Habitar as cidades e o espaço urbano na América Latina dos séculos XIX e XX/Revista Eletrônica da ANPHLAC/2022
Na América Latina, desde a segunda metade da década de 1970, a cidade despontou na História como categoria de imaginação e de pensamento social. Desde então, a cidade e o mundo urbano, além de lugares onde as pessoas habitam, vêm sendo interpretados e vistos como espaços em que diferentes classes sociais, culturas, estilos de vida, políticas e temporalidades se manifestam. Neste primeiro momento, a categoria de cidade latino-americana foi utilizada para abarcar todo o espaço nesta parte do continente. Era como se a diferença entre México, Havana, Bogotá, Caracas, Lima, La Paz, Buenos Aires, Montevideo, fosse apenas a disposição no mapa, pois, sob esta perspectiva, os problemas que estas cidades capitais enfrentavam seriam os mesmos.
Essas abordagens destacaram que desde 1880, quando se iniciou um entre os vários ciclos de expansão urbana na América Latina contemporânea, o crescimento desordenado, a falta de habitação e a pobreza foram problemas cruciais para se pensar o espaço urbano. Portanto, naquela ocasião, nada mais óbvio do que tentar construir formas de refletir sobre as questões das grandes cidades latino-americanas.
Ainda neste período surgiram as comparações entre as capitais da América Latina com as da Europa e dos Estados Unidos. Deste modo, muitas vezes, as cidades latino-americanas, vistas como cópias de suas correlatas europeias e estadunidenses, foram tratadas como um conjunto de espaços vazios e sem condições de adquirir uma originalidade que lhes seria própria. Portanto, na melhor das hipóteses, a modernidade das cidades latino-americanas seria incompleta e a modernização estaria sempre por se fazer. O conjunto de experiências históricas e a peculiaridade de cada uma delas não bastava. Era preciso que fossem, no mínimo, exatamente como Londres, Nova Iorque e, especialmente, Paris.
A despeito das projeções difusionistas dessa historiografia, cada cidade adquiriu sua própria forma. Buenos Aires e Montevidéu, viram, na passagem do século XIX para o século XX, os imigrantes superarem em quantidade a totalidade da população nacional. Isto modificou, em larga escala, a morfologia urbana. A este processo seguiram-se outros como a abertura de grandes avenidas; as demolições de edifícios antigos para construção de novos, mais monumentais e eloquentes, capazes de representar a grandeza e a bonança das novas nações; o início da migração de pessoas do campo para as cidades; e o surgimento da pobreza urbana, marcada pelos problemas de habitação e de ocupação desordenada do espaço.
Outro aspecto, talvez, mais curioso e não menos importante, foi a adoção de técnicas que iam desde o modo como o espaço era planejado até o uso da eletricidade. As cidades, neste caso, expandiram-se ao ponto de parecer não terem mais passado e nem história, afinal, era necessário apagar quaisquer vestígios de desordem, irracionalidade e pobreza. Todavia, esses apagamentos, além de revelarem o curso das mudanças, também vinham impregnados de historicidades e temporalidades que, na tentativa de serem abolidos, marcaram a construção do tecido cultural e dos diferentes conflitos de classe, projetos políticos que, além de povoarem esses ambientes, até hoje habitam nosso presente. A cidade, então, não é apenas um lugar em que se mora. É, sobretudo, onde a vida em suas infinitas faces ganham um sentido.
Foram estes sentidos, aliás, que arquitetos, escritores, intelectuais e políticos procuraram, cada um a seu modo, criar, imaginar e interpretar. Às vezes, pelo contraste, quando a cidade foi vista como oposta ao campo, idealizado como uma Arcádia em que os seres, em meio a uma vida pastoril, encontravam-se em harmonia com a natureza. Às vezes, pelo pessimismo, quando a cidade foi entendida como um Leviatã de concreto que ao se estender em direção ao infinito consumiria a tudo e a todos que nela habitam. Às vezes, pelo desbunde, por ser a cidade um produto da racionalidade humana, marcando o controle da natureza e das suas forças, outrora, incontroláveis. Às vezes, também, pela tentativa de recuperar um sentido antigo da pólis, em que um conjunto de pessoas tinham direito à cidadania, podendo participar dos destinos políticos das comunidades.
