A instituição retórica e a sua longa duração/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2018

Na segunda metade do século XVIII, a literatura romântica suplantou a longeva instituição retórica. Por outras palavras, uma “arte nova” ancorada nos regimes de estética suprimiu os diferentes gêneros retórico-poéticos surgidos em tempos remotos. Não obstante, é recorrente (e problemática) a adoção indiscriminada do conceito de “literatura”, como se seus fundamentos fossem universais e/ou atemporais. O presente dossiê, multívio como o herói Odisseu, reuniu trabalhos sobre diferentes práticas letradas a partir de seus códigos linguísticos, concebendo-as como objetos tecnicamente arranjados e cuidadosamente articulados com base nos estilos e preceitos do gênero ao qual se afinam. Ater-se a esse universo significa considerar a historicidade das letras e, simultaneamente, da retórica que as organiza.

Da Antiguidade ao Iluminismo, os gêneros retórico-poéticos inventavam (no sentido retórico do termo) várias matérias de diversos tempos e lugares: informações históricas, referências mitológicas, preceitos poéticos, doutrinas teológicas, perspectivas filosóficas etc. A liberdade de poetas e narradores, no caso, era restrita, pois resultava de preceitos retóricos que limitavam seu arbítrio, afinal, estamos falando de um momento no qual imitar/emular autores (ou autoridades, auctoritas) era a regra.

Em termos de dispositio, distribuímos os artigos em dois blocos: no primeiro, os autores trataram de objetos textuais antigos; no segundo, de letras modernas. Essa divisão, sem o intuito de estabelecer hierarquias, leva em consideração somente o critério temporal. Afinal, a retórica subsidiou todas essas fontes e orientou sua composição. Ainda que haja diferenças no que se refere à matéria tratada, tópicas de invenção, formas de disposição e figuras de elocução trafegaram entre esses objetos textuais, servindo aos interesses particulares e datados de cada poeta/narrador/orador/ator e dos leitores/ouvintes aos quais essas poesias/narrativas/orações/encenações se dirigiam.

No primeiro estudo desse dossiê, Virgínia Soares Pereira analisou a maneira como Horácio emulou uma tópica recorrente em se tratando do gênero lírico: a recusatio, isto é, a indisposição assumida pelo poeta quanto a abordar assuntos grandiosos, como um elogio ao imperador. Para tanto, ele recorreu à modéstia afetada, ou seja, alegou falta de engenho para elaborar poemas sobre matérias agudas. Além disso, Virgínia Pereira discorreu sobre a maneira como Horácio serviu ao poder e, mais precisamente, à figura do princeps, sem recorrer à tão afamada poesia épica. Concomitantemente, o trabalho em questão apresenta ao leitor diferentes momentos da vida do poeta através de seus escritos, tendo ele vivido uma vida repleta de reviravoltas: se, a princípio, recusava-se a cantar a grandeza de Augusto, anos mais tarde não apenas o fez, como tornou-se o vate do Império e um apologista da pax romana.

O segundo artigo volta-se para uma das odes mais famosas de Horácio, que consolidou, em definitivo, sua relação com o imperador: o Carmen Saeculare, entoado durante os ludi saeculares de 17 a. C. Luis M. Martino analisou esse poema com o intuito de flagrar a presença de um discurso moral integrante da tradição romana e de estudar a maneira como ele representou o então imperador Otávio Augusto. O princeps, segundo o autor, é figurado no poema como portador das virtudes que deveriam ser propagadas, isto é, há, subjacente à ode, um programa de educação cujo alcance deveria ser amplificado, o que faria repercutir os elementos instituintes do mos maiorum.

