augusto Monteiro – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD). Dourados, Mato Grosso do Sul. E-mail: lindervalmonteiro@ufgd.edu.br https://orcid.org/0000-0003-3985-4188


Referências desta apresentação

BEZERRA, Nielson Rosa; MONTEIRO, Linderval Augusto. Apresentação. Fronteiras- Revista de História. Dourados, v. 24, n. 43, p. 9-13. jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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