Consonâncias entre História e Música/Caminhos da História/2022
História e Música não são apenas dois campos disciplinares, mas também dois universos de saberes e de experiências inseparáveis. Não por acaso tem se revelado nas últimas décadas uma vasta profusão de trabalhos e reflexões; desde teses, dissertações, artigos, debates, ensaios, dossiês em periódicos, livros, até cursos específicos sobre o tema. Realizar um balanço desse processo, sobretudo a partir das conquistas temáticas e metodológicas ofertadas pelas experiências interdisciplinares é um dos desafios que se coloca com o intuito de avançar para além do “estranhamento” com essa sugestiva interface entre campos de conhecimento. Em outras palavras, já não cabe pensar ou se surpreender com fronteiras, pois as práticas de pesquisa e de redação que envolvem temas de história e de música estão suficientemente amalgamadas para que possamos naturalizar e expandir suas consonâncias.
A proposta deste Dossiê é, portanto, apresentar estudos decorrentes desse encontro entre a História e a Música. Em seu título propõe que as interações entre estes dois campos podem se dar de forma consonante. Eis que podemos vislumbrar uma rica historiografia trazida e representada por cada um dos colaboradores deste dossiê, como também observar as principais abordagens e tendências analíticas contemporâneas, dado que estamos diante de pesquisadores e de pesquisadoras em plena atividade e aperfeiçoamento de suas investigações. Para além disso, não se pode esquecer que também música e memória caminham juntas no desenvolvimento próprio das práticas socioculturais humanas. Sendo a memória, em toda a sua vastidão de significados, um dos principais tecidos do fazer historiográfico.
Em artigo intitulado “Como conhecemos o passado?”, David Lowenthal já aludia à função fundamental da memória de “não preservar o passado, mas sim adaptá-lo a fim de enriquecer e manipular o presente” (LOWENTHAL,1998, p.103). São desta forma que testemunhos orais, materiais, simbólicos nos chegam, dentre os quais a música. Carregando em suas sonoridades, ritmos, danças, textos e imagens a memória em sua função fundamental. Por isso, os artigos deste dossiê não versam tão somente na experiência histórica e sonora da música, mas também em seus desdobramentos culturais mais amplos.
Naturalmente pois, como dizia o historiador Nicolau Sevcenko ao percorrer um caminho também pertinente para pensar a consonante relação que aqui nos interessa. Investigando as raízes xamânicas da narrativa, Sevcenko conclui sugestivamente que “no princípio era o ritmo”, o qual explicaria muito do poder mágico da narrativa, de sua capacidade de transcender a combinação de palavras e o enredo, “o lugar de onde ela é enunciada, a pessoa que a emite, os símbolos que subjazem a situação da exposição são muito mais significativos” (SEVCENKO, 1988, p.120). Em tempos remotos a figura do xamã já agregava toda esta performance comunicativa,
isso porque a técnica mnemônica, para a retenção das incontáveis tradições míticas, base de todo saber da comunidade, se fundamenta toda em padrões rítmicos […] Neste contexto, não existe narrativa que não seja metrificada, não existe recitação que não seja cantada, não existe canto que não seja dançado (Idem, 1988, p.126).
A música continuaria, pois, a ser usada em outros contextos como elemento de coordenação no apoio cativo da memória. De modo que, a Música antes de se amalgamar à História como disciplinas irmanadas, já o estava assim na experiência vivida, como consonâncias cotidianas. É daqui que passamos a refletir esta consonância conceitualmente, primeiro pelo vislumbre de Murray Schafer, que nos coloca diante da importância das “paisagens sonoras”, lembrando que nestas os mais pessoais dos sentidos, o tato e a audição, se encontram nas mais baixas frequências, quando sons se tornam táteis (SCHAFER, 2001, p.28). O ritmo também aqui coordena a experiência mnemônica, e a audição surge como “um modo de tocar a distância, e a intimidade do primeiro sentido funde-se à sociabilidade cada vez que as pessoas se reúnem para ouvir algo especial” (Idem, 2001, p.28).
Por isso, a análise da relação entre música e história pode apresentar uma perspectiva privilegiada para a compreensão de diversos processos históricos, sociais e culturais. Isso porque a música engloba um conjunto de sociabilidades e sensibilidades capazes de revelar projetos e anseios de diversos grupos e camadas sociais, como um importante recurso de memória e identidade.
A partir disso, é importante pensar como a ideia de consonância, que vimos até aqui no campo da experiência, foi ganhando historicamente sentidos que não podem ser ignorados quando agregados ao campo de estudos musicais enquanto conceito. Pois, em música esta noção é comumente relacionada a um padrão em que a escuta segue os parâmetros ocidentais e eurocêntricos, sendo considerada como um conjunto de sons harmoniosos, “agradáveis” ao ouvido. O próprio conceito do som que é “agradável” pode ser questionado tendo em vista que a música não se configura como uma linguagem universal e sim como um fenômeno que se expressa de forma particular nos termos da cultura a qual ela faz parte (MERRIAM, 1964).
