Bicentenário da Independência do Brasil: História e Memória/Resgate – Revista Interdisciplinar de Cultura/2022
Este dossiê da Resgate: revista interdisciplinar de Cultura do Centro de Memória-Unicamp nasceu de um convite feito pela editora Profª Heloisa Helena Pimenta Rocha para que, com base nos trabalhos apresentados no X Seminário Nacional do CMU (2021), se organizasse um número especial sobre o Bicentenário da Independência. O X Seminário apresentou-se com o título Independência ou Morte? Distintamente da exultante exclamação que dá nome a representação da Independência do Brasil criada por Pedro Américo, o título do Seminário anunciava as comemorações do Bicentenário com um questionamento suscitado pela tragédia de milhares de mortes evitáveis provocadas pela pandemia de Covid-19, mas, sobretudo, pela irresponsabilidade do governo brasileiro na condução da política de combate ao alastramento do vírus. Não havia o que comemorar. Havia, sim, um convite para que os participantes do seminário refletissem criticamente sobre a nossa história transcorridos os 200 anos da Independência. Aceito o desafio de realizar o dossiê com o propósito explicitado, convidamos para participar da empreitada a Profª Milena Fernandes de Oliveira e, assim, formamos a curadoria aprovada pelo conselho da Resgate.
Começamos a montagem do dossiê partindo da leitura dos trabalhos apresentados no seminário e, em seguida, selecionamos aqueles que melhor cobrissem o assunto de uma forma crítica, trazendo questões contemporâneas e interpretações de fontes historiográficas inéditas ou conhecidas. Com imenso prazer fizemos os convites aos autores, e desde já queremos expressar nosso agradecimento.
Nossa preocupação era compor um conjunto de trabalhos que abordassem distintos ângulos da Independência, temática já bastante explorada principalmente no decorrer do ano de 2022, quando uma profusão de lançamentos de publicações resultou em um verdadeiro boom do mercado editorial. Buscamos assegurar algumas premissas na composição do dossiê: a interdisciplinaridade, trazendo a política, a demografia, a economia, a cultura, o cotidiano, o museu, as artes plásticas, a música, a fotografia e o cinema para o debate do Bicentenário; a diversidade do Brasil e fora, no caso, em especial, a Metrópole Portuguesa, da qual a antiga colônia se tornava independente; e, afinal a pluralidade institucional e regional dos autores/convidados, ligados a diferentes instituições universitárias, arquivísticas, museológicas e de pesquisa.
Dada a multiplicidade de visões dos 200 anos da nossa Independência, o desafio para a curadoria foi criar uma sequência clara na exposição, de forma a tornar a leitura do dossiê mais frutífera e prazerosa. Assim, agrupamos os artigos em dois momentos de reflexão e também caros ao CMU: a História e a Memória.
Na primeira parte, História, reunimos textos que trazem interpretações de fontes documentais e estatísticas dos acontecimentos que envolveram aqueles anos conturbados de crise e de transição para uma nova ordem, baseada na construção do Estado independente, após mais de três séculos de submissão ao sistema colonial. Na segunda parte, Memória, aglutinamos os textos que buscam reconstruir as memórias evocadas pela Independência expostas em museus, na iconografia e nas imagens cinematográficas.
Enquanto a História implica a reconstituição do agir humano e da vida do homem em sociedade ao longo do tempo, a memória significa registro e armazenamento, bem como as diferentes maneiras pelas quais o material acumulado por esse registro é evocado. Se a História, a escrita do processo, deve ser objetiva, pautada pelo compromisso com a verdade, a memória é abertamente interessada. Assim, enquanto o acontecer humano, a história, quando interpretado, resulta na História, as evocações sobre aquele acontecer, sobre a história vivida, resultam na memória.3
História
Abrimos o dossiê com o artigo “A independência do Brasil através dos parlamentares portugueses: um difícil reconhecimento (1822 -1823)”, de Alda Mourão, que nos remete aos debates parlamentares das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes e Gerais Ordinárias em Lisboa. As Cortes reuniram representantes dos domínios portugueses nos territórios ultramarinos, incluindo o Brasil, para discutirem a Constituição que regeria as relações do Império Português com seus domínios. Esse momento caracteriza-se por conflitos que se sobrepõem, gerando maior tensão no jogo político. De um lado, as disputas entre liberalismo e absolutismo, de outro, entre o movimento pela independência da ex-colônia da América e a manutenção do status quo anterior ao de 1808. O liberalismo apresentava-se frágil, mal tinha tocado em solo português, fruto como fora das jornadas da Revolução Liberal do Porto de 1820. Os parlamentares defensores do liberalismo, os vintistas, temiam o regresso, ou seja, a volta ao regime absolutista. Os nervos, os sentimentos e as emoções estavam à flor da pele depois de mais de 13 anos de “orfandade”, com o Rei fora de Portugal. As disputas evocavam duas temporalidades: prosseguir o avanço das políticas liberais ou regressar às medidas preconizadas pelo absolutismo ilustrado do século XVIII. Passado e futuro encontravam-se no presente. Para problematizar os debates parlamentares um novo ingrediente foi adicionado – o desejo manifesto do Brasil em não voltar ao passado colonial, em manter as conquistas efetivadas desde a chegada da família real em 1808.
