Exílios latino-americanos e solidariedade transnacional durante a Guerra Fria | Cuadernos de Historia – Serie economía y sociedad | 2022
Nações parte da OTAN (em azul) e do Pacto de Varsóvia (em vermelho) | Imagem: Wikipédia
Na América Latina, o exílio, entendido como a exclusão de opositores das esferas públicas e do território nacional, foi um mecanismo central da vida política de diferentes países da região desde o período das guerras de independência e a consolidação dos Estados Nacionais no século XIX, até se converter em parte de sua cultura política.1 Do mesmo modo, o asilo, como correlato do exílio, configura se como figura recorrente, primeiro como tradição e em seguida como instituição jurídica, oferecendo proteção internacional por razões políticas.2
As ditaduras que se instalaram no subcontinente durante a Guerra Fria e seus métodos de repressão massivos provocaram a exclusão e a perseguição de dezenas de milhares de opositores políticos e setores descontentes das esferas públicas e das políticas nacionais. Este fenómeno de massificação dos deslocamentos na região começou com o golpe na Guatemala no ano de 1954 e teve sequência com a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba, até se tornar um padrão a partir da década de 1960. Caracterizou-se pela diversificação do perfil dos solicitantes de proteção internacional de asilo frente à inédita situação dos Estados da região que se aproximaram do sistema universal de proteção de refugiados.3
No contexto da Guerra Fria Global, no decorrer das décadas de 1970 e 1980, os exilados da onda repressiva nos países do Cone Sul da América Latina tiveram a possibilidade de constituir redes transnacionais de ação política4 em parceria com outros exilados e organizações nos países de acolhimento, o que lhes permitiu reformular solidariedades e alianças internacionais a partir da defesa dos princípios internacionais de direitos humanos e da denúncia das ditaduras pela violação dos mesmos. 5 Mas também descobriram que podiam dar continuidade à sua militância organizada no exterior, tanto na resistência e conspiração política contra o regime expulsor, ou como parte de redes transnacionais de solidariedade e cooperação a partir da participação orgânica ou individual em projetos revolucionários ou de libertação nacional, seja em suas etapas de luta armada ou de formação governamental. E de seus lugares de exílio no Ocidente ou em países socialistas, muitos destes exilados se inscreveram como militantes internacionalistas em missões de solidariedade técnica ou militar. 6
Tais práticas de solidariedade transnacional foram motivadas pelo fato desses militantes internacionalistas se sentirem parte de uma nova comunidade imaginada revolucionária do Terceiro Mundo, como marco geográfico e político da ação militante durante as décadas de 1960-1980. 7 Esta noção de Terceiro Mundo como comunidade imaginada surgiu no contexto da Guerra Fria e das lutas pelo poder global, influenciando a forma como as solidariedades regionais se configuraram. 8
Como afirmam Christine Hatzky e Jessica Stites Mor, 9 estimulados por movimentos anticoloniais emergentes na Ásia e África, partidos, movimentos de libertação nacional e movimentos sociais, bem como governos todos imaginaram uma revolução contra o colonialismo e o neo-imperialismo da Guerra Fria, e inventaram uma versão que mais tarde seria descrita como o “Sul Global”. Em outras palavras, motivados a resistir contra a opressão e a violência de Estado, pregando a revolução ou defendendo a afirmação da justiça e do direito à vida, esses movimentos ensejaram à formação de uma “cultura militante sem fronteiras” que se formou nesses anos, atravessando países e continentes, formando-se ou desfazendo-se em alguns momentos, para se solidificar em outros. 10
Chamamos aqui o conjunto destas ações de interesse comum, ou interdependentes, de redes de solidariedade transnacionais que nasceram com características próprias a partir da segunda metade do século XX, em interação com o contexto internacional da Guerra Fria Global. 11 As redes de exilados interagiram com as redes de solidariedade transnacional global que se estabeleceram com os processos revolucionários e de libertação nacional e descolonização na América Latina e África, como Cuba, Argélia, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Nicarágua ou El Salvador, para evocar os mais conhecidos.
Os exilados viram-se inseridos em múltiplas redes de relacionamento, em novos fluxos e circulação de ideias, objetos, instituições, criando uma nova voz na esfera internacional. Em outras palavras, o exílio provocou uma reconfiguração das dinâmicas de poder, de autoridade e de solidariedade social, unindo militantes de variadas nacionalidades em diferentes modalidades de ação política no cenário transnacional.
