A história da formação e do trabalho de professoras e professores de escolas primárias rurais possui uma grande potencialidade investigativa, pois permite o aprofundamento de várias temáticas correlatas no campo educacional, como a história da profissão docente e da escola, além da escolarização da infância e dos adultos e dos modos de disseminação da cultura letrada no meio rural.
Nos diferentes países da América Latina, a educação dos trabalhadores do campo tem se constituído historicamente em um desafio de inegáveis proporções. Não obstante, não se pode desconsiderar o papel relevante desempenhado pelas escolas rurais na escolarização da infância na América Latina. Por isso, a ampliação da produção historiográfica sobre esse tema, na última década, tem sido fundamental.
Nesse sentido, a proposta de um dossiê para tratar a temática da história da formação e do trabalho de professores rurais (1940 a 1970)1 decorre dos resultados obtidos no Projeto Formação e Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: PR, SP, MG, RJ, MA, MS, MT, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX), realizado sob a coordenação da Prof.ª Dr.ª Rosa Fátima de Souza Chaloba (Unesp). Este projeto, de natureza interinstitucional, apresentou como objetivo analisar a profissionalização docente no Brasil buscando compreender as políticas públicas empreendidas em âmbito nacional e estadual para a formação do magistério rural e as formas de recrutamento, carreira, salários e condições de trabalho dos professores do campo visando a contribuir para a escrita da história da educação rural no Brasil.
A temática elegida para nortear a investigação mencionada pautou-se no pressuposto de que a história da institucionalização da escola elementar é indissociável da história da profissão docente, uma vez que o magistério primário foi um dos primeiros coletivos de professores a se profissionalizarem, isto é, a exercerem uma ocupação especializada fundamentada em uma identidade comum. Pode-se mesmo dizer que o magistério primário se constituiu como uma das faces da consolidação dos sistemas nacionais de ensino e de expansão da escola elementar. Especialmente nas zonas rurais, onde predominaram as escolas unitárias (chamadas no Brasil de escolas isoladas ou multisseriadas), nas quais um professor ou uma professora ensinava crianças de diferentes idades e níveis de adiantamento em uma mesma sala de aula, essa centralidade do professor foi ainda mais nítida. Por isso, contar a história da educação rural recortada pelo ensino primário, pela história da formação e trabalho dos professores tem se mostrado uma alternativa profícua tanto da perspectiva metodológica quanto da produção do conhecimento histórico.
Por um lado, tal escolha permite contornar, em certa medida, as limitações das fontes documentais valendo-se da produção e do exame de fontes orais. A documentação sobre as escolas rurais costuma ser rarefeita e pouco preservada devido à localização desses estabelecimentos de ensino, a intermitência no funcionamento das escolas rurais, as dificuldades de provimento docente e o desaparecimento / fechamento da maioria dessas escolas pela ação deliberada dos poderes públicos e pelos desdobramentos do processo de intensificação da urbanização ocorridos na segunda metade do século XX. Dessa maneira, a produção e o exame de fontes orais possibilitam reconstituir por meio das memórias e representações dos professores, a experiência de escolarização no meio rural, as dificuldades enfrentadas, os limites da ação política e as diferenças e desigualdades educacionais vivenciadas pela população rural.
Por outro lado, em torno da problemática da formação sobressaem a prevalência e a importância dos professores leigos, os inúmeros modos de formação para a docência pela prática, assim como as iniciativas de formação específica nas Escolas Normais Rurais e diferentes propostas de formação de professores para as escolas primárias rurais.
No que diz respeito propriamente ao trabalho (ingresso no magistério, carreira, salários e condições de trabalho) desvelam-se aspectos ainda pouco conhecidos da profissão docente nas zonas rurais. O professor visto como trabalhador e a docência entendida como trabalho ensejam reflexões sócio-históricas sobre as condições do exercício da docência na sociedade capitalista cuja divisão do trabalho reafirma diferenças de gênero, raça e especificidades do mundo rural e urbano. Demanda, ainda, levar em conta a escola como organização social e o trabalho escolar (as tarefas realizadas pelos professores) relacionado a normas e a condicionamentos burocráticos, hierarquizados e organizacionais. Implica, pois, desnaturalizar a docência como trabalho feminino e as necessidades do trabalho na vida das mulheres e, dessa maneira, ter em vista os impasses e enfrentamentos diários dos mestres nas salas de aula, a constituição da profissionalidade, a centralidade e os sentidos sociais e culturais do trabalho dos professores (especialmente das professoras) nas comunidades rurais.
