Arquivos: teoria e ensino em diálogo com diferentes públicos/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2020

Tomados em diferentes áreas disciplinares e perspectivas teóricas, desde as tipologias científicas e tecnológicas de organização de documentações variadas até o uso comum e corriqueiro das informações cotidianas, os arquivos são referenciais e suportes dotados de finalidades, usos e interesses múltiplos voltados à orientação espaço-temporal da vida individual e coletiva.

Desde a construção de arquivos públicos, no contexto da formação dos Estados Nacionais modernos, diversificam-se as tipologias, debates e perspectivas de abordagem dos arquivos, seja em torno dos debates conceituais que extrapolam e criticam o horizonte institucional de tais aparelhos e sua relação com os poderes vigentes, seja em concepções elaboradas que não restringem os arquivos a determinados “documentos físicos”, mas compreendem tal conceito como todo um campo discursivo e simbólico disponível aos sujeitos de uma determinada sociedade.

Achille Mbembe, em Crítica da razão negra (2014), defende que “a instauração de um arquivo é indispensável para restituir os negros à sua história”, o que reforça para nós a pauta de reflexões sobre as políticas de memória (portanto de lembrança e esquecimento) que têm prevalecido na contemporaneidade. A democratização (ou não) do acesso aos acervos também vem sendo questionada, do ponto de vista ético-político e educativo, e nos traz indagações sobre os usos públicos do passado e do presente, bem como das possibilidades e limites de interação num ambiente cujo domínio de ferramentas de interação e a compreensão dos processos de arquivamento dos documentos não são do conhecimento de todos os públicos (Koyama, 2015).

Num mundo de arquivos virtuais, privados, pessoais, literários, ficcionais, midiáticos, patrimoniais, hegemônicos e marginais, faz-se necessário um olhar atento a tais configurações do mundo cultural e político. No intuito de reunir trabalhos que pudessem versar sobre tal multiplicidade de aspectos, foi proposto o dossiê temático Arquivos: teoria e ensino em diálogo com diferentes públicos.

Há várias possibilidades e questões que perpassam os eixos temáticos escolhidos. Os autores foram convidados a apresentar trabalhos que tematizassem desdobramentos conceituais e pragmáticos da ampliação das percepções semântica e simbólica dos arquivos; a função dos arquivos em regimes de verdade distintos e nas lutas contemporâneas em torno das afirmações de populações historicamente excluídas no processo modernizador; o papel dos arquivos no ensino e na formação docente, entre outras questões que realcem o termo “arquivo” como uma possibilidade de se tornar um viés para a interpretação de questões passadas e contemporâneas.

Os artigos reunidos no dossiê temático e em outras seções da revista contribuem para refletirmos sobre como os arquivos garantem, referendam ou dão suporte às práticas, discursos e demais ações que conformam as identidades coletivas e individuais no passado e no presente.

Na seção Arquivos, Documentos e Memória, encontra-se o texto Arquivos e produção de conhecimentos históricos e educacionais na contemporaneidade: entrevista com Adriana Carvalho Koyama. Adriana Carvalho Koyama, a convite dos organizadores do dossiê, responde a questões por eles elaboradas a partir da tese que resulta de sua pesquisa de doutorado, em que investigou sites dos principais arquivos públicos do Brasil, Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e França, problematizando a produção de conhecimentos históricos e educacionais na interface com acervos online disponibilizados por esses sites. As reflexões abrangem outros aspectos de suas experiências profissionais e se desdobram em possibilidades de investigação em diversos campos, sobretudo ensino de história, educação patrimonial e formação docente.

O Dossiê Temático Arquivos: teoria e ensino em diálogo com diferentes públicos Cléber Araújo Cabral, em Vidas insignes: ficções de si e do outro nos arquivos de Fernando Sabino e Murilo Rubião, analisa fichas elaboradas pelos próprios personagens e que estão alocadas no Acervo de Escritores Mineiros sediado na UFMG. Tais fichas seriam fontes preciosas para se delinear cartografias das sociabilidades intelectuais e também comporiam acervos de ficções do arquivo, numa antologia de vidas insignes, ou seja, existências rearranjadas em discursos, personas e signos. O autor busca traçar a relação entre arquivos literários e historiografia, especialmente a partir das viradas linguística, histórica e arquivística.