Nesse imbróglio, a autora escolheu analisar os debates transcritos nas atas Cortes Gerais Ordinárias e no Livro das atas da Junta Constituinte de 1823- 1824 e focar a “frequência, dimensão e diversidade de intervenções dos parlamentares, no que respeita à relação de Portugal com a colônia americana”. O Brasil era o assunto da maior importância, afinal era o principal território ultramarino do domínio português. A perda da antiga colônia somente seria efetivamente assimilada pelas Cortes em 1823, coincidindo com fim das guerras da independência na Bahia. (ver no dossiê o artigo de Ana Paula Medicci).
Ao longo do artigo, a autora desenvolve três tópicos “a relação entre deputados portugueses e brasileiros, o sentimento de perda da colônia e as derradeiras decisões ‘pacificadoras’”. O artigo traz uma reinterpretação do sentimento “antibrasileiro” que dominou a historiografia portuguesa e brasileira. Reinterpreta as posições políticas de D. João VI em contraposição a seu filho, D. Pedro, visto pelos deputados portugueses como irresponsável por aliciar o “povo” para a causa independentista, traindo a casa dos Bragança e “seu augusto e venerável pai”. D. Pedro tornou-se persona non grata para as Cortes. Enquanto os debates prosseguiam, os representantes brasileiros se retiraram, pois as pressões para suas demissões vinham fundamentalmente não dos deputados portugueses, mas da determinação de D. Pedro de suspender os subsídios pagos pelos cofres brasileiros para permanecerem em Lisboa.
Deixando as terras lusas e os tensos debates nas Cortes diante da perda inexorável da principal colônia ultramarina, a coletânea volta-se para a história nas terras brasileiras.
Os estudos dos tempos da independência e dos primeiros anos de construção do Estado Imperial começam com o artigo “O que não foi contado após a independência do Brasil. Dinâmicas demográficas na Província de São Paulo e o crescimento da população de Campinas e Franca, 1822 – 1889”, de autoria de Paulo Eduardo Teixeira e Maísa Faleiros da Cunha. Os autores se propõem a analisar a dinâmica do crescimento populacional de duas localidades paulistas, Franca e Campinas, da Independência à Proclamação da República. Para executar a empreitada, avaliam o desempenho das variáveis demográficas que expressam a dinâmica da população: natalidade, mortalidade e nupcialidade. Como não poderia deixar de ser, as fontes de informações estatísticas são fundamentais. Os autores procederam ao levantamento das variáveis nos registros paroquiais, no quadro estatístico para a província de São Paulo de 1854, no primeiro recenseamento demográfico realizado no império, em 1872, e no levantamento populacional para o ano de 1886. De crucial importância foi a anotação da condição jurídica da população – livres e escravos –, o que permitiu analisar as distintas dinâmicas de crescimento, segundo a condição social. O que “não foi contado” sobre a nossa população vem à tona somente por meio de uma análise criteriosa dos registros, dos censos e levantamentos com a percepção da condição social a que a população estava submetida. A escravidão deixou marcas no crescimento da população. Além da análise comparada da dinâmica populacional das duas localidades, os autores trazem um balanço primoroso das estatísticas populacionais produzidas ao longo do século XIX, indicando as possibilidades de uso e as limitações do seu emprego.
