História & outras eróticas | Marcos Antonio de Menezes, Martha S. Santos e Robson Pereira da Silva

Historia e outras eroticas3 História & outras eróticas
Orestes perseguido por las Furias, de William-Adolphe Bouguereau (1862) | Domínio público |

SANTOS M Historia e outras eroticas 2 História & outras eróticasNinguém vai poder, querer nos dizer como amar
Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar, sem temer
Eles não vão vencer
– Johnny Hooker

Apesar dos constates ataques que a educação e a ciência têm sofrido no Brasil, principalmente nos últimos anos, por conta da gestão genocida empreendida por Jair Bolsonaro bem como por todos os outros ignóbeis que se somam a ele, ainda assim é possível notar uma resistência por parte daqueles que não aceitam abaixar a guarda e continuam firmes na produção de um conhecimento que busca reflexões contínuas da sociedade atual e da pluralidade de indivíduos nela inseridos.

Desse desejo de resistir é que nasceu História e outras eróticas (2020), organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva. A obra mostra a que veio logo em suas primeiras páginas, ao dar as boas-vindas aos leitores com uma citação do sociólogo inglês Anthony Giddens que, dentre outros assuntos, investiga as transformações contemporâneas e seus reflexos nas relações amorosas e eróticas, e também com um trecho do single God Control (2019), de Madonna, que em sua música faz um manifesto contra o porte de armas nos Estados Unidos e relembra no clipe da canção o massacre [2] ocorrido em uma boate LGBT, no mesmo país.

A coletânea de textos que se seguem é inaugurada por Tamsin Spargo, que no primeiro capítulo do livro tece considerações abarcando sexo, gênero e sexualidade, partindo principalmente dessas temáticas para promover reflexões que vão desde o tratamento misógino que observou em ambientes de trabalho dos quais fez parte até a maneira como a pornografia colabora para as representações sexualizadas de corpos hiperbólicos. Em seu texto, Spargo dialoga em grande medida com o filósofo Michel Foucault, umas das maiores referências no que diz respeito as temáticas de sexualidade e educação, bem como a relação destes com o poder. Ademais, a autora ainda relembra a publicação de seu ensaio Foucault e a teoria queer (1999), onde ela explora o modo como o pensamento do filósofo teria refletido na construção e entendimento da referida teoria.

Na sequência, Luisa Consuelo Soler Lizarazo reflete sobre as fronteiras sexuais que ainda perduram paralelamente a diversidade de gênero, sobretudo àquelas observadas em sociedades transculturais, ao mesmo tempo em que problematiza a ordem moral que continuamente busca impor um modelo de família funcional apenas à sistemas patriarcais e capitalistas. A autora faz um levantamento de como as questões relacionadas ao assunto foram observadas ao longo dos séculos e evidencia a importância do direito de se exercer a possibilidade de escolha de cada sujeito.

Ao longo do tempo tem-se observando a História e a ficção protagonizando discussões acaloradas que resultaram em mudanças e reestruturações no fazer historiográfico. Seguindo nessa linha de raciocínio, Peterson José de Oliveira constrói seu texto a partir da relação dos historiadores com a verdade e a ficção e traz para o leitor a novela, um gênero um tanto quanto subestimado e ainda pouco estudado. Para suas análises, Oliveira concentra seu trabalho principalmente a partir do uso da montagem e da polifonia, duas formas narrativas essenciais para a construção de O mezz da gripe (1998) de Valêncio Xavier que, por meio maneira de sua narrativa, mescla ficção e realidade e, por conseguinte, reflete sobre os efeitos de verdade presentes na novela.

No capítulo seguinte a autora Lúcia R. V. Romano promove reflexões importantes a respeito das intersecções entre as artes cênicas e o feminismo, elucidando a importância da história para a construção de um diálogo entre os dois campos e pontuando a colaboração cada vez mais notável da historiografia para os estudos feministas. Em seu texto, Romano deixa claro que muitas são as questões atuais envolvendo a história, o teatro e o pensamento feminista e abre espaço para se pensar o artivismo feminista, com ênfase no Madeirite Rosa, um coletivo teatral paulistano.