Benedito Emílio da Silva Ribeiro, em História indígena e(m) microfilmes: organização, trato documental e comunicação científica a partir do acervo do SPI (fundo: 2ª Inspetoria Regional), associa técnicas de pesquisa, ensino e extensão a partir do acervo do fundo arquivístico da 2a Inspetoria Regional do arquivo do Serviço de Proteção dos Índios. O autor contempla os aspectos teóricos e práticos dos arquivos, sua complexidade e ambiguidades, lembrando o potencial etnográfico de tais instituições. Dissertando sobre temas da história indígena, políticas e metodologias de organização de arquivo, aponta perspectivas de abordagens dos acervos em colaboração com povos indígenas da Amazônia e a faz questionamentos sobre territórios documentais que se somam aos territórios de disputas indígenas.

Em O entulho de memórias: o fim do programa de Educação Patrimonial Trem da Vale e o arquivo morto, Maria Isabel Reis e Luciano Roza tematizam a constituição, execução e posterior abandono de arquivos elaborados a partir de demandas de corporações empresariais. Os autores abordam especificamente o Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale, realizado partir do ano de 2006 nas cidades de Mariana e Ouro Preto, e as políticas de cultura e de memória efetuadas pela Fundação Vale, administrada pela mineradora Vale S A, em parceria com o Santa Rosa Bureau, o Ministério da Cultura, instituições estaduais e municipais e da Lei de Incentivo à Cultura. Especialmente em torno do programa Vale Registrar, os autores traçam as potencialidades e limites dos acervos de história oral acerca da realidade pesquisada. Após o fim abrupto do programa, os autores refletem sobre as potencialidades de tal acervo que ficou praticamente abandonado, reivindicando sua importância para trabalhos de ordem acadêmica e de mobilização da memória coletiva das comunidades envolvidas.

Em Pelos olhos da justiça: traduzindo a interseccionalidade, Priscilla Almaleh analisa dois processos criminais provenientes do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, sendo que um se refere ao crime de furto cometido por uma mulher branca e outro ao crime de furto cometido por uma mulher negra, em fins do século XIX. Em sua análise, realizada na perspectiva dos estudos feministas e da História Social, a autora evidencia a importância da interseccionalidade para a compreensão das relações sociais historicamente construídas e para denunciar tramas de poder que as estruturam.

Juno Alexandre Vieira Carneiro, em A moça moderna nas fotografias da Escola de Economia Rural Doméstica de Uberaba (ESERD), a partir do acervo fotográfico da referida Escola, procura delinear os papéis sociais e as identidades associadas às mulheres daquela instituição. Neste sentido, sua pesquisa apresenta o processo de “modernização”, então delineado à época (anos 1950-1970), a partir de fontes produzidas pela própria instituição, além de referências em jornais e outras fontes do período. Com um olhar meticuloso sobre os registros fotográficos, o autor trata dos recursos técnicos e intencionais que caracterizam tal acervo. Percebe-se, assim, a conformação de uma pedagogia feminina marcada por características variadas, entre o saber científico e a confissão religiosa, a capacitação profissional e a aptidão doméstica e familiar.

Os autores Luiz Henrique Assis Garcia, Rita Lages Ribeiro, João Marcos Veiga de Oliveira, Elena Lúcia Rivero, em A fotografia da História à Cidade: usos e contra-usos do patrimônio sob o olhar do historiador, procuram avaliar o papel desempenhado pelos registros fotográficos na constituição das visões, representações e identidades relacionadas ao espaço urbano. Os autores traçam um histórico dos primórdios da fotografia a partir da modernidade e sua importância na emergência da cultura visual contemporânea, problematizam a relação entre fotografia e objetividade, entre fotografia e realidade, a fim de se afirmar as opções do fotógrafo e o caráter perspectivo de tal tipo de produção. Uma história crítica dos próprios olhares e perspectivas clássicas é sugerida. Dessa forma, os autores tomam espaços patrimoniais da cidade, consagrados em fotografias e imagens celebradas, a partir de olhares distintos, nos quais são registrados aspectos que rompem com os olhares canônicos e das representações tradicionais de tais espaços de memória, de disputas e histórias de Belo Horizonte.