Outra lição que se pode extrair do artigo é o completo descompromisso das autoridades constituídas com o levantamento das informações estatísticas sobre a população. Não é somente nos séculos XX e XXI, em especial nos últimos anos do atual século, que censos são postergados e não realizados de forma periódica, comprometendo a continuidade do conhecimento sobre a situação da população do país. No império, por medida legislativa, os recenseamentos populacionais deveriam ser decenais, e para tanto foi criada a Diretoria Geral de Estatística, o nosso primeiro IBGE; entretanto isso nunca foi cumprido, sendo realizado apenas um único Recenseamento Geral do Império, de 1872. Todos nós perdemos o conhecimento da população do passado, do presente e do futuro!
O processo de construção do Estado independente passa por diversas instâncias, como vimos: pelo conhecimento de sua população, pela organização do serviço de estatística, mas também pela organização de suas finanças. O Estado Imperial sofreu desde seu nascedouro um verdadeiro assalto aos seus cofres. D. João VI ao se despedir das terras brasileiras iluminadas pelo sol dos trópicos que tanto amava não se esqueceu de limpar os cofres do banco que fundara em 1808, o Banco do Brasil, e levou as burras abarrotadas de ouro. Em 1825, para o reconhecimento de nossa Independência, Portugal exigiu que os brasileiros pagassem suas dívidas com a Inglaterra. Os ingleses ficaram felizes e reconheceram também, afinal que o pagamento dos empréstimos estava garantido!
Para tratar da organização do aparato do Estado independente no que diz respeito à arrecadação tributária e à definição de impostos, o dossiê traz o artigo “Tributos e administração fazendária: uma abordagem provincial nos tempos da Independência”, de Bruna de Jesus Barbosa da Silva. No artigo a autora expõe as mudanças na forma de arrecadação e a formação de um novo aparato burocrático fazendário após a Independência até a criação das tesourarias provinciais e do Tesouro Nacional em 1831. Novamente, as fontes documentais são da maior relevância para se compreender a estrutura administrativa do Estado Imperial e das províncias na arrecadação tributária e na criação de novos tributos. No caso em tela, a autora utilizou a documentação do Fundo da Secretaria de Governo da Província de São Paulo e a correspondência entre o Tesouro Nacional e Provincial entre os anos de 1823 e 1834, que se encontram no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Grande parte das mudanças verificadas se concentra no método de arrecadação, que gradativamente foi sendo alterado dos contratos de arrematação para a administração burocrática do Estado. Ou seja, a cobrança dos impostos, recursos extraídos dos cidadãos para custear o gasto do Estado, passou dos arrematadores ou coletores particulares para o aparato burocrático estatal operado por funcionários públicos responsáveis pela arrecadação e pelos registros contábeis. Já em 1827, um número reduzido de tributos era arrecadado por meio de contratos com particulares. Neste ano na província de São Paulo cerca 89% dos impostos eram arrecadados por funcionários públicos alocados nas Juntas da Fazenda depois na Tesouraria da Província. A resistência se fez sentir principalmente na província de São Paulo por parte de grandes comerciantes que amealharam seu patrimônio por meio da arrematação da cobrança de tributos. Um dos casos mais notório foi o de Antonio da Silva Prado, Barão de Iguape, cuja atividade de coletor exerceu significativo papel no processo de acumulação de riqueza. Com respeito aos tributos, pouca alteração ocorreu. O Estado independente herdou a composição de tributos vindos do período colonial e principalmente do período joanino, quando muitos impostos foram criados para financiar as novas atividades impostas pela vinda da família real e de seus fidalgos para o Brasil. Nos anos de permanência do D. João VI no Brasil ampliou-se a base tributária com impostos incidentes sobre novos fatos e atividades, tais como décima urbana, o imposto do selo, a sisa incidente sobre imóveis, a meia sisa dos escravos ladinos, a décima de heranças e legados e o imposto do banco. Esse conjunto de tributos continuou no Império. Assim, a autora conclui que as maiores mudanças se processaram na forma de arrecadação e na administração fazendária, com a criação das tesourarias províncias e do Tesouro Nacional que se imbuíram de caráter técnico, menos político, como ocorria com as Juntas da Fazenda. Para preservar a disposição técnica das repartições fazendárias seus cargos eram preenchidos por meio de concursos públicos.