A cidade, então, passa a ser concebida intelectualmente por meio de uma urdidura entre a imaginação e a vivência. Torna-se um espaço onde a experiência encontra diferentes horizontes de expectativa. Daí que surgem as visões sobre os modos de habitar as cidades e o espaço urbano na América Latina e também as suas diferentes histórias.
Sendo assim, resta salientar que na história da América Latina, a cidade e o urbano são, ao mesmo tempo, espaços e conceitos que atravessam e moldam a política, a sociedade e a cultura do continente. O renovado interesse pela história das cidades latino-americanas trouxe consigo novas perspectivas e ampliou o entendimento do que é o fenômeno socioespacial do mundo urbano e o fenômeno cultural da cidade. Indo além das fronteiras disciplinares, os trabalhos históricos mais recentes, em diálogo com a Sociologia, a Antropologia, a Geografia e outras disciplinas, passaram a incorporar ao estudo das cidades e do mundo urbano novas categorias que tornam as discussões sobre o passado mais dinâmicas e matizadas. Uma dessas categorias é o “habitar”, entendido neste dossiê como possibilidade transformadora pela qual os sujeitos dão sentido ao espaço do qual participam individual e coletivamente.
Em outras palavras, é quase um consenso, nas reflexões sobre as cidades na América Latina que, entre os séculos XIX e XX, elas passaram por profundas transformações técnicas, arquitetônicas e sócio-espaciais que impactaram as práticas e os imaginários urbanos em circulação. Das representações literárias aos discursos políticos, elas foram exaltadas e também rechaçadas. Seus habitantes, em maior ou menor grau, expressaram curiosidade, preocupação e entusiasmo diante dos processos de modernização. Intelectuais e representantes do conhecimento técnico se debateram entre o frenesi pelo progresso e a nostalgia de um passado em que o mundo parecia ser mais simples, sem os vaivéns que as transformações urbanas, a migração e a emergência das massas provocavam no tecido social.
Desse modo, as leitoras e os leitores têm diante de si um dossiê que reúne artigos que tratam historicamente da cidade e da experiência de habitar o espaço urbano latino-americano dos séculos XIX e XX. Diferentes autores e pesquisadores, ao apresentarem textos resultantes de investigações que abordam perguntas e diálogos vinculados à história das cidades e à história urbana pela ótica do político, do social e da cultura, põem em perspectiva as interrelações entre as dimensões físicas, políticas e territoriais que convergem na configuração histórica das cidades, bem como os imaginários e as práticas relacionadas ao habitar.
Assim, os textos deste dossiê lançam novas questões teóricas e relacionadas à leitura de fontes, aos estudos de caráter metodológico e discussões historiográficas sobre o passado das cidades e do habitar, ligados ao fenômeno urbano.
Dois artigos tratam das cidades finisseculares do século XIX, pelo prisma da modernidade: Viviane da Silva Araújo, em “Tensões da modernidade na cidade latino-americana: a Buenos Aires letrada de Miguel Cané (1880-1905)”; e Mariana de Albuquerque Gomes, em “As cidades rubendarianas: imagens da modernidade nas elaborações estéticas modernistas de Rubén Darío”. Os dois textos, balizados por debates da História Intelectual e da História dos Intelectuais, tratam da crítica que a elite letrada teceu sobre a modernidade e seus desdobramentos.