Em Um arquivo de experiências vividas, uma escola de conhecimentos: reflexões sobre fontes documentais e o ensino de história Maria Silvia Duarte Hadler e Arnaldo Pinto Júnior expõem a importância do trabalho com arquivos e fontes documentais no ensino de história. Em perspectiva crítica em relação a métodos tradicionais de ensino, voltam seu interesse para a possibilidade de criação de novas abordagens de ensino e aprendizagem em história, especialmente em diálogo crítico com as novas tecnologias de comunicação e informação. Após traçarem uma reflexão sobre concepção de arquivo e sobre currículo de história na educação básica, os autores relatam experiências de trabalho junto a estudantes e professores da rede pública, em projeto desenvolvido por integrantes do Centro de Memória da Unicamp e da Faculdade de Educação da mesma universidade para, em seguida, apresentar reflexões sobre abordagem de memória e história local na articulação com vivências de estudantes e professores.

Em Uma abordagem histórico-sonora do Gualaxo do Norte: interfaces entre inventários e ensino, Virgínia Buarque e César Buscacio focalizam uma pesquisa sobre a interpretação histórico-sonora do entorno do rio Gualaxo do Norte, em de Minas Gerais. Os autores apresentam o material didático por eles elaborado em versão QRcode a partir da análise crítica de inventários patrimoniais realizados pelas prefeituras de Mariana e Barra Longa, dois dos municípios afetados pelo rompimento da Barragem de Fundão, em 2015, e da investigação das sonoridades da região, por meio de memórias e relatos de viajantes, produzidas nos séculos XVIII e XIX. Na interlocução com referencial teórico que abrange os campos da História e da Música, os autores ponderam sobre os silenciamentos, nos inventários, relativos à diversidade de percepções sonoras que compõem as experiências dos morados locais.

Em Museus e seus públicos: possibilidades dialógicas, inventivas e interativas, Cyntia Simioni França e Maira Wencel Ferreira dos Santos partem de reflexões desencadeadas a partir de uma atividade formativa realizada com estudantes de História da UNESPAR, em visita ao Museu Municipal Deolindo Mendes Pereira, em 2019, localizado em Campo Mourão, Paraná. (PR). A atividade se configurou como experiência de reflexão e reelaboração de narrativas de si e do outro em diálogo com o acervo museológico. Defendendo uma produção de conhecimento histórico e educacional por via dialógica, o texto convida o leitor à se atentar para as lembranças e esquecimentos que compõem e transbordam dos espaços de memória, como museus e arquivos, em contato com as experiências vividas.

Fechamos o dossiê com o poético texto Vir a ser outro por meio das narrativas do vivido, em que Marcemino Bernardo Pereira procede a uma reflexão de cunho intersubjetivo mediada por arquivos pessoais e profissionais cujos acervos vão se configurando a partir do cotidiano do trabalho docente e de várias camadas de tempo sedimentadas na sua densa experiência de (trans)formação enquanto professor de História. Ao mobilizar seus arquivos, atento ao movimento fluido e sensível de suas memórias e ao diálogo intersubjetivo, o autor compõe uma narrativa espessa sobre docência, ensino de história e cultura escolar.

Na seção Artigo Livre foram reunidos seis artigos de temáticas variadas. Em O movimento pela anistia durante a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), Fábio Lanza, José Wilson Assis Neves Júnior e Luan Prado Piovani apresentam o resultado de investigação sobre fontes inéditas da anistia política, procedendo a pesquisa documental na qual analisam matérias censuradas do jornal católico O São Paulo e documentos dos arquivos do Serviço Nacional de Informações – SNI, da agência do Paraná.

Em Agenciamentos na história do Brasil escravista: aspectos da historiografia e possibilidades de abordagem, Andressa Antunes argumenta em favor da História Global na abordagem da escravidão no Brasil. A autora tece sua argumentação com base em pesquisa bibliográfica e análise de dois casos tratados pela historiografia em que os protagonistas estão em situações de agenciamento.

Em Gonçalves de Magalhães em defesa dos povos indígenas no Brasil: uma querela contra Varnhagen em “Os indígenas do Brasil perante a história”, Helena Azevedo aborda a disputa intelectual sobre a construção da identidade indígena, analisando a crítica de Magalhães à obra de Varnhagen. A autora desenvolve reflexões sobre a positivação dos povos originários em contexto em que predominavam estereótipos em relação aos mesmos.