Da esfera da organização do Estado seguimos para uma dimensão mais próxima da vida cotidiana nas cidades mineiras. O artigo “Independentemente: a atuação das quitandeiras de Minas Gerais no mundo do trabalho nos períodos pré e pós-Independência do Brasil”, de Juliana Resende Bonomo, nos remete para o mundo do trabalho das quitandeiras. A questão que a autora se propõe a responder é quem são essas mulheres que se deslocam pelas ruas de Ouro Preto e de outras localidades mineradoras? Para responder, recorre às estatísticas de 1804 e às de 1831-1832, que correspondem às listas nominativas que compõem a base de dados Poplin-Minas do Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica (CEDEPLAR). Por meio da análise das listas, a autora traça o perfil das quitandeiras, de acordo com a cor, origem, condição social, escravas e livres, idade e estado conjugal. As quitandeiras formavam uma categoria social de importância no comércio de alimentos crus ou cozidos de menor valor para consumo da população mais pobre. Segundo a autora, o costume de vendas de alimentos mais simples, produzidos ou colhidos nas casas das vendedoras, reproduzia uma tradição do trabalho feminino na África Ocidental, onde mulheres participavam da circulação de bens de consumo mais baratos, como alimentos. O comércio ambulante de tecidos e de bens de maior valor era realizado por homens. Na abordagem do tema, a autora toca em questões culturais e de costumes e na relevância das quitandas no abastecimento de bens de consumo. As quitandeiras representavam um pouco mais de um terço dos comerciantes de alimentos, sendo o trabalho exercido predominantemente por mulheres escravizadas que percebiam na atividade um meio de conquistar a alforria. Também as quitandeiras eram mulheres solos, solteiras ou viúvas, chefe de fogo, que viam na atividade um meio de ganhar o suficiente para prover a sobrevivência. Os dados das listas nominativas 1831-1832 reforçam a importância desse comércio de alimentos e miudezas realizado por mulheres, negras, pardas, mestiças, escravas ou libertas, que percorriam as ruas com seus tabuleiros repletos de quitandas e frutos dos seus quintais.
Em 1822, a vila de São Carlos (Campinas, depois de 1842) mostrava-se plenamente consolidada como uma economia açucareira integrante do “quadrilátero de açúcar” paulista. Concluíra a transição de uma economia de abastecimento de alimentos para o mercado local e regional para uma economia produtora de açúcar para a exportação. A população livre era pouco superior à escrava. Assim, as extensas plantações de cana de açúcar e os engenhos açucareiros fortaleceram a escravidão e a elite dos grandes proprietários de terras, engenhos e escravos. É nesse cenário que tiveram lugar as comemorações da Independência e o juramento de fidelidade à Sua Majestade Imperial, D. Pedro I, como Imperador Constitucional do Brasil. No artigo “Os sons da Independência do Brasil em Campinas”, Lenita W. M. Nogueira traz a análise da ata produzida pela Câmara Municipal por ocasião da aclamação de D. Pedro I como imperador do Brasil. Na leitura do documento, a autora se depara com a assinatura de Manoel José Gomes, o mestre de capela da Matriz Velha. Esse é o mote para sustentar que aquele documento sintetiza a hierarquia de classe da sociedade da época. A ordem das assinaturas reflete a estratificação social imperante: as primeiras assinaturas são dos senhores de engenho e de escravos, o segmento mais rico da sociedade, em seguida os militares, os representantes da igreja católica e por fim as pessoas distinguidas por seu capital cultural, como o mestre de capela, futuro pai de Santana Gomes e de Carlos Gomes. A presença de Maneco Músico entre os signatários é motivo para perscrutar a sonoridade e o papel da música na aclamação da Independência e de D. Pedro I. Os sons musicais que rodearam as comemorações começavam na Matriz Velha da N. S. da Conceição, com o badalar dos sinos, seguido da Missa Cantada e do Te Deum Laudamus. Dos festejos da aclamação, a autora nos provoca a atentar para a música como um elemento divisor da sociedade: na matriz, os senhores de engenho e demais signatários do ato de fidelidade ao Imperador apreciavam a sonoridade dos instrumentos, o órgão, violinos, clarinete, trombone, que entoavam “A ti, ó Deus, louvamos”; nas ruas, a banda de música acompanhava as canções profanas e as danças do povo.
Memória
Na segunda parte deste dossiê, tratamos da maneira pela qual se construiu a “memória”, ou melhor, “memórias”, sobre o processo de Independência. Em paralelo a uma memória nacional, erigida sobre as várias representações do 7 de setembro enquanto um acontecimento de significância nacional, constituíram-se outras memórias, assentadas sobre as interpretações de como as resistências nas províncias aconteceram. O artigo, “A 7 de setembro de 1822 e 2 de julho de 1823”, escrito por Ana Paula Medicci, traz as possíveis relações sobre duas maneiras de contar a Independência: de um lado, a narrativa do ponto de vista unidade nacional; de outro, a visão sobre a forma como o processo se desdobrou na Bahia.