No artigo seguinte, terceiro do dossiê, Zélia de Almeida Cardoso analisou a tragédia de Sêneca intitulada As troianas. Mais precisamente, a autora se ocupou da personagem Hécuba, rainha de Troia, e da estrutura retórica de seus discursos, que deixam transparecer sua majestade e, especialmente, seu sofrimento. Estudar o caráter ou a persona de Hécuba através de seus discursos leva o leitor a deparar-se com figuras retóricas como apóstrofes, antíteses, amplificações, e outros recursos de estilo como alusões, interrogações, exclamações, ironias etc. A autora, em sua análise, não deixou de considerar a maneira como Sêneca, na construção de sua “tragédia retórica”, emulou auctoritas como Eurípedes, Virgílio e Ovídio, seja na inventio da matéria, seja na escolha dos episódios que integram o drama.

O texto de Erick Messias Costa Otto Gomes, também voltado para a produção letrada de Sêneca, detém-se nos seus textos consolatórios. O gênero da consolatio é definido não tanto pela forma, mas pelo seu conteúdo: uma exposição de ideias morais e de máximas filosóficas com o intuito de ajudar o destinatário a lidar com situações dolorosas, causadas especialmente pelo luto. Erick Gomes levou em consideração não apenas as convenções do gênero, que ele vai buscar especialmente nos escritos de Cícero, mas também a maneira como a aegritudo (desgosto, aflição) é encarada por um filósofo estoico do porte de Sêneca, que apreendia a aflição como reação passional muitas vezes despropositada. Recorrendo sobretudo ao gênero epistolar, Sêneca, ao elaborar uma consolação, concebia a aflição como um malefício capaz de acometer não apenas seu agente, como também a comunidade, prejudicando o universo cívico e impedindo a promoção do bem comum.

Leni Ribeiro Leite retomou a construção da persona de Domiciano em diferentes exemplares historiográficos e poéticos (Suetônio, Tácito, Plínio, Marcial, Estácio) para reavaliar um modelo de leitura que desconsiderou a retórica e a poética, ou seja, os códigos linguísticos característicos desses textos. Para a autora, não há o “verdadeiro Domiciano”, mas vários deles, e “cada Domiciano existe pelas razões de decoro do texto em que se encontra”. Se, por um lado, Suetônio pintou-lhe um retrato destituído da pietas e atribuiu-lhe o vício da crueldade, assim como Tácito, que o acusou de saevitia (selvageria), Leni Leite encontrou descrições similares em outros autores mais ou menos contemporâneos que referem outras personagens históricas, o que demonstra o trânsito de loci na elaboração de diferentes personae, visando a verossimilhança. Marcial e Estácio, no entanto, atribuíram ao mesmo imperador virtudes como clementia e liberalitas, mas são muitas vezes acusados, pelos comentaristas modernos, de serem responsáveis por críticas veladas ou bajulações destituídas de escrúpulos. Note-se, portanto, que a supervalorização dos relatos historiográficos e a desvalorização dos textos poéticos são desdobramentos de um mesmo princípio: o estabelecimento de juízos de valor que ignoram ou menosprezam as convenções retórico-poéticas correntes à época. Além disso, perde-se de vista, com esse mesmo olhar anacrônico, o teor instrutivo e edificante desses objetos textuais.

No sexto trabalho, último desse bloco voltado para as letras da Antiguidade, Jefferson Ramalho e Pedro Paulo Funari retomaram a historiografia antiga, especialmente a cristã, através, inicialmente, do livro dos Atos dos Apóstolos, texto que emula tanto o providencialismo hebraico como a literatura grega. Depois, analisaram os escritos de Eusébio de Cesareia, especialmente aqueles que retrataram a figura de Constantino. Embora não a tenha cunhado, Eusébio teria se tornado um modelo, uma auctoritas nos exercícios da historiografia providencialista cristã. É partindo dessa concepção que o bispo de Cesareia representou o imperador como agente da Providência, escalado para libertar os cristãos da opressão romana. Ao final do artigo, os autores recorreram à cultura material para apresentar evidências arqueológicas que se relacionam (nem sempre se forma harmônica) à descriptio do princeps elaborada por Eusébio.

