A insurreição é da ordem da cólera e da alegria,
não da angústia ou do tédio.
Peter Pál Pelbart
Quando, nos idos de 2018, uma onda reacionária ascende como possibilidade que viria a se confirmar na política brasileira, o debate sobre o “ser” de nosso tempo ganha contornos novos e, ao mesmo tempo, passa a dialogar com um passado não tão distante. As entranhas da política brasileira se abriam para contemplar vozes que outrora levantaram-se contra a democracia, nesse momento esgrimindo-se contra outras que lutavam para defendê-la, em um ato de insurreição que esbarrava constantemente na indagação feita por Michel Foucault quando de sua cobertura da Revolução Iraniana para o jornal francês Le Monde: seria inútil revoltar-se? 1
Os anos seguintes vieram e as insurreições pareciam acontecer na ordem do impossível. À eleição democrática de um fascista, passando pela emergência de uma pandemia, o mundo e, sobretudo, o Brasil, submeteu-se a um estado de exceção, entendido em seu sentido estrito, o de uma circunstância alheia ao modo com o qual a contemporaneidade ordenava a vida e os acontecimentos. No caso brasileiro, o estigma do autoritarismo, pairando sobre o nosso tempo, por um lado submetiam a uma sufocação – barulhenta ou silenciosa – das existências não-canônicas, ao mesmo tempo que proporcionavam vozes que incomodavam o poder vigente, acontecendo em diferentes frentes de batalha e, principalmente, no território potente da semântica.
Existir e resistir passaram a se tornar questões de ordem quando os ataques partem da política e do ar respirado. Resistir pela atividade democrática direta, resistir pelas atividades da cultura, resistir, principalmente, em manter-se vivo. Assim passou-se a processar a vida contemporânea quando o conjunto de experiências vivenciadas no Brasil e no mundo contemporâneo, notadamente a partir dos fortes abalos sofridos pelas democracias, bem como da crise sanitária desdobrada da pandemia de Covid-19, estabeleceu novos marcos para se pensar o tempo e a história.
Estabelecendo um novo regime de dizibilidades e visibilidades sobre as condições que marcam a relação dos sujeitos com o mundo, tais experiências proporcionam um olhar diferenciado sobre o viver, o sentir e o narrar, configurando, assim, modos outros de construção da História enquanto vida e enquanto saber.
Parte desse processo é a compreensão da já aqui apontada necessidade premente de resistir. Tomar, como indicou Friedrich Nietzsche, retomado por Michel Foucault, a própria vida como obra de arte, estetizando, assim, a existência em forma de um amplo conjunto de representações do passado e do presente.2
Contemplando trabalhos que versam, no âmbito do passado e do presente, para o amplo debate que configura os modos de existir e de resistir, este dossiê pretende refletir a respeito das múltiplas configurações históricas que articularam essas duas dimensões que costumam caminhar de mãos dadas. Nesse sentido, percebendo a cidade como um lugar de resistência, Micael Lazaro Zaramella Guimarães propõe uma análise sobre as transformações urbanas sofridas pela cidade de São Paulo no início do século XX. Uma vez pensada como “cidade disciplinar”, atendendo aos poderes vigentes, incide sobre ela os meandros do futebol, esporte que passa a dividir espaço com outras diversões civilizadas e chamar atenção de segmentos da sociedade, que passam a atuar como torcedores.
Ainda observando as configurações disciplinares, nesse caso voltados para o discurso e a prática médica, Márcia Barros Valdívia toma a pandemia de Covid-19 como instrumento para diagnosticar o presente e buscar no passado elementos para se observar as continuidades e descontinuidades presentes nas diferentes pandemias ocorridas no mundo ocidental, dentre as quais a varíola e os miasmas. A cidade, aqui também vista como esse espaço de saber e poder, organiza-se mediante as emergências de saúde pública de forma a docilizar os corpos do sujeito a serem curados, seja submetendo-os aos tratamentos, seja estabelecendo sobre eles instrumentos de controle de circulação.
O mundo urbano não é o único espaço de disciplina a ser observado. Também os regimes ditatoriais, com destaque aqui para o ocorrido no Brasil entre 1964 e 1985, configuram instrumentos de repressão ante os quais sujeitos se colocaram como personagens da resistência. Dentre esses personagens, encontra-se o Dom Jorge Marcos, bispo da região de Santo André (SP) no período entre 1954 e 1975, personagem do artigo de Felipe Cosme Damião Sobrinho. Na análise de sua trajetória e de suas relações com o movimento operário, o autor estuda os modos com os quais se estabeleceu com ele a criação de um novo modelo de autoridade eclesiástica.
Ainda na dimensão das relações com a ditadura encontra-se o trabalho de Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, cujo estudo voltou-se para uma reflexão sobre as políticas culturais presentes no Brasil entre os anos 1960 e 1970, sobretudo aquelas relacionadas com as universidades e as instituições culturais de então. Nesse sentido, deu-se ênfase à luso-tropicologia de Gilberto Freyre, ao Movimento Armorial de Ariano Suassuna e à sociologia paulista de Caio Prado Júnior e seus contemporâneos, responsáveis por delinear formas vitoriosas de dizer o que seria a cultura nacional.
Por fim, ao resenhar o livro Mordaça: história de música e censura em tempos autoritários, de autoria de João Pimentel e Zé McGill, Edinei Pereira da Silva analisa de que modo a obra conecta o campo da cultura musical e a ditadura militar no Brasil, percebendo as maneiras de resistir ao jugo da censura federal e apontar os problemas vigentes no país de então.
Em todos os artigos e na resenha reunidos, uma pergunta existe para diferentes respostas: de que forma o ato de existir, de ver e sentir o mundo que nos cerca implica, também, em formas de resistir aos diferentes autoritarismos que atravessam o nosso passado e presente?
Boa leitura!
Notas
1 FOUCAULT, Michel. É inútil revoltar-se? In: ______. Ditos e escritos. V. V. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
2 FOUCAULT, Michel. Uma estética da existência. In: ______. Ditos e escritos. V. V. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
Organizadores
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí. Colíder do GT História, Cultura e Subjetividades.
Márcia Barros Valdívia – Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do NEHSC. Docente História da Arquitetura e da Arte. E-mail: darasherazade@yahoo.com.br
Referências desta apresentação
BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco; VALDÍVIA, Márcia Barros. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, v.1, n. 28, p. 1- 5, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]
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