Mobilizando a ideia de François Hartog, para quem, “a História Nacional é o “meio de memória” por excelência”, a autora compreende a construção da memória em torno do 2 de julho no mesmo sentido em que se elaboraram as memórias nacionais. Em seu entendimento, a Bahia seria uma espécie de país dentro de outro. Citando Reis e Silva, a autora lembra que “a Bahia tem a personalidade de um país e o Dois de Julho é o seu principal mito de origem”. Afinal, da maneira como se processou a colonização da América Portuguesa, bem como a maneira pela qual as regiões se posicionaram diante dos acontecimentos que marcaram a crise do Antigo Regime, era mais factível que as províncias e não o Estado, ainda em processo de formação, se entendessem como unidades autônomas e coesas. Lembrando que a construção do Brasil como um Império não datou senão de 1840, quando os conservadores passaram a ocupar a maioria dos assentos do Parlamento. Somente a partir desse período foi que se começou a pensar sobre uma história nacional, para a qual contribuiu a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, e se começou a elaborar um imaginário nacional, a exemplo do Romantismo indianista de José de Alencar.
O fantasma da fragmentação territorial, embora amainado com o Golpe de Maioridade, seguiu de perto a história do Império do Brasil. Desde o período da Independência, províncias e regiões constituíram unidades que não somente se definiam em termos econômicos, mas, aos poucos, ganhavam contornos culturais e identitários também. E nesse processo de construção de identidades locais, as narrativas regionais sobre o processo de Independência tiveram um papel fundamental. Por exemplo, o Hino ao 2 de julho, tornado hino oficial do Estado da Bahia em 2010, foi composto por Ladislau dos Santos Titára, o mesmo autor de Paraguassu, epopeia da Guerra da Independência na Bahia, publicado em 1837. As memórias e representações criadas sobre o 2 de julho de 1823 na Bahia têm, desse modo, o caráter de afirmar o papel da região no processo da constituição da nação e, mais do que isso, o importante papel exercido pelos “baienses” em relação ao processo como um todo. De certa maneira, podemos dizer que, no artigo em questão, trava-se uma batalha de memória entre duas interpretações do processo de independência: a primeira centrada no 7 de setembro de 1822 e a segunda, no 2 de julho de 1823.4
O caráter interessado da memória resulta também em monumentalizações sobre alguns acontecimentos, selecionados de acordo com o interesse daquele que edifica a memória, bem como cria lugares propícios a lembrar destes acontecimentos.5 O Museu do Ipiranga, objeto dos dois próximos artigos, “A bernarda de Francisco Ignacio: das disputas historiográficas às representações no Museu Paulista”, de autoria de Maria Aparecida Borrego e Renato Mattos, e “A São Paulo do século XIX ilustrada no Museu Paulista, 1922”, de Ana Paula Nascimento, é um autêntico lugar de memória.6 Inaugurado em 1895, o Museu do Ipiranga, também denominado Museu Paulista, surgiu como um museu de História Natural. Quando Taunay assume a direção do museu em 1917, pensa uma exposição comemorativa ao centenário da Independência. A ordem das salas não era aleatória: foi criada a partir de um direcionamento que se pretendia dar ao ato de lembrar, enfatizando o papel que os paulistas tiveram no processo de Independência.
A bernarda, que se relaciona com a Revolução do Porto 1820 e deve ser compreendida no bojo desse movimento de caráter liberal, apresenta “ecos” que são apropriados por outros contextos. Segundo Borrego e Mattos, o movimento bernardista foi resultado do aumento das disputas entre negociantes e produtores paulistas, o que terminou por repactuar “hierarquias, monopólios, isenções e privilégios coloniais”. No entanto, as perguntas que devemos fazer têm menos a ver com o contexto em que a bernarda aconteceu do que com o contexto no qual ela foi reapropriada e, de certa maneira, reinventada. Afinal, toda memória, particularmente a nacional, tem um componente de invenção.7 Que significado tem, por exemplo, pensar o processo de Independência em contexto republicano e qual o lugar da bernarda nesse processo? Que valores os paulistas que estiveram à frente da criação da exposição de 1922 deram à bernarda e como, à maneira dos baienses do 2 de julho de 1823, também se achavam especiais nesse processo?