Sendo assim, não é possível considerar que este conceito de consonância se aplique igualmente para culturas musicais distintas. Por exemplo, um ouvido ocidental moldado nos padrões eurocêntricos ao escutar o Gagok, um gênero musical tradicional da Coreia do Sul, certamente não considerará tão consonante quanto uma ópera de Mozart. Essa constatação também corrobora com a visão de John Blacking (1973) que ao definir música a entende como “sons humanamente organizados”. Portanto, contextos culturais diferentes podem definir formas distintas de se organizar os sons.
As discussões de conceitos como os de consonância são importantes na medida em que expõem questionamentos acerca da forte influência da colonialidade sobre a produção de conhecimento. Adendo relevante, visto que muitas das reflexões apresentadas neste Dossiê refletem e questionam parâmetros dessa natureza. Não pretendendo nos aprofundar nesse debate, gostaríamos apenas de evidenciar que a opção por utilizar este termo no título remonta à ideia de que as áreas da História e da Música soam juntas nos textos que compõem este Dossiê. Essa prática interdisciplinar entre estes dois campos envolve diversos tipos de interação, conforme aponta Barros (2021)
(1) a música como objeto de estudo para a História (a História da Música, por exemplo); (2) a música como fonte histórica que pode ser utilizada pelos historiadores (isto é, os documentos sonoros e realizações musicais como fontes para que os historiadores possam estudar aspectos diversos da história, e não apenas, necessariamente, a história da música); (3) a música como meio possível para encaminhar representações da História (obras musicais tematizando a história como universo de acontecimentos, ou mesmo obras musicais que tomem para si a tarefa de falar sobre a História, agora entendida como campo de saber); (4), por fim, a Música como campo de saber ou de possibilidades que pode contribuir significativamente para uma renovação da própria História como disciplina ou campo de conhecimento.
A música, além de ser objeto de estudo para a História, de se constituir como uma fonte histórica ou como um meio possível para encaminhar representações da História, configura-se como um campo de investigação científica que também tem se debruçado acerca da pesquisa histórica. Essa última perspectiva é contemplada neste Dossiê, o qual apresenta também textos de pesquisadores e de pesquisadores da área da Música que utilizam os aspectos históricos não apenas para contextualizar os seus fenômenos de investigação, mas que tem como foco a própria perspectiva histórica. Estes artigos revelam a diversidade da produção do conhecimento científico-musical, abordando a historicidade sob as lentes interpretativas não somente da Musicologia, mas também da Etnomusicologia.
A partir disso, a leitura dos sete artigos que compõem este Dossiê evidenciam não só as consonâncias entre história e música, como também nos contam histórias, percursos, vivências e ciências com múltiplas perspectivas, oferecendo um painel temático diversificado tanto para estudiosos do tema quanto para o público em geral. A começar pelo texto de Michael Yanaga que aborda o legado africano nas Américas, evidenciando uma discussão sobre as festas domiciliares de santos católicos que são celebradas na Venezuela, no Brasil, na Colômbia, no Equador e na República Dominicana. Ao propor um estudo comparativo-histórico-etnográfico, o autor realiza uma leitura das dimensões musicais, estruturais, sociais e cosmológicas destas festas americanas em uma perspectiva histórica. A partir das suas análises, ele argumenta que, embora não seja sua pretensão construir uma narrativa totalizante sobre a história dessas manifestações religiosas, essas festas podem ser frutos atuais de um tipo de catolicismo cujas origens se encontram principalmente na África Central.
Também refletindo sobre o legado africano atuante e vivido no Cisatlântico, Tiago Oliveira Pinto discute em seu artigo a historiografia geral do samba no Brasil, fundamentando-se em fontes e dados diversos. O autor ressalta que para ampliar os conhecimentos sobre este gênero musical, considerado como um patrimônio vivo, é necessário romper as amarras determinadas pela segmentação epistemológica que domina a musicologia e os estudos sobre samba. E atenta ainda para o fato de que a dupla representação do patrimônio musical, tangível e intangível, representa um desafio epistemológico, dando lugar para um campo de tensão que evidencia que a musicologia ainda é fragmentada em basicamente três vertentes: a histórica, a etnomusicológica e, mais recente, a pesquisa em música popular. Conforme o autor discute em seu texto, uma musicologia com tendência transdisciplinar, que contemple diversificadas metodologias de pesquisa, possui um potencial para revelar os saberes sobre a música nos mais diversos contextos.
Ainda no universo das culturas populares e sob a forte influência da herança africana sobre as manifestações musicais no Brasil, a autora Sonia Teller utiliza a História Cultural e os conceitos foucaultianos como lentes interpretativas para a compreensão das práticas musicais, dançantes e cotidianas da cirandeira Lia do Itamaracá. Conforme a autora, Lia é representada como um símbolo da mulher negra guerreira, guardiã dos saberes e fazeres do povo nordestino. O texto aborda a história da ciranda que, assim como o coco, remonta às manifestações dos terreiros e das festas profanas dos negros escravizados. Além disso, apresenta uma narrativa da vida de Lia, ressaltando a sua trajetória como compositora, intérprete, cirandeira e mestre de ciranda, atriz e cidadã.