Saltando alguns séculos e inaugurando o segundo bloco do dossiê, Flávio Reis analisou a figuração do príncipe exemplar através de uma narrativa de cavalaria escrita por João de Barros em 1522 e dedicada a D. João III. Como é sabido, Barros escreveu, além de uma gramática da língua portuguesa, panegíricos, diálogos e principiou a escrita das Décadas da Ásia, tendo sido o responsável pelos três primeiros volumes, deixando o quarto inacabado. No artigo de Reis é possível encontrar uma análise refinada do caráter instrutivo e deleitoso da crônica de Clarimundo, deixando transparecer a maneira como João de Barros imitou letrados da Antiguidade com o intuito de compor um tipo exemplar, versado nas letras e hábil com as armas, que serviria de espelho aos príncipes vindouros.

Os três artigos seguintes voltaram-se para os escritos do Pe. Antônio Vieira. Em “A Matriz Rapsódica da Retórica: De Homero a Vieira”, Marcus Mota estudou a tradição rapsódica, assunto pouquíssimo debatido entre os estudiosos brasileiros. O rapsodo, em linhas gerais, é aquele que encontra condições de interagir com o público recorrendo a gestos, movimentos, alterações vocais cujos efeitos seriam similares àqueles produzidos pelos atores. O discurso platônico teria manipulado as tipologias narrativas e proposto uma forma monológica, reduzindo a ação performativa. No entanto, o autor deparou-se com elementos performativos na Carta Ânua de 1626, um relato da tomada da então capital do Brasil, Salvador, no ano de 1624. Vieira, quando a escreveu, tinha 18 anos e utilizou seus estudos retóricos realizados no Colégio dos Jesuítas da Bahia para compô-la. Marcus Mota encontrou nessa narrativa topoi antigos, como no momento em que Viera mencionou um episódio da Eneida para referir a tentativa do governador do Brasil de defender, sem sucesso, Salvador, que já ardia em chamas como outrora sucedeu com Tróia. A carta, portanto, atentando-se às convenções próprias do gênero epistolar, não se restringe a noticiar, afinal, dramatiza um evento com base em preceitos retóricos, recorrendo a figuras, como a descrição, para vivificar a narrativa, o que torna Antônio Vieira, de certa maneira, um rapsodo.

Em “O corpo vivo da Pregação – Plasticidade e encarnação no Sermão do Espírito Santo, do Pe. Antônio Vieira”, Guilherme Amaral Luz analisou algumas tópicas retóricas associadas à arte da pregação, através da qual a “natureza” indígena poderia ser trabalhada, reformulada, refinada. Tal como o escultor, que modela a pedra subtraindo-lhe matéria, o pregador, “martelando” os costumes vis e reforçando a vigilância, poderia eliminar hábitos que muitos, à época, encaravam como irreversíveis. Apesar das dificuldades (como aquelas relacionadas à barreira linguística), o missionário deveria criar imagens que possibilitassem a “encarnação” de Cristo no coração dos homens. A luz do Espírito Santo, no caso, daria visibilidade àquilo que, inicialmente, sem a intervenção do pregador, permaneceria invisível. O artigo, dessa forma, ajuda a compreender historicamente alguns preceitos retóricos presentes no sermão de Vieira.

Marcus De Martini e Dario Trevisan de Almeida Filho retomaram o Sermão Primeiro. Anjo, escrito pelo padre Antônio Vieira e publicado no ano de 1694, com o intuito de avaliar as técnicas retóricas adotadas em sua confecção. Para aproximar o leitor das convenções e, simultaneamente, demonstrar a maneira como essas convenções atenderam a um propósito particular, os autores perscrutaram as características técnicas de um panegírico, aproximando-o do gênero demonstrativo, e analisaram a maneira como Vieira emulou o Apocalipse de João não somente para exaltar a figura de São Francisco Xavier e o papel desempenhado pela Companhia de Jesus, mas também para criticar o luteranismo e o calvinismo.