No Museu do Ipiranga, a bernarda ocupou parte da sala A-10, consagrada à Cartografia Colonial e Documentos Antigos. Tendo sido inaugurada em 1917, a sala foi incrementada nos anos seguintes para a comemoração do centenário da Independência em 1922, de maneira a recontar a história da Independência a partir da perspectiva paulista. A bernarda foi ainda pintada nos azulejos do Museu Republicano de Itu nos anos 1940, nos quais descrevia a perspectiva dos participantes ituanos sobre o movimento.
Assim, o movimento bernardista não somente foi objeto de intensas disputas historiográficas (1851-1902), conforme mencionado pelos autores, como também de batalhas de memória, travadas em diferentes momentos e expressas nos mais diversos elementos de cultura material, desde os objetos nas salas do Museu Paulista, até os azulejos do Museu Republicano de Itu. Abolicionistas, progressistas e conservadores: cada qual tinha a sua própria versão sobre bernarda e sobre a participação de José Bonifácio de Andrada e Silva no movimento.
Destarte, as efemérides e os centenários ressignificam os acontecimentos históricos de acordo com o contexto em que são comemorados, recontando uma história que espelhe a si mesmo e as intenções dos grupos que estão à frente da construção da memória. O primeiro centenário da independência, trabalhado por Ana Paula Nascimento a partir da Revista Ilustrada e da exposição comemorativa organizada no Museu Paulista, exprime a atitude seletiva e interessada da parte daquele que a concebeu, Affonso de Taunay. Claro está que não se trata aqui simplesmente da biografia de uma das mais eminentes figuras na criação do Museu Paulista, mas em como o historiador se entrelaçou a interesses nitidamente regionais para recriar o processo de Independência à luz do olhar de São Paulo. Claramente, esse novo ângulo da Independência ligava-se à mística bandeirante, que encheria páginas e páginas dos Anais do Museu Paulista. A história da instituição entrelaça-se, segundo a autora, à história de São Paulo e à própria figura de Taunay e do lugar que ocupa no interior dessa história.
A fim de conectar a figura de Taunay ao papel da instituição à frente da qual se encontrava, o Museu Paulista, Ana Paula Nascimento mobiliza o conceito de representação, proposto por Roger Chartier em A história cultural (1990) e em O mundo como representação (1991). O conceito é extremamente pertinente, uma vez que permite explicar como indivíduos ou grupos constroem narrativas a fim de estabelecer estratégias de dominação e de poder. Dessa forma, a criação de representações coaduna-se com os propósitos de criação da memória de um fato por parte de grupos sociais que se sobressaia sobre as memórias de outros grupos ou tencione silenciá-las.
Taunay teve um papel fundamental na edificação de tais representações, já que foi quem escolheu as “fotografias, estampas, ilustrações e desenhos preexistentes, material em parte publicado em álbuns e livros; em parte originais sobre o Brasil do século XIX”, que serviriam de inspiração para as pinturas encomendadas por ele e que comporiam a galeria da Independência no Museu Paulista. Desde 1917, Taunay vinha selecionando matrizes visuais de viajantes, como Hercule Florence (1804-1879), que ganhou destaque, junto com o fotógrafo Militão Augusto Azevedo, na coleção. Também inauguradas no ano do centenário, em 1922, as salas A11, consagrada ao passado de São Paulo, a A12, à antiga iconografia paulista, e a A13, à iconografia de Santos e ainda à antiga iconografia antiga paulista, dedicavam-se a pinturas de “gênero histórico”, nas quais se retratavam as cenas da vida cotidiana do passado paulista. Nelas, nada dos heróis típicos das grandes memórias nacionais: o principal retratado é o dia a dia da gente comum do planalto paulista.
Não somente a encomenda das obras seguia os propósitos de construção de uma memória do povo paulista. A maneira como as peças foram dispostas, a ordem das salas na galeria, a luminosidade escolhida, todos os aspectos foram cuidadosamente pensados a fim de criar a ambientação adequada à revivescência desse passado das “coisas miúdas”, como diria Fernand Braudel. Aquele que encomendou as pinturas teve um propósito, aquele que as ordenou, um outro, aquele que as vê, um terceiro. Todos esses propósitos encontram-se na finalidade de estabelecer um lugar cuja função primordial é a de ser um lugar de lembrança, um lugar de memória.