Com respeito à perspectiva transnacional, ela se apresenta como um enfoque válido diante de objetos de investigação que, por sua própria natureza, dão conta de processos, redes e fenômenos que ultrapassam as fronteiras do Estado-Nação com a intenção de influir na política de um país, ou grupo de países, e/ou nas instituições internacionais. No caso das análises das ações políticas de grupos, organizações e redes em âmbito transnacional, demonstram que suas conexões, intercâmbios e interações realizados fora do país – ou região – de origem, geralmente pretendem reforçar posições de atores em disputa e lutas no interior de uma nação, como sugeriu Bárbara Weinstein. 12
Por outro lado, não foi sem contradição que as redes de solidariedade transnacionais funcionaram quando existiram em seu interior igualmente conflitos e quando o discurso revolucionário latino-americano encontrou dificuldade de persuasão das esferas internacionais comprometidas. O exílio igualmente não fazia parte do projeto político desta geração, e a ele foi dado um novo sentido, tornando-se um espaço de legitimação de novas identidades, ou do reforço de outras. Para além da “ajuda emergencial”, os exilados buscavam a sobrevivência política e a legitimidade de suas lutas travadas na América Latina. Em outras circunstâncias, tratou-se de transformar o exílio/desterro em uma arena estratégica para a militância. Como afirmou Roniger, “o exílio pode ser construído através da comunidade de exilados ou mediante a luta pelo regresso. Mas, pode também ser expressão de uma forma de combate, quando utilizada de maneira tática, frente às restrições impostas em solo pátrio e como resposta aos mecanismos de exclusão política”.13
O que aqui se propõe é mostrar como esta oposição latino-americana criou mecanismos de atuação fora de seus países de origem, tanto como força estruturada no exílio14 quanto aquela feita também por grupos irregulares que se deslocavam paralelamente ao sabor dos jogos de relações estabelecidas. Nesta chave, um dos propósitos deste dossiê é o de proceder a um inventário das estratégias e experiências comuns de solidariedade transnacional vividas por uma cultura política específica, e marcada por regimes de força, ditaduras militares, dominações e ou colonizações em que o elemento principal e aglutinador não foi apenas uma solidariedade de caráter político, pois a ela foram agregadas outras formas de luta e do agir político. 15
A solidariedade internacional governamental em termos de asilo, refúgio e apoio político é outro fenômeno que este dossiê aborda. Diversos governos, organismos internacionais ‒ como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) ‒ organizações religiosas e não governamentais também se mobilizaram para apoiar a saída e o refúgio destes exilados. Nos países latino-americanos receptores de exilados, tais como México, Venezuela, Peru, Costa Rica e Cuba, esteve em jogo “o entorno político e institucional dos países de acolhimento que, concedendo asilo à luz do espírito da fraternidade latino-americana, almejaram ou foram pressionados a controlar as atividades políticas dos exilados”. 16 Nos países do campo socialista também se detectaram estas tensões entre o refúgio, a solidariedade, a vigilância, o controle e os condicionamentos das atividades políticas de oposição e resistência.
Em outras palavras, propomos pensar que, se por um lado as experiências de desterro e exílio deixaram uma marca dolorosa, elas representaram, todavia, um momento fundamental no processo de construção de conexões transnacionais, desenhando novos mapas de engajamento no exterior e favorecendo complexas redes de diálogos e intercâmbios entre as correntes revolucionárias e seus países de acolhida. As contribuições reunidas neste dossiê ofertam ao leitor uma reflexão crítica sobre as relações estabelecidas entre o movimento revolucionário latinoamericano e outras regiões do mundo, em países que favoreceram a luta revolucionária e serviram de proteção aos exilados e perseguidos políticos, transformando-se, dessa maneira, em espaços crescentes de denúncia contra a violação dos direitos humanos.
No primeiro artigo, “Solidaridad democrática en Guerra Fria: o caso de la política de asilo diplomático de Uruguay en Cuba durante la ditadura de Fulgencio Batista (1957-1958)”, Roberto Garcia Ferreira e Mario Ayala analisam a política e prática do asilo diplomático aplicado pelo Uruguai em Cuba entre 1957 e 1958, durante o período insurrecional da oposição democrática cubana e a massiva repressão ditatorial com que foi enfrentada. Constitui-se numa pesquisa que enriquece a análise da solidariedade transnacional sob o prisma da política diplomática independente – no caso a uruguaia ‒ lançando luz sobre o papel neste processo da denominada “agência dos atores”, no que se refere às escolhas e estratégias adotadas pelo embaixador uruguaio em Cuba.
O segundo artigo de Débora Strieder Kreuz, “Ser exilada na Argélia: reflexões a partir das memórias de três mulheres brasileiras (1969-1979)”, constitui-se num texto inédito na historiografia brasileira ao tratar das mulheres exiladas na Argélia e sua inserção no mundo do trabalho neste país, introduzindo o componente gênero no exílio e abrindo um campo de estudos sobre o feminismo e seus limites em sociedades de tradição muçulmana.