No décimo primeiro artigo do dossiê, Julio Morguetti Neto escreveu sobre a maneira como John Adams inventou um éthos de virtude política em Thoughts on Government (1776). Nessa obra, encontramos as bases do pensamento constitucional do autor e a discriminação dos elementos que deveriam fundamentar uma nova república. Para tanto, Adams retomou preceitos da Antiguidade clássica e incorporou elementos de sua época, como o pensamento puritano. Tendo participado ativamente da Revolução Americana, o autor elaborou um éthos político adequado ao modelo republicano de governo. O éthos, no caso, deve ser entendido como construção discursiva, ou seja, o locutor que se manifesta é produto do próprio discurso: um discurso que propõe um caminho para a felicidade coletiva através, por exemplo, do investimento na educação, maneira de dar acesso às virtudes republicanas. O livro de Adams não apenas serviu de inspiração à formulação da Constituição dos Estados Unidos da América, como foi escrito no calor de eventos revolucionários e às vésperas da Declaração da Independência.

Ao examinar as matrizes conceituais da literatura gótica, Lainister de Oliveira Esteves se deparou com as circunstâncias históricas nas quais a instituição retórica tornou-se ruina. Na segunda metade do século XVIII, romances voltados para o tema do medo surgiram em meio a debates sobre a estética e sobre a superação das letras antigas. Esse movimento levou à flexibilização das regras demasiadamente técnicas e privilegiou a liberdade criativa, a recusa à mímesis aristotélica, a supremacia do gosto em detrimento dos modelos tradicionais, a imaginação. O horror, enquanto gênero literário ou ainda como pressuposto do sublime, surgiu num momento em que se buscava padronizar/universalizar o gosto e criar uma sensibilidade, livre de convenções.

Cada um dos artigos que integram o dossiê tematiza, direta ou indiretamente, os recursos ecfrásicos, a evidentia, o ut pictura poesis horaciano e outros estratagemas retóricos responsáveis pela “visibilidade” poética/narrativa e pela configuração da persona ou éthos do poeta/narrador e das personagens. O leitor, portanto, tornar-se-á também um “expectador”, podendo vislumbrar, como Enéias em Cartago, um conjunto de pinturas, de imagens retoricamente elaboradas por fontes há muito extintas.

Na seção destinada a artigos livres, contamos com o artigo “A áurea revolucionária no discurso anarquista brasileiro (1917-1922)”, de Cláudia Tolentino Gonçalves Felipe. A autora buscou compreender, através do periódico libertário A Plebe, de que maneira as experiências da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa foram utilizadas como topoi capazes de incitar ações revolucionárias em meio à militância anarquista. Sendo assim, ela não encarou o discurso como transparência, tampouco o considerou desimportante porque fruto de engajamento político: mais do que isso, ele seria um veículo através do qual um grupo de anarquistas interpretou episódios históricos recentes com o intuito de persuadir os leitores quanto à valia do projeto libertário.

Kássius Kennedy Clemente Batista brindou-nos com uma resenha de Angola Janga: uma história de Palmares (2017), uma ficção histórica escrita pelo quadrinista Marcelo D’Salete. Além de adotar os quadrinhos como narrativa e, portanto, como veículo de conhecimento, o autor do livro buscou fugir às “narrativas tradicionais” trazendo à tona o protagonismo de personagens negras recorrentemente secundarizadas. Exercício poético, excelência gráfica e o tratamento de um assunto inesgotável, porque ainda vivo e latente em meio à historiografia, são alguns dos méritos que tornam imperativa a leitura de Angola Janga.

Willian Fusaro, por fim, resenhou o livro Revolução Russa (2017), escrito pela historiadora australiana Sheyla Fitzpatrick e traduzido por José Geraldo Couto. O trabalho em questão é resultado de uma análise minuciosa e competente dos primeiros vinte anos do processo revolucionário soviético.

Boa leitura.


Organizador

Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Graduado e mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (INHIS-UFU).


Referências desta apresentação

FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. Apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 31, n. 2, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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