Contrariamente ao que se poderia imaginar, não somente espaços físicos são lugares de memória. Também o são as datas, as canções e objetos nos quais se concretizam os símbolos. Logo, podemos considerar também os filmes como lugares de memória. O artigo “Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, no Bicentenário da Independência”, de Meire Oliveira Silva, propõe-se a fazer esse exercício.
Segundo a autora, Andrade quis contar a partir de Os Inconfidentes uma outra história dos movimentos nativistas, de maneira que tal história se entrelaçasse aos próprios acontecimentos dos conturbados anos 70. A decretação do AI-5 em 1968 e a intensificação da repressão política nos anos 70, que culminaria com a morte de Herzog em 1975, serviram de pano de fundo às reflexões de Andrade, que via paralelos entre a repressão por ele vivida e a sofrida pelos inconfidentes em 1789. A maneira como a morte de Cláudio Manoel da Costa é retratada no filme, e descrita pela autora, enforcado em uma cela, é quase um prenúncio da morte de Herzog, que aconteceria 3 anos depois do lançamento da película.
Na crítica de Joaquim Pedro de Andrade, aparecem tanto a burguesia brasileira, aculturada, quanto os militares, que se apresentam da mesma maneira em 1789 e em 1972: agentes favoráveis a um regime violento e repressor, em total desconexão com as camadas populares da sociedade à qual pertencem. A apropriação das influências do Neorrealismo Italiano e da Nouvelle Vague francesa foi inteiramente original, permitindo uma renovação do movimento cinemanovista, iniciado nos anos 60. O Cinema Novo, ligado, ao longo dos anos 60 a órgãos fomentadores de cultura, como como o Itamaraty, o SPHAN e o CPC da UNE, direcionou, durante os “anos de chumbo”, uma particular atenção à história do país, compondo uma nova associação entre a cultura nacional e a memória “dos de baixo”, dos que sentiram na pele o peso da violência do Estado. Em razão da censura que impunha o regime de exceção sobre a produção cultural no Brasil dos anos 70, Os inconfidentes foi produzido pela Radiotelevisione Italiana (RAI).
Antes de seu falecimento, em 1988, Joaquim Pedro de Andrade concedeu uma entrevista ao jornal O Globo, na qual declarou: “Só sei fazer cinema no Brasil, só sei falar de Brasil, só me interessa o Brasil.” (ANDRADE, 1988). O cineasta desnuda aqui os segredos do campo da memória, que, não raro, embora ambicione reconstituir a história, fala mais da maneira como determinados grupos gostariam que a sociedade lembrasse alguns acontecimentos, como foi a Independência do Brasil.
Essa tensão entre História e Memória também foi objeto central de preocupação da nossa curadoria e se expressa na organização dos textos que compõem o dossiê que ora trazemos ao público. Desejamos que o leitor encontre no dossiê, Bicentenário da Independência: História e Memória, uma oportunidade de reflexão sobre as muitas possibilidades de relação entre passado, presente e futuro na História do Brasil. Boa leitura!
Notas
3 Para pensar a diferença entre História e Memória, consultar os trabalhos clássicos como o de Jaques Le Goff. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990 e o de Maurice Halbwachs. A Memória Coletiva. São Paulo, Ed. Vértice / Ed. Revista dos Tribunais, 1990.
4 Ver o conceito “batalha de memória” de Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”. Trad. Dora Rocha Flaksman. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
5 A ideia da monumentalização de acontecimentos durante o processo de construção da memória foi retirada de Jacques Le Goff. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. Nessa coletânea, há um verbete intitulado “Monumento”, que se contrapõe a outro intitulado “Documento”.
6 Em referência a Pierre Nora. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”. Trad. de Yara Aun Khoury “Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux”. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 7-28.
7 Referência a Eric Hobsbawm; Terence Ranger. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
Organizadores
Maria Alice Rosa Ribeiro – Docente aposentada da FCL/UNESP e Pesquisadora colaboradora do Centro de Memória-Unicamp, CMU.
Milena Fernandes de Oliveira – Docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.
Referências desta apresentação
RIBEIRO, Maria Alice Rosa; OLIVEIRA, Milena Fernandes de. Apresentação. Resgate – Revista Interdisciplinar de Cultura. Campinas, v. 30, e022003, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]