Em Ensaio: razão afetiva e ciência sensitiva, Clayton José Ferreira debate sobre a hipótese do gênero textual ensaio ir ao encontro de uma possibilidade de constituição da escrita da história no início do século XX brasileiro, considerando-se a necessidade de narrar a partir de elementos lógico-formais e de perspectivas estéticas, sensoriais e afetivas.

Em A relação entre arte e vida no pensamento anarquista do Pós-Segunda Guerra, Cláudia Tolentino Gonçalves partindo do pressuposto de que a arte concedia aos “artistas” a possibilidade de tornar presente o horizonte de expectativas libertário, para investigar como os anarquistas teorizaram a estética na construção da sensibilidade libertária.

Jean Pierre Chauvin, em Exórdio e argumento em Arte da Guerra do Mar (1555), de Fernando Oliveira, faz uma discussão sobre alguns pressupostos defendidos pelo padre Fernando Oliveira, buscando demonstrar artifícios retóricos a que o padre recorreu ao fundamentar e dispor as partes do tratado.

Em Os elementos essências da Commedia dell´Arte, Frederick Magalhães Hunzicker discorre sobre esse gênero teatral que surgiu na Itália, no início do séc. XVI, detendo-se nos elementos que o caracterizam e traz, assim, contribuições para reflexões sobre arte e história.

Na seção Notas de Pesquisa, em Reeducação das relações étnico-raciais: indícios das potencialidades de arquivos escolares e depoimentos na investigação dos usos públicos do passado, Júlio César Virgínio da Costa apresenta o projeto de pesquisa por ele desenvolvido no Centro Pedagógico da UFMG, em Belo Horizonte. O professor analisa fontes variadas de arquivos escolares e depoimentos orais de sujeitos da comunidade escolar para investigar as elaborações e reelaborações do passado, especialmente no que tange à história e cultura afro-brasileira. Ao cotejar diversas fontes, produzidas por estudantes, docentes e demais funcionários, o autor destaca o potencial dos arquivos escolares para a compreensão da dinâmica cultural do e no cotidiano escolar, bem como para a formação continuada do docente enquanto professor reflexivo.

Na seção Relato de Experiência Talita Seniuk, em Uma escola, um marechal e uma experiência pedagógica sobre educação patrimonial, focaliza uma oficina educativa realizada em escola pública da rede estadual de ensino de Mato Grosso, com estudantes do ensino fundamental II, na qual relaciona a educação patrimonial aos princípios da função social da escola. A autora destaca a importância da abordagem de bens culturais patrimoniais na investigação da história local e na compreensão de identidades singulares, não homogeneizadas pelo processo de globalização.

Cibele Aparecida Viana, em A cidade como um arquivo aberto para o ensino de História, a autora apresenta uma ação educativa interdisciplinar, desenvolvida junto a estudantes de uma escola pública municipal do distrito de Águas Claras, na cidade de Mariana, em Minas Gerais. Tendo em foco a visita guiada à cidade mineira de Itabira, onde nasceu o poeta Carlos Drummond de Andrade, a professora procede à análise da experiência relatada à luz de um referencial teórico-metodológico que fundamenta a compreensão das cidades e da literatura como arquivos enunciadores de memórias, importantes na construção social de identidades em mediações culturais que rompem com os limites locais e disciplinares.

Beatriz Martins e Victor Diana, em A Revolução Cultural Chinesa impressa: o uso do Jornal do Brasil como fonte em sala de aula, abordam o uso do jornal como recurso didático, destacando a necessidade de promover uma leitura que permita perceber as relações de poder que perpassam sua produção e circulação na sociedade. O texto foi desenvolvido a partir de estudos e experiência prática, iniciada em 2017, no Projeto Integrado de Práticas Educativas, componente curricular do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Uberlândia, 20 de dezembro de 2020.


Referências

KOYAMA, Adriana Carvalho. Arquivos online: ação educativa no universo virtual. São Paulo: Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2015.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.


Organizadores

Thiago Lenine Tito Tolentino – Instituto de História. Universidade Federal de Uberlândia.

Nara Rúbia de Carvalho Cunha – Instituto de História. Universidade Federal de Uberlândia.


Referências desta apresentação

TOLENTINO, Thiago Lenine Tito; CUNHA, Nara Rúbia de Carvalho. Apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 33, n. 2, p. 7-16, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR/JF]

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