Por tudo isso, postular uma história da educação rural pela perspectiva dos professores é, antes de tudo, afirmar uma possibilidade temática, metodológica e interpretativa, cuja fecundidade bem se expressa no conjunto dos textos aqui reunidos, dos quais três são de autoria de colaboradores do Brasil e quatro de pesquisadores do exterior, sendo, neste último caso, dois artigos do México, um do Uruguai e outro da Argentina. No âmbito da temática da formação e trabalho de professores, embora os textos se apropriem de aspectos específicos e atinentes aos contextos investigados, subjaz a todos eles pontos de convergência no que concerne ao insuficiente investimento na formação de professores e na manutenção e conservação das unidades escolares rurais – o que as caracterizava pela rusticidade e precariedade – e aos inúmeros problemas enfrentados no exercício da docência. A persistência desses problemas, tanto no que diz respeito ao transcurso das décadas quanto na própria diversidade geográfica abordada pelos textos, enseja a reflexão, também presente na maioria dos artigos, sobre o papel que o mundo rural e as escolas aí instaladas desempenharam nas décadas de 1940 a 1970 no Brasil, Argentina, México e Uruguai.
Alejandro Ramón Herrero discute a educação rural na Argentina no período de 1905- 1960 com a preocupação de compreender quais foram os diagnósticos e as iniciativas oficiais para regulamentar e prover as escolas rurais e quais os limites destas ações. Pamela Ruth Reisin pesquisa a atuação do movimento pedagógico ruralista na formação de alunos do magistério e de professores no Uruguai entre 1940 a 1960. Tal movimento fundamentou-se em uma formação prática que contemplava as particularidades do trabalho de professores de escolas rurais. Oresta López discute os antecedentes e os desafios educacionais da profissionalização do magistério rural no México no período de 1940-1946 e dá visibilidade à sindicalização controlada pelo Estado, bem como a precariedade e feminização desse grêmio. Noely C. D. Garcia e Rosa Fátima de Souza Chaloba apreendem a formação e trabalho de professores no Estado de São Paulo entre 1940 e 1970 com ênfase para a memória de nove professoras de escolas rurais entrevistadas pelas autoras. Nilce Vieira Campos Ferreira investiga a formação de professores para as escolas rurais implementada no Brasil, entre os anos de 1950 a 1963, pela Campanha Nacional de Educação Rural. Josemir A. Barros, Márcia Jovani de O. Nunes e Andressa L. da Silva identificam e analisam os modos de ensinar, o trabalho de professoras rurais e infraestrutura de escolas diante da migração de colonos para a região amazônica (Rondônia) no período de 1955 a 1971. Arianna V. Hernández e Jesús Adolfo T. Holguín perscrutam a formação de estudantes normalistas e sua participação nos movimentos agrários em Chihuahua, México, na década de 1960, com atenção para as influências ideológicas da educação socialista do período Cardenista.
Com a publicação deste dossiê esperamos possibilitar aos pesquisadores que se envolvem com a temática da história da escolarização em meio rural uma compreensão mais ampliada acerca das questões relativas à formação e ao trabalho de professoras e professores de escolas rurais no Brasil. Acrescenta-se ao fato, a possibilidade de dilatar a análise por meio da colaboração dos autores estrangeiros que também pesquisam o tema e o analisam a partir de seus países de origem.
Nota
1 O recorte temporal toma como referência inicial as iniciativas da União em prol da expansão do ensino primário rural por meio da destinação de verbas, construção de escolas, prescrições e orientações para formação de professores. A referência final na década de 1970 justifica -se pela extinção desse modelo de formação e adoção de novas modelos a partir da implantação da Reforma do Ensino de 1° e 2 ° Graus (Lei 5.692/71). Nesse sentido, os textos que compõem este dossiê inscrevem-se no período de 1940 a 1970, com exceção do primeiro artigo que apreende o objeto situando-o no início do Século XX. Não obstante essa discrepância, consideramos que a análise empreendida por seu autor é importante para situar a discussão no contexto da Argentina e, por conseguinte, a baliza temporal é coerente com a problemática apresentada. Avaliamos, portanto, não haver prejuízos à coerência temporal que subjaz ao dossiê.
Organizadores
Rosa Fátima de Souza Chaloba – Universidade Estadual Paulista (Brasil). https://orcid.org/0000-0002-3905-7317 http://lattes.cnpq.br/6453276942134992 E-mail: rosa.souza@unesp.br
Sandra Cristina Fagundes de Lima – Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). https://orcid.org/0000-0001-7191-7914 http://lattes.cnpq.br/7347582428774239 E-mail: sandralimaufu@gmail.com
Referências desta apresentação
CHALOBA, Rosa Fátima de Souza; LIMA, Sandra Cristina Fagundes de. Apresentação. Cadernos de História da Educação, v.22, e146, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]
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