Experiências intelectuais negras: Brasil e diásporas/Estudos Históricos/2022
A experiência intelectual negra é um tema de pesquisa que, nos últimos anos, tem sido sistematicamente debatido por diferentes ramos do conhecimento, em particular na História e nas Ciências Sociais. Ela tem composto um desafio, seja pelas fontes de difícil acesso, pela invisibilidade histórica de sua existência — invisibilidade que todos os artigos deste dossiê problematizam e questionam, cada qual à sua maneira — ou mesmo uma concepção inadequada e excludente do que seria a produção intelectual. A ideia para a construção do dossiê “Experiências intelectuais negras: Brasil e Diásporas” partiu do diálogo dos organizadores, cientistas sociais, em parceria com colegas de História, em diferentes eventos acadêmicos, sobre a aproximação temática dos assuntos de suas pesquisas e a percepção de que esse campo analítico dava sinais inequívocos de consolidação.
Além dos desafios já mencionados, as dinâmicas contextuais e históricas que o racismo contra pessoas negras adquire nos espaços em que opera acrescentam novas camadas de complexidade a nosso tema, ensejando comparações analíticas tão arrojadas quanto cuidadosas. Todavia, as dificuldades não impedem a constatação de que intelectuais, negras e negros, estiveram presentes em diferentes momentos de produção e disputa das ideias, de implementação de projetos públicos de mudança social e de diferentes lutas emancipatórias em contextos nacionais e transnacionais. Desafiar o esquecimento ou a pseudovalorização anedótica, desvendando processos de invisibilização violentos, em diferentes intensidades, constitui-se também num problema de fôlego para a prática de pesquisa.
A produção bibliográfica sobre as chamadas questões raciais, tanto no Brasil quanto em territórios situados além das fronteiras brasileiras, no espaço da circulação atlântica e além, impactadas diretamente pelo antigo comércio escravista, é antiga e vasta. Porém, tanto as publicações destinadas ao controle médico-jurídico das populações negras desses territórios variados quanto aquelas voltadas para fomentar o debate político, passando pela riquíssima seara de estudos acadêmicos sobre essas mesmas populações, suas formas de habitar e conviver, seus símbolos e constrangimentos, mantiveram, surpreendentemente, uma característica em comum. O tema da raça adquire um aspecto concreto e exteriorizado nos seus diversos traços ou contribuições culturais, sinais diacríticos e fronteiras étnicas ou, mais recentemente, marcadores sociais da diferença. É verdade que a imposição social direta e as experiências raciais explícitas são componentes constitutivos desses sujeitos, mas está longe de reduzi-los. Cair neste equívoco significaria incorrer, inadvertida e novamente, em práticas de racismo.
Além disso, mesmo levando em conta o referido acúmulo de conhecimento sobre as vivências raciais no Brasil, no chamado Atlântico Negro e em outros contextos transnacionais, constata-se que a condição de sujeitos reflexivos, capazes de pensar sobre sua existência e compará-la com outras ainda é negada a indivíduos ou coletivos negros — notadamente nas memórias públicas, materializadas e oficializadas em currículos escolares, monumentos, histórias, espacialidades e narrativas oficiais. Felizmente, o tema em destaque alcançou um patamar analítico relevante nos últimos anos, visando à recuperação de trajetórias, obras, ativismos políticos e presenças religiosas em espaços institucionais ou informais de intelectuais negras e negros, movimentos antirracistas e anticolonialistas, projetos de solidariedade internacional ou ainda de histórias localizadas de violência e perseguições contextuais. A bibliografia crítica é crescente e promissora, abrindo novos caminhos para a reflexão. Neste dossiê, temos exemplos muito animadores do que tem sido produzido recentemente nessa direção.
Há um aspecto do duplo, em termos de reflexões sobre a experiência moderna negra, que está presente na própria história das Ciências Sociais e é importante recuperar aqui, essa crítica à modernidade vivenciada pelos seus Outros já estava presente no argumento do sociólogo William E. B. du Bois sobre a dupla consciência:
É uma sensação estranha, essa condição dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos de outros […]. E sempre sentir a sua duplicidade-americano e negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados, dois ideais que se combatem em um corpo escuro […]. Ele simplesmente deseja que alguém possa ser ao mesmo tempo negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da oportunidade brutalmente batidas na cara (Du Bois, 1999: 54).