Viviane da Silva Araújo, professora da UNILA, concentra sua análise na cidade de Buenos Aires a partir do pensamento de Miguel Cané, um dos intelectuais da Generación de Ochenta. Analisando obras ficcionais e não ficcionais de Cané, Araújo discute como o encanto e o desencanto diante da modernização urbana fizeram com que a cidade na América Latina adquirisse um papel idealizado entre as elites letradas que recorriam a imagens nostálgicas para responder às demandas de um presente marcado pelo desenvolvimento e pelas transformações sociais que escapavam ao seu controle.
Mariana de Albuquerque Gomes (ganhadora do prêmio ANPHLAC de melhor tese em 2022 na categoria de História da América Independente-do século XIX a 1920) aborda os modos de flanar pela modernidade entre finais do século XIX e início do século XX a partir da obra do escritor modernista Rubén Darío. Acompanhando-o pelas viagens entre os continentes americano, europeu e africano, Gomes interpreta a importância das cidades para Darío na compreensão dos sentidos da vida moderna. Para isto, recorre à crítica que o poeta nicaraguense esboçou sobre as consequências da mercantilização da arte e do avanço da técnica amparada cegamente na ideologia do progresso.
Ainda tratando da relação entre história das cidades e modernidade, mas já na segunda década do século XX, George Leonardo Seabra Coelho, em “A cidade fantástica do Martim Cererê (1927) e a cidade estática do Fervor de Buenos Aires (1923): poetizações das cidades sul-americanas”, tece um estudo comparativo entre as obras do brasileiro Cassiano Ricardo e do argentino Jorge Luis Borges. Entrelaçando as relações entre Cidade, Literatura e História, Coelho procura compreender as formas de poetizar e representar a experiência urbana através de obras escritas no contexto das vanguardas artísticas e de intensa modernização.
Avançando na discussão sobre a cidade latino-americana, o dossiê conta com três artigos que abordam questões relacionadas ao planejamento urbano e, em especial, às políticas públicas feitas para mitigar os efeitos das expansões e modernizações desenfreadas.
Leonardo Faggion Novo, em “‘Paz, saúde, família, casa própria e justiça social’: os debates sobre habitação no I Congreso Panamericano de la Vivienda Popular”, analisa as atas do I Congreso Panamericano de la Vivienda Popular com o objetivo de precisar os significados atribuídos ao ato de habitar, debatidos pelos profissionais reunidos em Buenos Aires no ano de 1939. Este evento, patrocinado pela União Pan-Americana, é visto como marco de uma série de publicações e encontros realizados nas décadas anteriores que elegeram a habitação como questão central para os projetos de modernização nacional. Deste modo, Novo procura discutir aspectos pan-americanistas e transnacionais das políticas habitacionais no continente americano do período entreguerras.
María José Bolaña, discute, em “Segregación urbana en el Estado benefactor: la política de barrios de emergencia y el desalojo urbano en Montevideo (1952-1958)”, o impacto da política de bairros de emergência em Montevidéu, enfatizando a participação de setores políticos preocupados com os ideais de republicanismo e igualdade em meio a um processo de segregação urbana. Por meio de uma análise diacrônica, Bolaña trata do surgimento da política de habitação de emergência, sua discussão no órgão legislativo municipal e a sua implementação, enfatizando que a origem de política habitacional era uma decisão mais ideológica do que técnica.
Camila Ferrari e Eulalia Portelo Negrelos, em “O conjunto habitacional na produção da metrópole na América Latina entre as décadas de 1930 e 1970: um olhar a partir de São Paulo”, apresentam o debate sobre a habitação urbana na América Latina a partir do estudo dos projetos de conjuntos habitacionais. Elencando políticas habitacionais estatais, as autoras fomentam um debate sobre a metropolização e o desenvolvimentismo para compreender como o planejamento urbano tratou do bem-estar dos trabalhadores industriais. É neste sentido que as autoras, por fim, usam a experiência de São Paulo para construir uma compreensão transnacional deste processo.