O terceiro trabalho, de Maria Cláudia Badan Ribeiro, “Os exilados brasileiros na Europa e o debate sobre um Tribunal Russell para o Brasil”, discute a criação do segundo tribunal Bertrand Russell para o Brasil. O texto ressalta a existência de um tribunal que aliou a reivindicação político-revolucionária e de libertação nacional à defesa humanitária articulando diferentes correntes políticas em torno de uma unidade de ação comum. O trabalho é chave para discutir e matizar as hipóteses de outros trabalhos que ressaltam a conversão global de uma lógica revolucionária a uma lógica humanitária. Em resumo, o texto mostra a política de denúncia humanitária como uma forma de solidariedade política em apoio à luta antiimperialista e antifascista na última parte da Guerra Fria.
No quarto texto, “Intelectuais: passados traumáticos e experiências do exílio”, Claudia Wasserman se debruça sobre o papel desempenhado por intelectuais brasileiros, chilenos e argentinos durante o processo de transição política na segunda metade dos anos de 1980; quando abrigados em universidades ou institutos de pesquisa, esses atores participaram ativamente da resistência publicando revistas, realizando debates e contribuindo para o retorno à democracia. O trabalho destaca a ampla circulação de produções intelectuais e de fluxo de saberes no espaço transnacional e discute o papel dessas redes de intelectuais de esquerda latinoamericanas na busca de uma nova identidade política, inserindo-se como uma nova força no processo de transição política em seus respectivos países.
Segue-se “A revista de exílio Chile-América e as redes de denúncia da violência política da ditadura militar chilena (1974-1983)”, de Raphael Coelho Neto, que trata da participação da revista Chile-América nas redes transnacionais de direitos humanos procedendo à denúncia do terror de estado chileno. Com sede em Roma e integrada por membros da Democracia Cristã, MAPU e Esquerda Cristã, a revista desempenhou significativo papel de denúncia e informação no exílio, permanecendo ativa de 1974 a 1983 atuando junto a quadros políticos progressistas italianos, como também no âmbito de organizações humanitárias nacionais e internacionais.
No sexto trabalho, “Vivir en la Rumania de Ceausescu. La singularidad del exilio chileno en el socialismo real. Vínculos, adaptaciones y visiones críticas”, Pedro Valdés Navarro pesquisa a experiência dos exilados chilenos que se refugiaram na Romênia após o golpe de setembro de 1973. Seu objetivo é conhecer as experiencias de vida de um grupo de jovens exilados naquele país do socialismo real, para compreender como se deu a recepção do sistema de solidariedade estatal do regime dirigido por Nicolau Ceausescu.
Encerra o dossiê o artigo de Moira Cristiá e Fernando Camacho Padilla, “Del ímpetu revolucionario a la defensa de los derechos humanos. Trayectorias militantes entre Europa y el Cono Sur durante la Guerra Fría (1966-1990)”, em que discute a ampla radicalização política do final dos anos 1960 e a alteração do discurso político radical, centrando-se – em duplo sentido – na trajetória de militantes latino-americanos que se politizaram na Europa e de europeus que se radicalizaram no Cone Sul sob as ditaduras militares. Utilizando como marco temporal a morte do líder Che Guevara ao fim da ditadura chilena, os autores demonstram como ocorreu a reconversão militante de figuras emblemáticas no período, produto do contexto global marcado pelos acontecimentos da Guerra Fria.
Notas
1 Sznadjer y Roniger, 2013.
2 Ayala y Morales Muñoz, 2021.
3 Ayala y Morales Muñoz, 2021.
4 Sznadjer Roniger, 2013.
5 Roniger, 2014.
6 Ver Cortina Orero 2017 y 2020.
7 Palieraki, 2020.
8 Hatzky Stites Mor, 2014: 128-129.
9 Hatzky Stites Mor, 2014: 128-129.
10 Badan Ribeiro, 2017.
11 Roniger, 2010.
12 Weinstein, 2013.
13 Roniger, 2011: 41.
14 Napolitano, 2014: 48.
15 Tarrow, 2004:24.
16 Sznajder, 2011: 83.
Referencias
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Organizadores
Maria Cláudia Badan Ribeiro – Universidade Estadual de Campinas, Brasil. E-mail: mariaclaudia.badanribeiro@gmail.com
Mario Ayala – Universidad Nacional de Tierra del Fuego. CONICET. E-mail: mhayala@untdf.edu.ar
Referências desta apresentação
IRIBEIRO, Maria Cláudia Badan; AYALA, Mario. Exílios latino-americanos e solidariedade transnacional durante a Guerra Fria. Cuadernos de Historia – Serie economía y sociedad. Córdoba, n. 29, p. 135-143, 2022. Acessar publicação original [DR]