Outra linguagem artística colocada em pauta ao longo da obra História e outras eróticas (2020) é o cinema, abordado no texto de Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, que trazem para os leitores um debate precioso sobre a representação feminina a partir da filmografia de Catherine Breillat. Em um texto bastante didático e rico em imagens, as autoras apresentam uma discussão que vai de encontro a um tabu ainda muito atual: o prazer feminino. Como objeto de estudo é analisado o filme Romance X (1999) e ao longo do texto, além de conhecer um pouco mais sobre o cinema de Breillat também é possível compreender a forma como ela se posiciona antagonicamente aos estereótipos que ainda são observados no que diz respeito ao desejo feminino em representações cinematográficas.

No capítulo seguinte, Ana Lorym Soares faz um interessante paralelo entre a realidade a qual temos vivido e a distopia, lançando seu olhar para o romance O conto da Aia (1939), de Margaret Atwood. A autora explica que em outras obras de distopia o que se observa é um padrão onde os personagens principais são, na grande maioria das vezes, homens, de modo que no romance estudado, Margaret Atwood inova ao trazer uma mulher como personagem central da obra, fugindo dos padrões observado neste gênero da literatura. Desse modo, além de importantes reflexões a respeito da escrita feminina de Atwood, direito das mulheres e seus corpos enquanto campo de poder, Ana Lorym Soares ainda deixa evidente a importância de um olhar atento a realidade, a fim de que as distopias permaneçam no campo de conhecimento da ficção.

Também no campo da literatura, Marcos Antonio de Menezes, constrói seu texto a partir de romances e poesias, sendo que nas páginas que se seguem os leitores serão levados a refletir sobre a(s) representações do(s) feminino(s) na obra de Charles Baudelaire, levando em consideração questões postas em pauta pelo movimento feminista atualmente. Indo contra a grande maioria das produções literárias do século XIX, tecidas a partir da ótica masculina e burguesa, os leitores poderão conhecer um pouco mais sobre a estética, a recepção e as temáticas abordadas nos enredos de grandes obras, como As flores do mal (1857), de Baudeleire e Madamy Bovary (1856), de Gustave Flaubert.

No capítulo seguinte, Robson Pereira da Silva, apresenta-nos ao subversivo Hélio Oiticia, um dos artistas mais completos e importantes da arte brasileira. No texto é apresentada e discutida a antiarte e a arte de subversão de Oiticica nos anos de 1960 e 1970, onde através da performance o mesmo combatia todo e qualquer autoritarismo institucionalizado. O texto é essencial para compreender as configurações do corpo como objeto inventivo bem como do uso da contraviolência de Hélio Oiticica, que se valia da arte para combater a repressão vivida no contexto da ditadura militar no Brasil. O trabalho de ativistas/artivistas negros queer no estado da Bahia é preconizado por meio do texto de Tanya Saunders, que a partir do seu estudo relacionado a discussões de gênero, raça e sexualidade debate de que maneira se tem observado a construção crescente do “não humano”. No capítulo, o retrocesso vivido atualmente no Brasil é colocado em xeque e debatido através da ótica da colonialidade, do afrofuturismo e da necropolítica, que de maneira cada vez mais pungente e perigosa busca ditar quem têm ou não importância em sociedade.

No capítulo seguinte, Martha S. Santos toca com coragem em uma ferida ainda aberta, especialmente, ao problematizar a importância da compreensão da instituição da escravidão no Brasil a fim de que se entenda de uma vez por todas os reflexos desta para a criação e manutenção de privilégios desfrutados por determinadas classes sociais em nosso país. Em seu texto, a autora busca fazer um rápido balanço historiográfico dos estudos ligados a escravidão nas últimas quatro décadas no Brasil além de apresentar seus estudos, concentrados no interior do Ceará, e dialogar intrinsicamente com os estudos de gênero ao refletir sobre a maneira pela qual mulheres e crianças aparecem inseridas no processo da escravidão.

Com um olhar voltado também para a escravidão, Murilo Borges da Silva dialoga com o texto anterior ao abordar os relatos de viajantes no estado de Goiás, bem como as contribuições destes para a produção de corpos femininos negros e representações do feminino muitas vezes equivocadas.

Em seu texto, Silva trabalha com os relatos de Saint-Hilaire (1975) e Johann Emanuel Pohl (1976) para verificar como as mulheres negras aparecem nestes relatos, através dos quais nota-se que há uma tentativa de silenciamento por parte dos viajantes em questão, que não raras vezes, faziam de seus escritos um lugar seletivo, tornando visível determinados fatos e invisíveis outros, da maneira como lhes era favorável e de acordo com aquilo que consideravam necessário.