Eustáquio Ornelas Cota Jr., em “Um projeto sobre arte latino-americana a partir de São Paulo: a Bienal Latino-Americana nos ensaios críticos de Aracy Amaral e Marta Traba (1970s)”, trata dos diálogos sobre a I Bienal Latino-Americana de São Paulo, realizada em 1978, presente nos ensaios e textos publicados por Aracy Amaral e Marta Traba, duas grandes intelectuais da crítica de arte latino-americana. Partindo da hipótese de que a I Bienal Latino-Americana de São Paulo deu uma condição privilegiada à cidade, Cota Jr. também mostra como a capital paulista consolidou-se desde então como privilegiado polo cultural para a América Latina por meio das artes.
Indo para a América do Norte, José Guillermo Celis Romero, em “Vida nocturna, urbanización y entretenimiento. Los cabarets de Guadalajara como experiéncia de habitar una ciudad mexicana en el siglo XX”, estuda as tensões entre as diretrizes governamentais para organizar a cidade e as práticas socioculturais de seus habitantes.
Ainda na área da história cultural, mas de volta à América do Sul, temos o trabalho de Suelen Caldas de Sousa Simão, “Cartografias da sociedade: bairros e condomínios fechados e seus impactos nas relações e narrativas das exclusões sociais”. Analisando documentários de curta-metragem produzidos por renomados diretores argentinos, a autora analisa como estes se apresentaram como a expressão de um descontentamento em relação à forma contemporânea de organizar o espaço urbano e como exprimiram uma ruptura em relação à cidade e seus habitantes, atravessados pelo impacto de políticas neoliberais na Argentina.
Regina Simon da Silva e Ramon Diego Câmara Rocha, em “A cidade como espaço de encontro na literatura de Julio Cortázar”, observam o espaço urbano não apenas como elemento de transição para outros espaços e analisam como ele se torna um ponto de encontro em que diferentes perspectivas do real convergem para evidenciar rasuras e contradições sociais.
Por fim, mas não menos importante, o artigo de Frank Andrew Davies, “A colonialidade do ‘problema da favela’: ensaio sobre a cidade latino-americana”, em um exercício de pensamento social, discute a relação entre a colonialidade dos saberes, a favelização e a subalternidade das cidades na América Latina. Partindo de referenciais teóricos dos estudos decoloniais e das relações Sul-Sul, Davies vislumbra uma continuidade que reatualiza aspectos do passado colonial e que imprimem uma forte carga de racialização no espaço de segregação das cidades latino-americanas como as favelas, os palenques e as villas miseria.
Este número ainda traz um artigo livre, uma entrevista e uma resenha. Beatriz Vieira e Cairo de Souza Barbosa, em “Imaginação literária da América em O caminho de Santiago, de Alejo Carpentier”, por meio de um conto do escritor francocubano, analisam as dimensões estéticas e históricas para discutir o conceito de civilização na América Latina. Angela Meirelles e Cristiane Checchia entrevistam a historiadora chilena Claudia Zapata, da Universidade do Chile, abordando diversas temáticas, dentre elas o processo dos protestos que levaram à Assembleia Constituinte. Na resenha, Guillermo Jajamovich apresenta o novo livro de Adrián Gorelik – “La ciudad latinoamericana: Una figura de la imaginación social del siglo XX” – autor fundamental para pensar a cidade na América Latina.
Como é possível perceber, as colaborações deste número trazem reflexões importantes sobre este tema – o habitar as cidades na América Latina -, que é fundamental na história recente do nosso continente.
Uma boa leitura a todos, a todos e a todes!
Organizadores
Elisabet Prudant – Professora e pesquisadora pós-doutoral ANID/Fondecyt no Departamento de História da Universidad de Santiago de Chile.
Pedro Demenech – Professor e pesquisador de pós-doutorado, com bolsa FAPERJ Nota 10, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Referências desta apresentação
PRUDANT, Elisabet; DEMENECH, Pedro. Apresentação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, v.22, n. 34, p.1-7, ago./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]