Dentro do cenário diversificado de gêneros, de estilos e de manifestações musicais, este Dossiê também contempla a Música Popular Urbana. A partir das relações entre história, música e tecnocultura, Luiz Filipe da Silva Correia realiza em seu texto uma análise da composição The Tourist, da banda britânica Radiohead, explorando como as transformações tecnológicas estão vinculadas às formas de produção artística, de criação musical e de consumo da música. O autor apresenta um breve histórico das relações entre história e música na primeira década dos anos 2000 e amplia a compreensão de conceitos como Música Popular Urbana, paisagem sonora e tecnocultura.
Ao propor uma análise da música “Zombie”, da Banda “The Cranberries”, o autor Alessandro de Almeida também destaca o interesse pela Música Popular Urbana e realiza um estudo crítico acerca de como a indústria fonográfica e a música podem ser utilizadas como mecanismos de contestação, de mudança social e política. O texto ressalta tal perspectiva ao destacar como a música Zombie, produzida em 1994, teceu críticas ao terrorismo, inspirada no atentado de Warrington, na Inglaterra. Essas críticas são evidenciadas na criação do videoclipe desta música, o qual evidencia uma representação simbólica da realidade violenta que pode ser identificada nas rivalidades históricas entre Irlanda do Norte e Inglaterra. Em suas análises, o autor reitera a importância de se compreender a música para além dos seus aspectos sonoros, estimulando novas reflexões sobre os desafios impostos pelo impacto da tecnologia de som e da imagem nos indivíduos a partir do final do século XX e início do século XXI.
Os dois últimos textos deste Dossiê destacam o importante papel de duas personalidades que deixaram grandes contribuições para a pesquisa musical e histórica, Francisco Curt Lange e Mário de Andrade. As autoras Rachel Uchoa e Edite Rocha exploram as pesquisas realizadas por Francisco Curt Lange em meados do século XX nas cidades do Serro e de Diamantina, localizadas no estado de Minas Gerais. As pesquisadoras utilizam os pressupostos da Música, da Musicologia e da História para refletirem sobre o lugar de Curt Lange em relação à narrativa musicológica e a construção da história da música local. A partir da análise destes documentos, o texto expõe novos horizontes interpretativos à luz da atualidade musicológica, deixando evidente em suas considerações que, embora apresentem confessa estranheza em seus relatos sobre práticas descritas como exóticas, peculiares e barulhentas, como descrevem as autoras, essas fontes são narrativas que permitem compreender de forma mais aprofundada a diversidade cultural do povo brasileiro.
O texto de Maurício de Carvalho Teixeira propõe uma análise dos estudos de Mário de Andrade sobre música identificados em sua obra inacabada Na Pancada do Ganzá. Conforme o autor, essa obra, que está dividida em três partes, intituladas “Melodia”, “Ritmo” e “Poética” (este último foi depois renomeado como “Poética popular”) demonstra reflexões conceituais sobre os motivos de cada procedimento examinado ser relacionado à preguiça, que seria um fator concreto e simbólico do processo criativo, por exemplo, de cantadores e improvisadores do Nordeste brasileiro.
Por fim, agradecemos pela rica e generosa contribuição dos autores e das autoras aqui apresentados, bem como aos/as editores/as da Revista Caminhos da História pelo convite para a organização deste Dossiê. A partir do encontro das duas organizadoras, sendo uma da área de História e a outra da área de Música, fortalecemos os laços de cooperação entre a Universidade Estadual de Montes Claros e a Universidade do Estado da Bahia e evidenciamos que as consonâncias entre estes dois campos seguem extrapolando fronteiras.
Referências
BARROS, José D´Assunção. A Música como inspiração interdisciplinar para outros campos do saber. Revista Nava, v. 7, p. 307-337, 2021. Disponível em https://periodicos.ufjf.br/index.php/nava/article/view/34076/23772. Acesso em 07 dez. 2022
BLACKING, John. How Musical is Man? Seattle: Universty of Washington Press, 1973.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado? Revista Projeto História, n. 17. São Paulo, 1998
MERRIAM, Alan P. The anthropology of music. Evanston: Northwester University Press, 1964.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo. Editora Unesp, 2001.
SEVCENKO, Nicolau. No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa. In. RIEDEL, Dirce Cortes (org). Narrativa, ficção & história. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.
Organizadores
Priscila Gomes Correa – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular do Colegiado de História/DCH-I e do PPGHIS/DCH-V da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: pgcorrea@uneb.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7680-1336
Raiana Maciel do Carmo – Doutora em Música (Etnomusicologia) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora do Curso de Licenciatura em Música e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). E-mail: raianamaciel@yahoo.com.br Orcid https://orcid.org/0000-0001-9250-5804
Referências desta apresentação
CORREA, Priscila Gomes; CARMO, Raiana Maciel. Apresentação. Caminhos da História. Montes Claros, v.28, n.1, p.4-9, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]