Solicitando análises originais do duplo vínculo, a dupla valência das ideias de silêncio, esquecimento, apagamento e ausência, tivemos rendimentos analíticos significativos sobre vivências intelectuais racializadas, tratando especialmente de questões de comunicação, cooperação e associativismo e, finalmente, valorizando as reflexões que todos eles produziram sobre sua condição, sobre o racismo e a discriminação, sua experiência moderna. A experiência intelectual negra é um componente crítico da modernidade ocidental, capitalista, burguesa e patriarcal. Ela precisa ser discutida, especialmente no que importa como insubordinação crítica e vital às realidades racistas, sexistas, misóginas, transfóbicas, colonialistas e neocolonais a que os sujeitos da modernidade foram submetidos.
Os artigos aprovados foram organizados sob uma lógica cronológica e temática:
- a ideia de comparação de um mesmo assunto por autores distantes na diáspora;
- a investigação sobre a experiência da diáspora negra, seus sentidos e a circulação das ideias, implicando a análise da solidariedade internacional em contextos históricos específicos;
- o tema clássico dos “estudos de autores” revisitado pela experiência intelectual negra;
- a possibilidade de novas abordagens para essa área de estudos, que está em diálogo com a crítica interseccional e o debate sobre políticas públicas de ações afirmativas.
O primeiro texto do dossiê, “Entre o braço ativo e a muralha babilônica: o lugar da escravidão nas obras de Manuel Querino e Lino Dou y Ayllón em 1916”, de autoria de Ynaê Lopes dos Santos, aproxima as reflexões daqueles intelectuais a respeito da experiência escravista no período do pós-abolição em seus respectivos países, Brasil e Cuba. A historiadora sugere que as interpretações de ambos anteciparam interpretações posteriormente consagradas no tratamento positivado dado à presença negra no pensamento social brasileiro e cubano. E marca o fato de que mesmo a condição compartilhada de intelectuais negros, em países marcados pela escravidão e pelo racismo, produziu respostas e posicionamentos distintos em suas trajetórias e análises, o que complexifica o debate sobre o assunto do dossiê.
O próximo texto, “Começos: a diáspora afro-caribenha, autores e temas”, assinado por Cauê Flor, é o primeiro dos artigos que tratam da diáspora negra como um problema teórico, tendo o espaço caribenho uma origem privilegiada em suas reflexões. O cientista social mobiliza um conjunto de pensadores originários de alguns países do Caribe para problematizar a duplicidade do pertencimento intelectual deles, bem como compreender aquele local como uma pletora de produções instigantes ao longo do século XX, de interpretações sobre a diáspora e a circulação de ideias a respeito da condição negra, além de pôr em discussão esse assunto.
Na mesma senda, no terceiro artigo, Matheus Silva tratará da experiência do “Associativismo e redes de circulação de ideias no Caribe britânico: a experiência do Left Book Club in Jamaica”. Valendo-se das trajetórias de Richard Hart, George Padmore, Victor Gollancz, entre outros, temos neste trabalho a oportunidade de ver uma Jamaica e um Caribe que poucos conhecem, imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial e num momento de grande efervescência sociopolítica, apresentada num espaço surpreendente, um clube do livro transatlântico, que permite observar a questão anticolonial e anticapitalista na óptica negra. A surpresa da escolha do enfoque analítico e a abordagem inovadora também marcam o artigo de Pablo de Oliveira Mattos, “A intelectualidade negra e a experiência soviética”, em que o eixo mais comum da história dos movimentos antirracistas é deslocado para o Leste. Acompanhamos debates muito pouco divulgados, na interseção entre marxismo, anticolonialismo e antirracismo, temos acesso à história da diáspora negra na União Soviética depois da revolução bolchevique e ainda vemos, sob outra perspectiva, a trajetória de autores clássicos, como McKay e Du Bois.