Logo em seguida os leitores são postos frente a questões direcionadas principalmente aqueles que se dedicam a produção de conhecimento, pois Fábio Henrique Lopes lança um problema grave que diz respeito a maneira como muitas vezes utilizam-se de pessoas transsexuais e de outras identidades de gênero apenas como objetos de estudo. Partindo dessa colocação, o autor torna possível um olhar mais atento ao lugar de fala que cabe a nós, pesquisadores. Aqui, fica claro que é necessário que haja um repensar do fazer historiográfico e epistemológico de modo a não ferir o outro e deixa a todos uma breve, mas, importante advertência: “incluir, excluindo é fácil […]” (LOPES, 2020, p. 276).

O próximo capítulo é um nó na garganta, daqueles que a cada palavra lida cresce um pouco mais, pois logo de cara, Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Diego Aparecido Cafola lançam alguns fatos que não podem serem ignorados: a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsória tem acarretado na invisibilização e precarização da existência da população LGBTQI+ e, consequentemente, na sua eliminação física. Os autores afirmam que o conhecimento produzido na academia não tem ultrapassado seus muros e que os reflexos dos discursos construídos em cima de conservadorismos podem ser notados cada vez mais através da violência com que a população LGBTQI+ tem sido alvo constante. Em um texto tocante, os autores colocam em xeque a noção atual de humanidade e questionam o processo de exclusão de grupos marcados pela diferença, ou melhor, que as maiorias silenciadas têm sofrido.

No texto que se segue as problemáticas levantadas dialogam com estas do texto anterior, porém, são levadas para o espaço escolar ao demonstrar como a escola tem atuando como agente da normatividade. Neste capítulo, Aguinaldo Rodrigues Gomes problematiza a hierarquização e o silenciamento de corpos dissidentes por meio do discurso falacioso da “ideologia de gênero” difundida, inclusive, como uma das principais bandeiras levantadas e defendidas durante a eleição de Jair Bolsonaro. O autor reitera os ataques aos quais a educação tem sofrido no campo dos estudos de gênero e da educação sexual, além de expor o cerceamento de professores, aos quais os conservadores e reacionários tentam colocar em uma redoma cujas grades é a ignorância e o preconceito.

Por fim, o último capítulo traz aos leitores uma “greve selvagem” que resultou na derrota do capitalismo em uma luta protagonizada por estudantes e trabalhadores. Em seu texto, João Alberto da Costa Pinto aborda a Revolução do Maio de 1968, a mais importante revolução anticapitalista do século XX. Sua análise parte da trajetória política e teórica de Raoul Vaneigem e se expande para outros militantes que fizeram parte do movimento que ficou conhecido como Internacional Situacionista (IS). De forma clara, Pinto explana o que levou dez milhões de trabalhadores e estudantes a frearem o capitalismo na França de forma totalmente espontânea e auto-organizada.

Dessa feita, levando em consideração o cenário hostil em que a produção de conhecimento científico se encontra em discrédito, como política de governo, bem como os ataques que as populações negras, índigenas, de mulheres e LGBTQI+, sobretudo àqueles sujeitos e sujeitas marcadas pela pobreza e precariedade da vida e do mundo do trabalho tem sofrido cotidianamente com as políticas de morte e indiferença, conclui-se que a coletânea de textos reunida em História e outras eróticas (2020) além de sinônimo de resistência é também um contributo a produção intelectual que se preocupa em pensar, refletir e problematizar os campos de estudo da política, raça, femininos e performatividades de gênero. Nas páginas desta obra, os leitores irão encontrar questionamentos relevantes acerca de temas atuais e necessários, fazendo com que a obra se configure como um alento a defesa dos direitos humanos, revestido de esperança, força e coragem para continuar na luta por igualdade.

Nota

2. O massacre na boate “Pulse” aconteceu em Orlando, no dia 12 de junho de 2016. Na data, Omar Mateen abriu fogo dentro do local e assassinou quarenta e nove pessoas e deixou cinquenta e três gravemente feridas.

LOPES, Fábio Henrique. Efeitos de uma experimentação político-Historiográfica com travestis da primeira geração. Rio de janeiro. In: MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

Natália Peres Carvalho – Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841094387536865. E-mail: nperescarvalho@gmail.com.


MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARVALHO, Natália Peres. História & outras eróticas (2020) – Uma obra urgente e necessária. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.184-188, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

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