Percorrendo a análise da trajetória de intelectuais específicos, o trabalho “Um Tolstói africano: André Rebouças e um outro Ocidente (1889–1898), de Robert Daibert e Hebe Mattos, busca recuperar um momento decisivo na trajetória de André Rebouças (1838– 1898), já próxima do fim, quando, no exílio, encontra-se em viagem pelo continente africano. Ao recuperar um repertório de leituras, o artigo sugere a influência literária e política da obra de Liev Tolstói, em voga no período, também sobre o pensamento de Rebouças. Além disso, indica o problema da dupla consciência da modernidade como possibilidade de leitura da experiência do intelectual brasileiro: estar no exílio, aderir ao liberalismo e ser monarquista, bem como ser brasileiro e africano ao mesmo tempo, desenraizado de ambas as experiências históricas.
É interessante observar os diálogos possíveis com o artigo de Magno Santos, intitulado “Aos píncaros da serra, invadindo o sertão: Theodoro Sampaio e a invenção do limite meridional no Brasil”, que busca analisar a contribuição decisiva do engenheiro, geógrafo e pensador social negro entre os anos de 1896 e 1912 na tradicional revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Aluno de Rebouças, mas em outro momento e posição em relação à República, Sampaio encontra-se produzindo uma história territorial, ajudando a construir uma narrativa para São Paulo, como uma história nacional. Entre o deslocamento e o enraizamento, apresentam-se algumas tensões sobre a dimensão racial e a produção intelectual de pensadores negros.
Avançamos no tempo e alcançamos a produção intelectual dos anos 1960, nos quais investigações analisam as obras de duas intelectuais negras pouco conhecidas da bibliografia não especializada. O primeiro texto, de Cyntia Rodrigues, trata de “Narrativas e memórias de escritoras etnicamente situadas na literatura de ficção do Brasil — Anajá Caetano”. O artigo narra a pesquisa, de caráter etnográfico, pela figura de Caetano, desaparecida no tempo e no espaço, com breves menções em memórias e obras como as de Eduardo de Oliveira e Oswaldo de Camargo. As considerações de Rodrigues sobre “a busca” por Caetano na paisagem literária, seguindo pistas do texto e paratexto da obra mostram aspectos de uma dificuldade na reconstrução do percurso de intelectuais negras e negros no Brasil.
Desafio semelhante é assumido pelas historiadoras Juliana Barreto Farias e Maria Aparecida Oliveira Lopes em suas análises sobre “Nize Isabel de Moraes: memórias de uma historiadora na Senegâmbia”. Tratando da trajetória de Moraes que, entre 1960 e 2015, morou e trabalhou no Senegal como historiadora e pesquisadora, as autoras descortinam um contexto muito interessante e importante de experiências coletivas de intelectuais negras e negros brasileiros e senegaleses, mostrando quão intrincadas são as relações políticas e intelectuais da diáspora negra, permeadas pelas dificuldades das relações internacionais, o sexismo, os constrangimentos da vida acadêmica em períodos autoritários ou democráticos, a duplicidade de pertencimento e de um cenário incerto de pós-colonialismo, em que os sujeitos encontram-se construindo, com as ambiguidades e as dificuldades do processo, novas lógicas de interlocução política e das relações intelectuais.
A dinâmica coletiva da experiência intelectual negra ganha outro patamar analítico no dossiê, com o artigo de Isís Roza, a respeito de “Intelectuais negras e negros partícipes de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros: práticas e produções teóricas”. Os NEABs estão articulados com a histórias das ações afirmativas no Brasil, especialmente nas universidades federais, congregando docentes e discentes antirracistas em espaços de representação intelectual e disputas políticas e acadêmicas. A autora busca flagrar tais experiências por meio da trajetória e da memória coletiva. Esses dois componentes de recuperação de experiências são fundamentais para discutir invisibilização e práticas sociais de apagamento e esquecimento, especialmente no âmbito acadêmico, desde a representação física, memória visual, presença em currículos e políticas de citação de bibliografias, acesso a fomento para pesquisa e permanência na universidade.
Dessa maneira, o artigo da antropóloga Silvana de Souza Nascimento é também uma contribuição instigante ao dossiê, com o texto “Epistemologias transfeministas negras: perspectivas e desafios para mulheridades múltiplas”. A autora focaliza sua análise no pensamento e na atuação de intelectuais transfeministas negras brasileiras institucionalizadas em universidades nacionais. Isso permite o debate de agendas de investigação que passam pelo feminismo negro e a noção de intelectual de maneira crítica. Para tanto, recupera uma história da circulação da ideia de transfeminismo, sua luta social e intelectual, no exterior e no Brasil, marcada pela interseccionalidade de classe e raça, associada a gênero. Intelectuais como Hailey Kass, Megg Rayara, Keila Simpson, Jaqueline Gomes de Jesus e Letícia Nascimento têm seus trabalhos e ativismo escrutinados, apontando para uma agenda de pesquisa promissora em matéria do tema deste dossiê.
Esse conjunto de artigos mostra, de forma eloquente e muitas vezes tocante, que nem tudo foi perdido, pelo contrário, a dupla modernidade negra que, simultaneamente, havia sido integrada involuntariamente e fez voluntariamente a crítica a processos de violência, exploração e trocas transnacionais paradigmaticamente assimétricas e muitas vezes reputadas como indizíveis, pode e deve ser estudada. Inclusive, a própria ideia de que algo não consegue ser expresso, não chega à consciência ou mesmo que tais experiências intelectuais racializadas foram efetivamente invisibilizadas e silenciadas chega aqui ao seu limite.
Contra todas as expectativas, os textos deste número especial da Revista Estudos Históricos deixam patente que a comunicação e o compartilhamento de vivências, lutas e escutas diversas sempre foram a marca dessa macrorregião tão mítica quanto histórica, tão anônima quanto autoral, tão vernacular quanto extraordinária chamada de Diáspora Negra. Para seguir os rastros desses intelectuais orgânicos — recuperando o vocabulário de Antonio Gramsci, que inspirou justamente de Paul Gilroy e Stuart Hall aos estudos subalternos de outro oceano —, contudo, é necessário adotar metodologias arrojadas e abordagens sensíveis, contornar certas quizilas óbvias e desafios menos evidentes.
O primeiro deles é o puro e simples desinteresse que, por fim, dá sinais de arrefecimento. Outro seria a perspectiva exclusivamente localista, ensimesmada, que desdenha os diálogos mais amplos que os protagonistas dos artigos que vocês lerão a seguir souberam fazer em condições tantas vezes adversas e precárias. A última dificuldade, talvez mais importante delas, é a recusa a olhar sobretudo para as relações, as quais são necessariamente complexas, transformacionais e reflexivas, contentando-se com termos e objetos substantivados, imediatos ou mediatizados de forma reificadora, destacados de seus contextos ou, pior ainda, com corpos e imagens obsessivamente recorrentes.
Lembramos, como um convite à leitura e à guisa de conclusão, que a memória e o esquecimento, sua ausência perversa, não são simples relações sociais dentre outras, eles praticamente definem tudo aquilo que um dia quisemos chamar de sociedade ou de história. É disso que, afinal, são feitas as condições de possibilidade de qualquer futuro. Esperamos, com todas as autoras e os autores constantes neste dossiê, que ele seja mais justo, solidário e inclusivo.
Referências
DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.
Organizadores
Mário Augusto Medeiros da Silva – Universidade Estadual de Campinas – Campinas (SP), Brasil. Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: mariomed@unicamp.br https://orcid.org/0000-0003-1938-8722
Vitor Queiroz – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre (RS), Brasil. Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail:queiroz.avila@ufrgs.br https://orcid.org/0000-0003-1735-4203
Referências desta apresentação
SILVA, Mário Augusto Medeiros da; QUEIROZ, Vitor. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 35, n. 77, p.351-357, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]